Direito Eleitoral

Fraude em cota de gênero: o avanço trazido pela Súmula 73

Autores

  • Renato Ribeiro de Almeida

    é coordenador acadêmico da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e conselheiro do Instituto Luiz Gama. É doutor em direito do estado pela USP e mestre em direito político e econômico pela Mackenzie. Autor de Direito Eleitoral da editora Quartier Latin e coautor de Participe! Eleições Partidos Políticos e Ideologias de A a Z da editora Liquet.

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  • Kaleo Dornaika

    é advogado mestre em Direito pela Universidade de São Paulo.

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14 de outubro de 2024, 15h20

No dia 16 de maio de 2024, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou a criação da Súmula nº 73 do TSE com o seguinte teor:

A fraude à cota de gênero, consistente no desrespeito ao percentual mínimo de 30% (trinta por cento) de candidaturas femininas, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97 configura-se com a presença de um ou alguns dos seguintes elementos, quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir:
 (1) votação zerada ou inexpressiva;
(2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; e
(3) ausência de atos efetivos de campanhas, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros.

O reconhecimento do ilícito acarretará:
(a) a cassação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap) da legenda e dos diplomas dos candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência deles;
(b) a inelegibilidade daqueles que praticaram ou anuíram com a conduta, nas hipóteses de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE);
(c) a nulidade dos votos obtidos pelo partido, com a recontagem dos quocientes eleitoral e partidário (art. 222 do Código Eleitoral), inclusive para fins de aplicação do art. 224 do Código Eleitoral.

Com o entendimento vinculante para todos os casos envolvendo a fraude à cota de gênero, o TSE sedimenta a jurisprudência que vinha se formando desde o paradigma de Valença-Piauí [1] de 2019. Inaugurada a tese de cassação de toda a chapa de vereadores, houve em 2020 um acréscimo significativo de ações de investigação judicial eleitoral (Aije) e ações de impugnação de mandato eletivo (Aime) propostas na Justiça Eleitoral. Em 2023, o plenário do TSE chegou a julgar procedentes 61 casos de fraude à cota de gênero. Uma estimativa (ainda não há dados apurados) sugere cerca de 300 mandatos cassados.

Em 2020, ainda subsistiam posicionamentos heterogêneos nos Juízos Eleitorais e tribunais regionais. Uma variedade de critérios foi utilizada para afastar a existência da fraude: falta de demonstração do dolo dos agentes, falta de provas robustas, falta de relação dos dirigentes partidários com os fatos, chegando ao limite de extinções por considerar a ação temerária [2].

Ao longo dos quatro anos de interregno das eleições municipais, o TSE adotou posicionamento rígido em relação à robustez das provas. Desde então, defendemos a tese de que não se tratava de provas pouco robustas: a quantidade pífia de votos e a falta de movimentação financeira são, tecnicamente, provas incontroversas demonstradas mediante, respectivamente, o boletim de urna e a prestação de contas.

Quando a votação da candidata se apresentava zerada ou não havia votos para ela em sua própria sessão eleitoral (local onde efetivamente a candidata votava), podia-se demonstrar cabalmente a ausência do voto em si mesmo. Não se tratavam, portanto, de provas frágeis, mas de insuficiência de elementos de prova.

A distinção é relevante, pois afasta a ideia de provas meramente indiciárias e substitui o real questionamento sobre os elementos da fraude. E quais seriam afinal os elementos suficientes? A melhor expressão que explicava a hesitação da corte em cassar toda a legenda era a falta de critérios consolidados aptos a criar um consenso entre os ministros para a tomada de uma decisão severa, com impacto direto na composição do Poder Legislativo dos municípios, além de punição por inelegibilidade dos dirigentes partidários diretamente responsáveis.

Jurisprudência para consequências de ato ilícito

Na ausência de um diploma legislativo, a jurisprudência precisava se firmar: quais seriam os critérios e quais seriam as consequências do ilícito? A Súmula nº 73 chegou, portanto, como uma velha conhecida. Já se apreciavam os elementos, amplamente discutidos em tribuna e pelas diversas composições do plenário, mas faltava sua consolidação.

Em análise ao texto sumulado, nota-se que os elementos determinantes da fraude se tornaram mais demonstráveis com a opção da não-cumulatividade disposta no trecho “um ou alguns dos seguintes elementos”. À primeira vista, parece exagerada a suficiência de apenas um dos três requisitos. Mas, de fato, é implausível que na situação concreta se verifique uma candidata com votos e recursos, mas sem atos de campanha; ou com recursos e atos de campanha e sem votos; ou ainda com recursos e votos, mas sem atos. Parece inusitado, ainda, que se divulgue a candidatura de terceiros com outra finalidade senão a de cooperar na fraude.

A parte inicial da súmula menciona ainda “quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir”. A redação recorda o polêmico artigo 23 da Lei Complementar nº 64 de 1990:

Art. 23. O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.

Em outra ocasião [3], tivemos a oportunidade de indicar o artigo 23 como um anti-herói da legislação eleitoral. Seu enunciado é considerado por parte da doutrina como uma afronta aos princípios de valoração cognitiva do direito processual contemporâneo e dá margem para o voluntarismo judicial.

Contudo, sugerimos naquela ocasião que, no caso das “provas diabólicas” necessárias à demonstração da fraude em cota de gênero, a apreciação de indícios e presunções é uma alternativa legítima diante da necessidade de transformação político-social que a ação afirmativa busca atingir. Em outras palavras, se o objetivo político foi pré-estabelecido pelo legislador, por que não permitir ao magistrado valer-se de uma ampla cognição para atingi-lo?

Chamávamos o artigo 23 de “superpoder supérfluo”, pois as cortes hesitavam em aplicá-lo. Não mais. A Súmula nº 73 avança ao assegurar a permissão da Corte para avaliarem-se “os fatos e as circunstâncias do caso concreto, posto que não flanqueie a mesma pungência do dispositivo da LC64/90.

Cassação de legenda

Sobre as consequências do ilícito, fica estabelecida a cassação da legenda. Com isso são afastadas as teses de dolo, cuja prova jamais se estabelecia uma vez que a candidata ficta é, a um só tempo, vítima e algoz da fraude.

O argumento consequencialista, segundo o qual a política afirmativa para inserção das mulheres não poderia ter por consequência a cassação de uma mulher eleita, fica, por ora, descartado. O meio de técnico para alterar o resultado eleitoral é a nulidade de todos os votos direcionados aos candidatos do partido e consequente recontagem dos quocientes. Para prosseguir no debate, a tese consequencialista aventada no julgamento de Granjeiro (CE) [4] terá de enfrentar o desafio hermenêutico de justificar a manutenção do mandato da mulher eleita a despeito do quociente eleitoral insuficiente.

Logo após o caso Granjeiro, foi julgado Reginópolis (SP) [5], em que o tema ficou assentado, afastando tal argumento. O caso de Reginópolis-SP também merece destaque porque o dirigente partidário foi punido com a inelegibilidade, ainda que não exercesse mais o cargo de vereador. No município, houve eleição suplementar, e o então presidente da Câmara elegeu-se prefeito.

É conveniente também destacar que o TSE afastou definitivamente a confusão entre a sanção ao partido, com a anulação dos votos recebidos pela legenda, com teses defensivas sobre individualização das condutas dos parlamentares que perdem seus mandatos. Como a penalidade é aplicada pela conduta ilícita praticada pela agremiação, a cassação dos mandatos é consequência lógica da anulação dos votos obtidos. Sem votos, não há quociente eleitoral atingido. Sem quociente, não há mandato conquistado.

Portanto, a Súmula nº 73 foi feliz em conciliar dois postulados jurídico-interpretativos que dificilmente se relacionam: a segurança jurídica e a equidade. A segurança jurídica foi atingida por meio da enunciação de elementos objetivos aferíveis mediante as plataformas que a própria Justiça Eleitoral disponibiliza (resultado das eleições e prestação de contas). A equidade, compreendida como a faculdade de julgar conforme as particularidades do caso concreto, foi assegurada mediante a valoração dos fatos e circunstâncias.

 


[1] Respe 193-92 (rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 4.10.2019)

[2] 0600357-31.2020.6.26.0087 (Penápolis -SP)

[3] https://www.conjur.com.br/2021-jul-12/direito-eleitoral-provas-robustas-julgamento-candidaturas-laranjas/

[4] REspe – 06000305

[5] AgrRespe – 0600892-33.2020.6.26.0095

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