Opinião

Com 'Katchanga Real', Congresso quer colocar o STF contra as cordas

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14 de outubro de 2024, 9h24

Quando a regra do jogo é não ter regra alguma

Dollar Photo Club

Há uma velha estória chamada Katchanga Real (ver aqui). Um esperto jogador desafiou o dono do maior Cassino a jogar Katchanga. O dono do Cassino não sabia como jogar, mas, como jogador, tinha de aceitar. Afinal, o jogo se aprende jogando. A trampa: a cada rodada, o desafiante, de surpresa, jogava as cartas na mesa e gritava “Katchanga”. E recolhia o dinheiro. Assim foi, até que o dono do Cassino perdeu tudo. Inclusive o Cassino.  Só então se deu conta de que a regra do jogo era não ter regras. Vencia quem gritava Katchanga primeiro. E propôs o jogo final. Tudo ou nada. Até o Cassino entrou na aposta.

O esperto desafiante “deu” as cartas. O cassineiro agora estava tranquilo, porque sacou a treta. Assim, aquando o desafiante se preparou para gritar “Katchanga”, adiantou-se e, sorridente, bradou: Katchanga. Ao que o desafiante, com um sorriso e uma onomatopeia entre dentes (tsc, tsc), jogou as cartas e disse: “Katchanga Real”. E ficou com tudo.

Esse parece ser o jogo do Parlamento. Quer ficar com tudo. Para isso, quer mudar as regras a todo momento. Quer “katchangar”. A Katchanga Real é fazer PECs. O STF desagrada? “Façamos uma PEC”. Não é suficiente? “Vamos fazer mais uma, desta vez com o poder de, a cada decisão do STF, o Parlamento dizer ‘Katchanga Real’”. E vencerá. Porque se o Parlamento sempre pode fazer uma nova regra via PEC, será dele a jogada final.

Ocorre que, na democracia, de há muito se estabeleceu que, nesse jogo, quem tem a palavra final para dizer o que diz a regra é o Judiciário. Errando ou acertando, assim prevê a Constituição. Não tem Katchanga na democracia. Katchanga é uma coisa inconstitucional.

O tamanho do pacote katchangal

O pacote katchangal é o seguinte: tem a PEC nº 8/2021, que quer limitar o alcance de decisões monocráticas de ministros do STF. Bom, embora não seja adequado que haja decisão monocrática em jurisdição constitucional — e nisso o parlamento tem razão — isso é matéria de regimento interno (e não de PEC – aliás, já temos 126 emendas, que vão desde farra do boi à reeleição de presidente de tribunal estadual), porque sempre se deve resguardar hipóteses de exceção. Como resguardar as exceções? Mais: uma decisão monocrática replicada de decisão do Colegiado ainda é monocrática?

De todo modo, o grave, aqui, é que o Parlamento quer tirar o poder cautelar de ministro do STF. E isso vai contra qualquer desenho institucional estipulado pelo constituinte. Não se pode fazer seleção de matérias que admitem poder cautelar. Mesmo monocráticas. A jurisdição por vezes o exige.

Mas a Katchanga (Real) considerada a cereja do bolo é a PEC nº 24/2024, que cria a possibilidade de o Congresso revisar decisões da Corte. Se aprovada, os julgamentos do STF poderão ser sustados com o aval de dois terços dos votos no Senado e na Câmara. Fim da autonomia do STF. Fim da autonomia do Direito. O desenho institucional do Estado Democrático de Direito vai para as calendas. Uma katchanga bem “real”.

Mas tem mais. Há um projeto (desta vez, de lei) que estabelece novos crimes de responsabilidade. Os “tipos” são tão abertos (vagos e ambíguos) que basta um olhar atravessado de ministro que já é motivo para ser impichado. Tem até uma hipótese que estabelece crime de hermenêutica. D’onde uma decisão como a do aborto pode gerar impeachment.

Falando sério: cabe, mesmo, impeachment de ministro do Supremo?

Quero, nesse aspecto, introduzir um tema ainda não discutido, o de que o impeachment de ministros do STF, previsto em lei de 1950, não está recepcionado pelo desenho institucional estabelecido pelo constituinte de 1988, ao menos no modo previsto na década de 50 do século passado. Isso se pode ver, até com certa facilidade, pelos novos “tipos” que o projeto pretende, como o que proíbe os ministros de manifestar publicamente suas opiniões sobre “processos pendentes de julgamento”, assim como o que veda o ministro de se expressar sobre “atividades de outros poderes da República” (o que seria isto?).

Mas há mais. O projeto tipifica como crime de responsabilidade “violar  a imunidade material parlamentar” e “usurpar as competências do Poder Legislativo, criando norma geral e abstrata de competência do Congresso” (bom, isso os tribunais superiores — e não só esses [1] —  já fazem de há muito, sendo o Brasil o único país que “faz” precedentes pro futuro, [2]  mas, é claro, isso não pode ser motivo para crime de responsabilidade e muito menos de impeachment).

Isto é, ao menos nos moldes da lei de 1950, remendada ou não, o impeachment não tem mais condições de subsistir perante a CF-88. Ao menos parece inadequado nesse desenho institucional. Para haver impeachment de ministro da Suprema Corte, a discussão tem de ser feita com muitíssimos cuidados. Assim como, aliás, temos de rever o impeachment de presidente da República, cujo procedimento é um queijo suíço. Impeachment de ministro do STF é crise institucional na certa. Que fica sem controle do próprio STF.

Deixando mais claro: o cerne da democracia é que a relação harmônica e equânime entre os Poderes não pode ser fragilizada com constantes ameaças contra ministros da Suprema Corte. Chegamos ao ponto de virar meme o “impichamento de ministro”, inclusive virando plataforma de campanha eleitoral. Espantoso. Todos os dias aparece um candidato ou parlamentar — ou o açougueiro do meu bairro – dizendo: tem de ter impeachment do Xandão etc. Isso é pilhéria. E de mau gosto.

Numa palavra: uma democracia possui responsabilidade política que é regulada institucionalmente e não por ameaças de um poder contra o outro. Imaginemos que, às vésperas de um julgamento relevante, o Senado abra processo de impeachment contra ministros com posição que desagrade o Parlamento.

Daí pergunto: ou temos uma democracia para valer ou vamos continuar com essa lenda urbana de ameaças constantes? Já não chega a dos militares e da ameaça intervenção dos tempos do governo que acabou em 2022 e que culminou em tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023?

No Estado Democrático, o Direito tem um elevado grau de autonomia. Na constituição brasileira, isso é garantido pelo STF.

Explico melhor: o Direito é produto da conjunção da economia, da política e da moral. Veja-se: o produto do trabalho dos três (pensemos no processo constituinte) gera um quarto elemento que, paradoxalmente, tem a função de controlar/filtrar os seus produtores. Estranho?

Spacca

Pois é assim que se constrói uma democracia. É assim que funcionam os regimes democráticos. Na legalidade. No constitucionalismo. E se é o Direito que deve filtrar os seus produtores (política, moral e até mesmo a economia — veja-se a constituição econômica!), esse Direito deve (e é) gerido, em última ratio, pela jurisdição constitucional, a cargo da Suprema Corte. É assim que é o desenho institucional — expressão que parece desconhecida para muita gente no Brasil — e se produzem os diálogos institucionais. Não tem outro jeito.

O resto é bazófia. E autoritarismo disfarçado. A Constituição é norma jurídica e não só uma carta de intenções. É o estatuto jurídico do político. Do econômico. E da moral. Por isso um Poder — o Judiciário — tem o poder de dizer o seu sentido por último. Pode errar. Mas isso faz parte do jogo. Cujas regras não estão à disposição de qualquer desafiante que venha dizer Katchanga ou, pior, “Katchanga Real”.

Numa palavra: o que é isto — a soberania total do parlamento? De como a democracia não admite katchangas

Eis uma sina brasileira: a velha retórica que pretende aplicar o “geral” a todo “particular”. Explico. Pega-se uma ideia de “soberania” ou “supremacia” do parlamento, princípio democrático, mas se o joga como uma justificação para que o parlamento possa fazer qualquer coisa (dar as cartas!).

É aí que está o problema. Por que queremos soberania do parlamento em primeiro lugar? Justamente porque, como princípio democrático, é um dos sustentáculos da democracia contemporânea (afinal, todo poder emana do povo).

E aí está o busílis: uma democracia em que o parlamento faz qualquer coisa livremente, inclusive controlar em absoluto o judiciário, por meio de impeachment de ministros e modificação-sustação de decisões, vira uma “democracia plebiscitária”. E democracia plebiscitária já não é uma democracia. É isso mesmo que querem(os)? Bom, aí tudo bem. Mas cuidado. Estão preparados para as últimas consequências?

Sou mais ortodoxo. Prefiro uma democracia em que o Judiciário tenha seu próprio papel. Vou com Tom Bingham, adaptando sua metáfora. Não gosta do judiciário? Imagine um país sem ele. Não gosta das garantias? Imagine quando for você precisando delas.

Soberania do parlamento é princípio democrático. Mas não é super trunfo para esmagar o judiciário. Se for, já não é mais princípio democrático. É instrumentalização ad hoc de um princípio geral para uma aplicação particular que, no fim das contas, é antidemocrática.

Não esqueçamos. O Parlamento quer fazer Katchanga contra o Supremo, mas esquece que o maior contendor na jurisdição constitucional é ele mesmo, por meio dos partidos políticos. Com pedidos de liminar. E o Parlamento reclama que o STF “tem muita jurisdição”? A propósito: ainda existem dezenas de artigos da Constituição pendentes de regulamentação.

Levemos o Direito a sério. A democracia, que deve ser feita no e pelo Direito, não admite Katchanga. Nem a “standard” e nem a “real”.

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[1] Até o Tribunal de Justiça do Amazonas cria súmula contra legem.

[2] Aqui a culpa dessa crescente criação judicial do Direito (jurisprudencialização) também é da doutrina, que, com raríssimas exceções, se queda silente diante do fenômeno. Mais um detalhe: nesse contexto, também não é possível concordar com o discurso do min. Barroso quando disse, no II Fórum Internacional em Roma, semana passada, que “ativismo judicial é um mito e que o Brasil vive harmonia entre os Poderes”. Não, não é um mito. Isso já está comprovado por fatos, atos e pesquisas.  E a harmonia não está tão harmônica assim. De todo modo, é tarefa da doutrina jurídica e dos juristas preocupados com essas temáticas encontrar soluções e modos de criar critérios para diminuir o grau de discricionariedade e livre criação do Direito nas decisões, mormente naquilo que chamamos de “precedentalismo à brasileira”. Sou insuspeito quanto a isso, porque semanalmente bato nessas teclas.

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