Processo Familiar

Se exonerar de alimentos fixados em acordo é conduta contrária à boa fé objetiva

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

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13 de outubro de 2024, 8h00

É fora de dúvidas que um acordo de alimentos, celebrado entre os cônjuges por ocasião do divórcio, depois de homologado e parcialmente cumprido, constitui ato jurídico perfeito, ou seja, ato já concluído e com produção de efeitos jurídicos que não pode ser alterado ou revogado, nem mesmo por mudança de postura da jurisprudência. Para Maria Helena Diniz, o ato jurídico perfeito “é o que já se tornou apto para produzir os seus efeitos, uma vez que se aperfeiçoou pela verificação de todos os seus elementos constitutivos. É ato consumado por não depender de nada para ter plena eficácia” [1].

Spacca

Para Pontes de Miranda, “o contrato pelo qual o alimentante reconhece o dever de alimentar, e fixa a prestação, não pode nem mesmo ser anulado por erro, ou revogado, ainda que se venha “a provar-se que não precisava de alimentos o alimentando, ou que deles não precisava na medida em que foram fixados” [2]. Ainda se referindo ao desquite, mas se mantendo sua doutrina plenamente aplicável ao divórcio amigável, ensina o jurista alagoano:

“(…) a lei faculta aos cônjuges desquitandos regularem sua situação de comum acordo, sujeito este à homologação judicial. Destarte, quando estabelecerem, regulando seus direitos e obrigações em face um do outro, não poderá ser alterado senão pelo concurso das vontades de ambos, fonte dos mesmos direitos e obrigações. É o que sucede no desquite amigável, com as limitações impostas pelos princípios da moralidade e ordem pública.” [3]

Portanto, salvo as hipóteses de alteração da capacidade financeira de quem paga, se a pensão foi estabelecida em acordo por mútuo consentimento, a exoneração ou redução, que importaria “alteração do acordo avençado, não poderia ser obtida senão pela forma por que foi estabelecida, isto é, pelo concurso de vontades das partes contratantes” [4].

Torpeza

Pretender o devedor de alimentos exonerar-se do pagamento, após haver assumido, e cumprido, a obrigação contratual alimentar ao longo dos anos, sem que qualquer alteração sobrevenha à sua capacidade econômica, implica flagrante violação da boa-fé objetiva, a permitir que a parte que participou e anuiu com o ato jurídico possa, posteriormente, impugnar a sua higidez, locupletando-se da própria torpeza.

Trata-se de manifesto comportamento contraditório, vedado pela ordem jurídica. Incidem, aqui, as figuras parcelares da boa-fé objetiva, como é o caso do venire contra factum proprium, da supressio ou da surrectio para afastar a pretensão de exoneração.

A aplicação dessas figuras parcelares, especialmente a do venire contra factum proprium, decorre do preenchimento de quatro pressupostos: I) uma conduta inicial; II) a legítima confiança surgida em razão deste comportamento; III) uma conduta contraditória em relação ao comportamento inicial; IV) um prejuízo, potencial ou concreto, causado pela contradição.

Ora, se o devedor participou da elaboração do acordo de alimentos, por meio do qual assumiu a obrigação vitalícia de ceder parte dos seus rendimentos para o ex cônjuge, e o acordo foi submetido ao Poder Judiciário e homologado por sentença, não tendo sido objeto de recurso ou qualquer impugnação, e foi cumprido integralmente por vários anos, deve ser protegida a legítima confiança do credor de que o comportamento seria mantido.

Em outras palavras, se o devedor anuiu e assinou o acordo, em caráter irrevogável e irretratável, aceitando expressamente todas as suas cláusulas, não pode posteriormente, em atitude de nítido arrependimento superveniente, pretender se desvencilhar das obrigações assumidas, privando o credor de legítimas expectativas consolidadas ao longo dos anos (conduta contraditória em relação ao comportamento inicial e prejuízo concreto causado pela contradição).

A doutrina contemporânea defende a prevalência da boa-fé sobre as regras processuais, a ponto de admitir, até mesmo, a possibilidade de convalidação das nulidades materiais, quando confrontadas com a boa-fé objetiva, ou seja, o chamamento ao venire contra factum proprium para impedir a impugnação de um ato nulo. Com muito mais razão não se pode admitir o comportamento contraditório de quem assume obrigação contratual irrevogável e depois demonstra arrependimento, ainda que se trate de obrigação alimentar.

É possível, assim, a invocação do nemo potest venire contra factum proprium para impedir a impugnação do Acordo de Alimentos por parte de quem o celebrou, ainda que os alimentos não transitem em julgado, sem prejuízo a que a efetiva incidência do princípio se submeta à ponderação, em concreto, entre o interesse público existente por trás da possibilidade de alteração do valor dos alimentos e o interesse, também público, na tutela da confiança e da solidariedade social.

Não havendo o devedor jamais impugnado a declaração de vontade manifestada no Acordo, havendo participado de todas as tratativas e subscrito o pacto, não se opondo à sentença de homologação, cumprido o pactuado por anos,  e sem que qualquer alteração a menor tenha se verificado nos seus rendimentos, não pode em momento subsequente, violando o princípio da tutela da confiança, pretender a exoneração ou redução da obrigação, muito menos arguir que o credor tem condições de se manter, quando essas condições já eram conhecidas dele no momento em que celebrado o acordo.

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[1] DINIZ, Maria Helena. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 8.

[2] MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo IX: Direito de família: direito parental. Direito protectivo. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1.971, p. 219

[3] MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo IX: Direito de família: direito parental. Direito protectivo. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1.971.p. 215

[4] MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo IX: Direito de família: direito parental. Direito protectivo. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1.971 p. 214.

Autores

  • é doutor em Direito Civil (USP). mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), membro da Comissão Especial do Senado para Reforma do Código Civil (Relator da Subcomissão de Sucessões), professor e advogado.

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