Opinião

Resolução 586/2024: em nome dos direitos fundamentais e da democracia?

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  • Thereza C. Nahas

    é pós-doutora e doutora pela Universidad Castilla La-Mancha (campus Albacete/Espanha). Doutora pela PUC-SP. Acadêmica titular da Cadeira 43 da ABDT. Juíza do Trabalho (TRT-SP). Membro da Academia Iberoamericana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Professora colaboradora da Universitat Oberta de Catalunya. Professora visitante na Faculdade de Direito de Milão no programa de doutorado. Professora visitante na PUC-RS e professora convidada na PUC-SP. Membro da Asociación Española de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social.

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13 de outubro de 2024, 6h06

Rômulo Serpa/CNJ
CNJ decidiu que auxílios e gratificações e de juízes afastados não devem ser pagos

Sob fundamento da necessidade de se enfrentar o alto índice de litigiosidade na Justiça do Trabalho, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 586, de 30/9/2024. O documento contém cinco artigos e sua leitura leva à conclusão de que o conselho pretendeu disciplinar o procedimento das homologações da transação extrajudicial submetidas à jurisdição trabalhista e, também, o instituto da transação em si, direcionando a apreciação do juiz no ato de homologação.

O artigo 1º tem natureza imperativa e sua redação impõe, como regra geral, a homologação da transação submetida ao Judiciário. Restringe a atuação do órgão jurisdicional à apreciação do negócio jurídico que lhe é submetido, às condições determinadas naquele dispositivo.

São elas: (1) expressa previsão pelas partes de que o negócio jurídico tem efeito irrevogável e de quitação ampla;
(2) a necessária representação da parte por um advogado ou pelo sindicato, ficando vedada a constituição de um único patrono para ambos os contratantes;
(3) a necessária assistência dos contratantes relativamente ou absolutamente incapazes por seus representantes legais; e,
(4) inexistência de vícios de vontade ou sociais sendo vedada a presunção do respectivo vício ante a aplicação do princípio da hipossuficiência do trabalhador.

Em seu parágrafo único dispõe que a quitação não alcançará situações que não são do conhecimento da parte no momento em que a negociação é entabulada como, por exemplo, a sequela de um acidente ou doença profissional. Também não estará coberto pela imutabilidade dos negócios concretizados, pretensões de pessoas que não participem expressamente dele, seja por si mesmo ou representadas ou substituídas, bem como títulos e valores expressamente ressalvados.

O CNJ foi criado na EC 45/2002, para ser “uma instituição pública que visa a aperfeiçoar o trabalho do Judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual”; com a missão de “promover o desenvolvimento do Poder Judiciário em benefício da sociedade, por meio de políticas judiciárias e do controle da atuação administrativa e financeira”; e sua visão deveria ser pautar na “governança e gestão do Poder Judiciário, a garantir eficiência, transparência e responsabilidade social da Justiça brasileira” [1].

Como se vê, o conteúdo da resolução que acaba de ser publicada, impõe um procedimento processual inclusive com critérios para o juiz apreciar e julgar o negócio jurídico, podendo-se dizer que regula, ainda, o instituto da transação em matéria trabalhista.

Interpretação restritiva e nulidades

Primeiro ponto a considerar é que a homologação de transação é sentença e gera todos os efeitos deste ato judicial que coloca fim à prestação jurisdicional em primeira instância. Segundo, que a transação é negócio jurídico e importa em concessões mútuas sobre direitos patrimoniais disponíveis visando as partes prevenir ou terminar litígios (artigo 840, CC).

Interpreta-se a transação de forma restritiva (artigo 843, CC) e aproveita aqueles que nela intervieram, ainda que diga respeito a coisa indivisível, observado: (1) se for concluída entre o credor e o devedor, desobrigará o fiador; (2) se entre um dos credores solidários e o devedor, extingue a obrigação deste para com os outros credores; (3) se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores (artigo 844, CC).

Spacca

No rol das nulidades ou impedimento de prevalência do que for transacionado, há que considerar que (1) transação só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa; (2) não se anula por erro de direito a respeito das questões que foram objeto de controvérsia entre as partes; (3) será nula a transação a respeito do litígio decidido por sentença passada em julgado, se dela não tinha ciência algum dos transatores ou quando, por título ulteriormente descoberto, se verificar que nenhum deles tinha direito sobre o objeto da transação (artigo 849 e 850, CC). Como se vê, normas que contrariam a própria resolução.

Conselho desvirtuado

Feitas tais considerações e assistindo à polêmica proposta da CCJ da Câmara sobre pacote de medidas que limita os poderes do STF [2], a primeira reflexão que faço é quanto à limitação dos poderes do CNJ. A comparação entre as funções e missões deste conselho com o conteúdo da resolução que ora se comenta leva à conclusão de que, efetivamente, há desvirtuamento dos objetivos constitucionais que criaram este órgão.

A resolução cria o instituto da transação trabalhista, instituto de natureza material, que deveria ser regulamentado na CLT ou num Código do Trabalho, instrumento em relação ao qual parece não haver vontade política de discussão ou aprovação; ou, como mínimo, conservar a aplicação subsidiária do Código Civil. Além disso, cria um procedimento vinculativo ao Poder Judiciário Trabalhista, direcionando as decisões dos magistrados, especialmente no primeiro grau de jurisdição, em que a maioria das demandas trabalhistas são oferecidas.

Tal afirmação vem confirmada no voto do ministro Barroso, asseverando que a proposta da resolução se deu por unanimidade do conselho e tem como razoes de decidir,

A excessiva litigiosidade torna incerto o custo da relação de trabalho antes do seu término e pode desencorajar investimentos necessários à criação de postos formais de trabalho. A disciplina dos requisitos para que acordos extrajudiciais homologados pela Justiça do Trabalho tenham efeito de quitação ampla, geral e irrevogável previne litígios e gera segurança”.

Me arriscaria a afirmar que a motivação fere o artigo 26 da Convenção Interamericana os Direitos Humanos, que tutela direitos sociais e econômicos em harmonia e veda o retrocesso social infundado e, frontalmente, a Constituição, que dispõe no artigo 170 que a ordem econômica deve ser pautada na valorização do trabalho humano e o acesso efetivo a justiça e a ordem processual justa, sem enumerar os inúmeros dispositivos do CPC que garantem a imparcialidade e independência da apreciação da prova e do julgamento.

Parece indiscutível que a resolução, já em vigor, tem conteúdo legislativo, ofende as funções dos Poderes e do próprio CNJ, tolhendo a liberdade de apreciação das demandas que são submetidas ao Judiciário Trabalhista.

Parece que a discussão deveria pautar-se no instrumento em si dessa resolução. Alexandre Agra Belmonte em defesa da aprovação de um Código de Processo do Trabalho assevera que “a complexidade das relações trabalhistas exige um código específico” [3]. Isto é, não precisamos de uma ação administrativa produzida no centro de um órgão que não tem atribuição para tanto e que deveria exigir e zelar pelo cumprimento da legislação nacional.

O sistema legislativo brasileiro atribuiu aos tribunais uniformizar a jurisprudência. A CLT, mesmo desatualizada, não parece ser o motivo da excessiva litigiosidade. Às omissões da norma trabalhista aplica-se supletivamente ou subsidiariamente o Código Civil e o Código de Processo Civil, sendo desnecessária a intervenção do CNJ na criação de normas. A pergunta que fica entre os juízes é, a contrariedade de interpretação à lei, submete a decisão ao recurso nos tribunais. E a contrariedade à resolução, desafiará reclamação disciplinar?

 


[1] CNJ: quem somos, disponível em https://www.cnj.jus.br/sobre-o-cnj/quem-somos/, 10/10/2024

[2] Record News: CCJ da Câmara aprova proposta que limita decisões individuais de ministros do STF (09/10/2024), disponível em https://noticias.r7.com/brasilia/ccj-da-camara-aprova-proposta-que-limita-decisoes-individuais-de-ministros-do-stf-09102024/,  acesso em 9/10/2024.

[3] CONJUR: ANGELO, Tiago, Justiça do Trabalho precisa de código de processo próprio, afirma ministro (08/10/2024) disponível em https://www.conjur.com.br/2024-out-08/justica-do-trabalho-precisa-de-codigo-de-processo-proprio-afirma-ministro-do-tst/, acesso em 8/8/2024

 

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