Opinião

Mais um sem dor ou o dia em que trans e travestis fizeram história na Justiça do Trabalho

Autores

  • André Luiz Ferreira Santos

    Analista judiciário — assistente de desembargadora no TRT-19 mestre em Direito pela UFAL cientista social pela UFAL e membro do Subcomitê de Equidade de Raça Gênero e Diversidade no TRT-19.

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  • Verônica Guedes de Andrade

    é juíza titular da 2ª Vara do Trabalho de Maceió (AL) mestranda em Ciências Políticas na Universidade Autônoma de Lisboa e coordenadora do Subcomitê de Equidade de Raça Gênero e Diversidade no TRT-19.

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14 de outubro de 2024, 16h16

As pessoas trans e travestis são severamente discriminadas pela sociedade. Isto, infelizmente, ainda é uma realidade e pode ser exemplificada por tantas matérias publicadas nas bases doutrinárias e acadêmicas do direito, inclusive no Consultor Jurídico [1] [2].  Mas e o Poder Judiciário? Como garante o acesso à Justiça dessa parcela da população? O Judiciário permite diversidade em suas (multi)portas?

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O que é discriminação? No cenário internacional, a convenção 111 da OIT (Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação), a Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (promulgada pelo Decreto nº4.377/2002) e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (promulgada pelo Decreto nº 65.810/1969) conceituam discriminação e reafirmam o compromisso dos países em promover a igualdade de oportunidades entre as pessoas, especialmente no mundo do trabalho. Por outro lado, compete ao Poder Judiciário processar e julgar os casos em que estas ações odiosas são trazidas como narrativa pelas vítimas.

Mas como estas vítimas são ouvidas? Elas têm lugar de fala? Obtêm o acolhimento adequado e necessário para tanto? A performance de seus corpos (desviantes [3]) permitem-lhes ultrapassar as barreiras invisíveis que antecedem à propositura de uma ação judicial?

O Brasil evoluiu dos obscuros anos 1960 e 1970, passando pela luta pelos direitos civis e políticos dos Anos 1980, reconhecimento das diferenças culturais dos anos 1990, para chegar nos anos 2000 inspirado em fortes tendências universais de desenvolvimento humano sustentável (o meio ambiente é um só, a divisão em meio ambiente social e do trabalho é meramente didático. É nesse ambiente que todos nós, enquanto seres que interagimos, vivemos e nos desenvolvemos. Nossa interação altera a natureza, colocando o homem no centro das mudanças que atingem o planeta).

Discriminação é desigualdade

Todos nós nascemos livres e iguais [4] e temos o direito à mesma dignidade. É o que nos torna humanos.

O contrário de discriminação é igualdade. Esta igualdade se dá em quatro dimensões  (Fábio de Freitas [5]):

  • 1) igualdade do uso da palavra (imprescindível para sair do “não-lugar” do “não-ser” para afastar o lugar imposto de “outro do outro ser” que é imputado às pessoas transexuais e travestis — como pontuou a historiadora Clarisse Mack em sua fala durante o Letramento em Diversidade do TST [6], ocorrido na sede do TRT-18, nos dias 24 e 25/06/2024);
  • 2) igualdade diante da Lei (quando, na prática, as pessoas trans e travestis continuam precisando empurrar as portas que não se abrem —  enquanto há espaço para cercear suas falas, como afirmou a assessora parlamentar e ativista Ludymilla Anderson, nesse mesmo evento — “Por que o primeiro espaço discutido (para nós) é o (do) banheiro? [7]“;
  • 3) direito à diferença (que é tão bem explicado pela ativista Leonora Bittencourt ao criticar a imagem que é esperada das pessoas trans) e, por fim,
  • 4) igualdade de condições socioeconômicas básicas.

O que o “Letramento em Diversidade — (re)pensando o Direito do Trabalho a partir dos Territórios — O que o direito do trabalho tem a aprender com as pessoas travestis e transexuais?”, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho (capitaneado pelo ministro Cláudio Brandão), em parceria com o Ministério Público do Trabalho em Goiás, fez foi mostrar, na prática, o que os manuais de direito antidiscriminatório tentam passar em palavras — diferença como experiência — diferença como relação social — diferença como subjetividade — diferença como identidade.

Projeto por diversidade e inclusão

O “Letramento em Diversidade” é um projeto do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Assessores e Servidores da Justiça do Trabalho — Cefast, que é uma unidade do Tribunal Superior do Trabalho responsável por capacitar os servidores da Justiça do Trabalho. Esses auxiliares da Justiça, através desta oportunidade, saem dos gabinetes para viver o “direito achado na rua” (professor José Geraldo de Souza Júnior/UnB) e se tornam agentes de diversidade e inclusão — objetivo maior de uma sociedade que pretende ser mais justa e solidária.

“O movimento ainda está discutindo o direito à vida; precisamos colocar na pauta políticas públicas (que não são privilégios)”, lembra Cristiany Beatriz, da Rede Trans.

Travesti não é babado, confusão e gritaria. Travesti é orgulho, inclusão e aceitação.

O Tribunal Superior do Trabalho tem tido uma atuação densa na perspectiva da inclusão da população LGBTQIAPN+ [8] — são exemplos a oferta de discussão e lugar de fala, como fez o “Letramento em Diversidade” e, mais recentemente, a edição de três protocolos para julgamentos sem discriminação, que orientarão o exercício da magistratura federal trabalhista em suas decisões proferidas em processos históricos e estruturais de desigualdade. Segundo o portal de notícias do TST, “os documentos propõem um olhar sem vieses ou preconceitos sobre diversidade, inclusão e combate ao trabalho escravo contemporâneo e ao trabalho infantil” [9].

Papel do Judiciário em conscientização

O papel do Poder Judiciário na conscientização e implementação efetiva dos direitos das pessoas trans e travestis, tanto na sociedade em geral quanto no mundo do trabalho, transita além dos julgamentos proferidos por seus órgãos jurisdicionais, começando por incluir dentre os seus programas básicos de norteamento aos atores do direito, aos servidores e magistrados, as sementes da “tolerância zero” diante de qualquer ato discriminatório.

Os convênios firmados com outros órgãos, como o Ministério Público do Trabalho (a exemplo do projeto Mais Um Sem Dor), permitem que haja não somente mais um lugar de fala, de visibilidade e de exposição de experiências vividas por essas pessoas, como também oportuniza a inclusão no mercado de trabalho e incentiva os empregadores a orientar seus funcionários sobre a recepção às pessoas trans e travestis nos seus quadros, e manutenção dos empregos já conquistados, de modo que o acolhimento e a inserção sejam completos e exitosos. Portanto, como visto, o papel do Poder Judiciário em promover a paz social é bastante amplo e vai muito além da distribuição de justiça através das suas decisões em processos judiciais.

Aliás, é de se ressaltar que o reconhecimento das pessoas trans e travestis como cidadãos de primeira categoria não é favor do Sistema de Justiça, do governo, das famílias e do Estado. É obrigação na conquista de um mundo mais digno para todos, na casa comum onde todos vivemos.

Podemos avançar na direção de uma sociedade mais receptiva à inclusão e à diversidade, especialmente no mundo do trabalho. O TST e o MPT imprimem democracia em eventos como o Letramento em Diversidade e o projeto “Mais Um Sem Dor”.

E já que em outubro comemoramos o Dia do Trabalho decente (7/10), dia mundial da saúde mental (10/10) e o dia da consciência do intersexo (26/10), nada melhor que lembrar que liberdade e autonomia existencial caminham juntas na promoção do trabalho decente e de uma vida (também no trabalho) digna (e decente).

 


[1] https://www.conjur.com.br/2024-mar-07/proibir-empregada-trans-de-usar-nome-social-e-escolher-banheiro-gera-dano-moral/

[2] Do respeito à dignidade post mortem de pessoas transgênero e do direito à autodeterminação (conjur.com.br)

[3] Paulo Ioti vai além, o professor analisa quanto ao racismo sofrido pela população Queer que “E, se racismo é conceito político-social, também é o de raça, enquanto dispositivo político-social de poder, que visa garantir privilégios a um grupo dominante em detrimento de um desumanizado e inferiorizado grupo dominado, afirmado como “degenerado” e, assim, discriminado de maneira estrutural, sistemática, institucional e histórica, para o fim de estigmatizar, desqualificar moralmente, expulsar do convívio familiar ou até internar em hospitais psiquiátricos as minorias sexuais e de gênero (população LGBTI+), em prol de opressoras ideologias normalizadoras, mediante alterocídio discriminatório. Logo, o heterossexismo e do cissexismo são ideologias racistas ao pregarem a heteronormatividade e a cisnormatividade, ou seja, a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsórias, punindo simbólica, moral e/ou fisicamente quem “ousa” viver a vida de outra forma”. (Paulo Iotti: STF não legislou ao considerar homofobia como racismo (conjur.com.br)

[4] Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948).

[5] FREITAS, Fábio, F.B., A questão da democrática e os direitos humanos: encontros, desencontros e um caminho. In Direitos humanos: história, teoria e prática. TOSI, Giuseppe (Org.). João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2005..

[6] A historiadora lembrou que a cisnormatividade é regra, e até 2019 a Organização Mundial de Saúde usava o termo anormal para quem não era cis. E que no Peru, até hoje (2024), continuam sendo consideradas pessoas doentes. Foram incluídos na lista de doenças que os planos de saúde devem contemplar transexualidade, travestismo, transtorno de gênero na infância e itens mais genéricos, como outros transtornos de identidade de gênero ou transtorno da identidade de gênero não especificado.

[7] O Letramento em Diversidade (re)pensando o Direito do Trabalho a partir dos Territórios. O que o direito do trabalho tem a aprender com as pessoas travestis e transexuais? Pode ser assistido em: Letramento em Diversidade – 25/06/2024 – Parte 1 (youtube.com) e Letramento em Diversidade – 24/06/2024 (youtube.com)

[8] Destaque para a Cartilha de Direitos da Comunidade LGBTQIAPN+, produzida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). A publicação se propõe a fomentar a compreensão e o respeito pela diversidade sexual e identidade de gênero, além de orientar a elaboração e o aprimoramento de políticas públicas inclusivas, com foco especial no Poder Judiciário. A cartilha aborda temas como a violência contra pessoas LGBTQIAPN+ e inclui informações sobre legislação, jurisprudência e decisões judiciais. Também são recomendadas obras literárias e filmes que contribuem para o combate ao preconceito, à discriminação e à violência.

[9] https://tst.jus.br/-/justi%C3%A7a-do-trabalho-lan%C3%A7a-na-segunda-feira-19-protocolos-para-julgamentos-sem-discrimina%C3%A7%C3%A3o#:~:text=O%20Protocolo%20para%20Atua%C3%A7%C3%A3o%20e%20Julgamento%20com%20Perspectiva%20Antidiscriminat%C3%B3ria,

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  • Analista judiciário — assistente de desembargadora no TRT-19, mestre em Direito pela UFAL, cientista social pela UFAL e membro do Subcomitê de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade no TRT-19.

  • é juíza titular da 2ª Vara do Trabalho de Maceió (AL), mestranda em Ciências Políticas na Universidade Autônoma de Lisboa e coordenadora do Subcomitê de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade no TRT-19.

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