Opinião

Como ficará o futebol após acórdão do TJ-UE sobre transferências internacionais

Autores

  • Felipe Augusto Loschi Crisafulli

    é doutorando em Direito Civil e mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito Constitucional ambos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e com linha de investigação relacionada ao Direito do Desporto professor de cursos de Direito Desportivo e áreas correlatas coorganizador da obra coletiva Direito Econômico Desportivo (São Paulo: LTr 2019. 146 p.) autor de diversos artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior e advogado desportivo em Ambiel Manssur Belfiore Gomes e Hanna Advogados.

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  • Matheus Laupman

    é advogado associado de Murta Goyanes Advogados (equipe de mídia entretenimento e esportes) mestrando em Direito Desportivo pela PUC-SP gestor esportivo pela FGV/Fifa/Cies auditor assistente do STJD do Futebol membro filiado do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) ex-secretário do TJD–SP do Futebol e ex-responsável pelo Departamento de Filiação da FPF.

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14 de outubro de 2024, 18h28

Divulgação

No último dia 4 de outubro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ-UE) decidiu, em julgamento de especial importância para o mundo do esporte, notadamente para o futebol, que certas regras do regulamento da Fifa (Fifa RSTP) referentes às transferências internacionais de atletas não são válidas, porquanto contrárias ao direito da UE, mais precisamente à liberdade de circulação dos trabalhadores e ao direito concorrencial comunitário.

No caso concreto, Lassana Diarra, hoje aposentado do futebol, contestou algumas das regras constantes do Fifa RSTP, alegando que estas dificultaram a sua contratação por determinado clube belga.

Consoante o artigo 17.2 do Fifa RSTP, quando um atleta encerra, antecipadamente, o seu contrato de trabalho sem justa causa, o clube que deseje contratá-lo será, conjuntamente com o jogador, responsável pelo pagamento de uma indenização a seu antigo clube. Trata-se, pois, de responsabilidade solidária do atleta e de seu novo clube.

O artigo 17.4 do Fifa RSTP estabelece, ainda, que o novo clube do atleta fica sujeito, em determinadas situações, a uma sanção desportiva, consistente na proibição de contratar novos jogadores durante certo período. Trata-se, em essência, de presunção iuris tantum (presunção relativa, a qual admite prova em contrário) de interferência na relação jurídico-laboral do atleta com o seu ex-clube, a qual teria levado à extinção prematura de seu vínculo e à sua seguinte contratação pelo novo clube.

O regulamento da Fifa também prevê (na edição atual, no artigo 3-b de seu anexo 3) que a associação nacional a que o antigo clube está filiado deverá recusar a emissão do Certificado Internacional de Transferência (CTI) em favor da associação nacional a que o novo clube do atleta pertença quando a extinção antecipada do vínculo não decorrer de mútuo acordo entre as partes.

Foi esse, portanto, o conjunto de disposições regulamentares que restou rechaçado pelo TJ-UE por violação à liberdade de circulação dos trabalhadores europeus e ao direito concorrencial comunitário.

Consequências imediatas

A exemplo do que se passou com o caso Bosman, julgado pelo Tribunal Europeu em dezembro de 1995 e responsável pela maior revolução, do ponto de vista jurídico, já observada no seio do futebol mundial, também agora se entende que o RSTP da Fifa acabará por ser alterado, de modo a contemplar o entendimento agasalhado pela Corte Europeia — isto é, a fim de que as disposições que, nas palavras do acórdão, restringem a concorrência e não parecem ser indispensáveis ou necessárias sejam extirpadas de seu arcabouço jurídico-regulamentar.

Spacca

A decisão do tribunal, na prática, faz com que atletas que resolvam os seus contratos de trabalho ante tempus e sem justa causa possam se transferir a outra agremiação sem que esta seja solidariamente responsável pelo pagamento de eventual indenização decorrente da ruptura contratual, além de não mais permitir que as associações nacionais deixem de emitir o CTI nesse tipo de ocasiões, ainda que exista um litígio entre o antigo clube e o atleta no que tange à extinção do contrato.

Em resumo, a decisão não abre, a princípio, margem para se afastar eventual responsabilidade do atleta para com seu antigo clube pela quebra do contrato, mas concede aos interessados em sua contratação proteção jurídica suficiente, no sentido de poderem contratar o jogador sem se preocuparem de serem corresponsáveis, em verdadeira solidariedade, pelos valores a que este porventura venha a ser obrigado a despender em prol de seu ex-clube, como consequência da referida extinção prematura de seu vínculo. Ademais, assegura a ambos (atleta e novo clube) que nenhum impedimento ou obstáculo poderá ser colocado para fins de emissão do CTI e conclusão da respectiva transferência através do sistema da Fifa (Transfer Match System — TMS).

Sem prejuízo, nada impedirá que os clubes contratantes, por ocasião das negociações com os atletas que se encontrem nesse tipo de situação, assumam o compromisso de arcar com tais valores em favor de seus ex-clubes, como forma de assegurar a contratação do jogador.

Haverá consequências para o futebol brasileiro?

A decisão da Corte de Justiça Europeia por si só não acarretará consequências no âmbito nacional. Isso porque a legislação brasileira, em particular o § 2º do artigo 86 da Lei nº 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte), estabelece, de forma expressa, que são solidariamente responsáveis pelo pagamento da cláusula indenizatória esportiva o atleta e o clube para o qual ele venha a se transferir nesse tipo de situações.

De todo modo, é sempre bom se ter em mente que, por estar o Brasil diretamente inserido no contexto desportivo mundial, o legislador por vezes acaba promovendo ajustes na legislação pátria, a fim de acomodá-la às inovações e alterações ocorridas no cenário internacional.

Foi assim, por exemplo, (i) com a Lei nº 9.615/1998 (Lei Pelé), que, na esteira do já referido acórdão Bosman, extinguiu, em março de 2001, a figura do “passe”, e, mais recentemente, (ii) com a Lei Geral do Esporte, que, em linha de conta com as disposições do Fifa RSTP, reduziu de três para dois meses o prazo de atraso no pagamento remuneratório do atleta capaz de ensejar a rescisão indireta de seu contrato, bem como limitou a três anos de duração o primeiro contrato especial de trabalho esportivo de atletas profissionais de futebol (ao passo que, para as demais modalidades, segue em cinco anos tal limite).

Logo, se, no médio-longo prazo, houver alguma modificação legislativa no País, com vista a uniformizar as normas pátrias e as do Fifa RSTP, não se estará, ao fim e ao cabo, diante de uma situação efetivamente nova na história jurídico-legal desportiva brasileira.

Autores

  • é sócio de Ambiel, Belfiore & Hanna Advogados, professor de cursos de Direito Desportivo, Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra/Portugal (com linha de pesquisa na área do Esporte) e coorganizador da obra coletiva “Direito Econômico Desportivo” (LTr, 2019).

  • é advogado em Ambiel, Belfiore & Hanna Advogados, mestre em Direito Desportivo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e gestor esportivo pela FGV/FIFA/CIES.

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