Opinião

Novo tipo penal de feminicídio e outras alterações

Autores

  • Emerson Castelo Branco Mendes

    é professor Unichristus e Notorium defensor público do Ceará e doutor em Direito.

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  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

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13 de outubro de 2024, 15h44

Com o fundamento na necessidade de reforçar a proteção jurídica das mulheres no Brasil diante da evidência dos altos índices de violência de gênero, o Projeto de Lei nº 4.266/2023 foi proposto pelo parlamento com a finalidade de corrigir deficiências no tratamento penal dos crimes cometidos contra a mulher, especialmente em relação ao feminicídio.

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Além de criar um tipo penal autônomo do feminicídio e recrudescer a moldura penal para a mais alta do ordenamento jurídico brasileiro, o projeto visava a preencher as lacunas legislativas existentes e garantir que a violência de gênero, seja ela doméstica ou em contexto de discriminação ou menosprezo, seja combatida de forma integral, dura e eficaz.

A violência contra a mulher é um fenômeno multifacetado, que envolve questões culturais, sociais e institucionais. Ao transformar o feminicídio em crime autônomo e ampliar sua pena e as medidas de proteção, além do efeito pedagógico e preventivo, a nova norma se alinha a esforços internacionais e nacionais de promoção dos direitos das mulheres, em especial sua vida e sua autonomia.

Contudo, ainda que se reconheça a necessidade de repressão penal na contenção da violência feminicida, sabe-se ser algo secundário, porque o problema guarda grande complexidade. As reflexões sobre o tema não podem ser reducionistas, criando a fantasia da solução com o Pacote Antifeminicídio, porque termina desviando o foco dos motivos determinantes da violência contra a mulher.

Os motivos determinantes do feminicídio são profundamente estruturais, culturais e históricos. Os círculos de criminalidade espelham a sociedade. A violência de gênero encontra-se espelhada na sociedade que historicamente desvaloriza e discrimina a mulher. O menosprezo e a discriminação de gênero integram as relações sociais e familiares. A desigualdade de poder entre homens e mulheres permanece enraizada na estrutura da sociedade brasileira, apresentando-se como um dos principais fatores que contribuem para ações feminicidas.

A diminuição da distância do idealismo constitucional para a realidade prática é o desafio para a redução do feminicídio no Brasil. O Estado deve concretizar políticas públicas eficazes e abrangentes que promovam os direitos das mulheres, garantindo sua segurança e igualdade de condições. A educação desempenha um papel central nesse processo, porque a baixa qualidade do ensino sobre questões sensíveis como igualdade de gênero e respeito às diferenças impede as mudanças culturais necessárias. A educação, quando orientada de maneira inclusiva e transformadora, pode desconstruir estereótipos e promover novas formas de relação entre os gêneros, baseadas no respeito e na equidade.

Spacca

Não se pode perder de vista que o feminicídio é a face mais extrema de um ciclo de violências físicas, psicológicas, sexuais, morais e patrimoniais, muitas vezes negligenciadas pelas agências de controle. Deste modo, o desafio da redução do feminicídio no Brasil é multidimensional. Como fenômeno complexo de violência, o feminicídio jamais será enfrentado com movimentos sediados em ideias de lei e ordem, direito penal do inimigo, dentro outras ideias incompatíveis com a ordem constitucional. O caminho passa por mudanças estruturais profundas e, por seguinte, ainda será longo, mesmo após o Pacote Antifeminicídio.

Lei 14.994/2024

A nova Lei do Feminicídio, agora publicada, promove alterações significativas em várias leis, incluindo o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal, a Lei Maria da Penha e a Lei dos Crimes Hediondos. Essas mudanças visam, em primeiro lugar, a tratar o feminicídio como crime autônomo, além de incrementar as penas, redesenhando as majorantes aplicadas ao delito, ampliando alguns efeitos penais da condenação etc.

A nova lei busca reforçar a responsabilização dos agressores por meio de efeitos penais adicionais, como a proibição de assumir cargos públicos e a perda de direitos familiares em situações de violência doméstica.

A nova legislação também define, sistematiza e incrementa as penas de outros delitos relacionados à violência de gênero, seja com o aumento da moldura penal de qualificadoras, seja com a ampliação de causa de aumento (majorantes). Ocorrem também severas alterações na progressão de regime e relativamente aos benefícios da execução penal.

A novidade legislativa também prevê a adequação de dispositivos processuais para garantir uma tramitação mais célere dos casos que envolvem violência contra a mulher e reflete a intenção do legislador de garantir uma resposta mais eficaz do sistema jurídico à violência de gênero.

Autonomia do crime de feminicídio

O feminicídio estava previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde 2015, quando foi incluído pela Lei nº 13.104, com alterações posteriores das Lei nº 14.344/2022 e Lei nº 13.771/2018. Porém, se tratava de uma qualificadora do crime de homicídio, ao lado de outras, embora com a possibilidade de aplicação de majorantes específicas a esta qualificadora.

Agora, com a nova lei, ganha autonomia e se torna um tipo de crime de homicídio, tal como ocorre, desde a redação originária do Código Penal, com o crime de infanticídio. Esse tratamento autônomo reflete uma abordagem mais rigorosa e específica, que visa a destacar a natureza odiosa desses atos. Deste modo, a legislação busca combater a impunidade e a alta prevalência da violência contra a mulher, proporcionando maior proteção às vítimas e punições mais severas aos agressores.

O feminicídio, agora previsto no artigo 121-A do Código Penal, é definido como o ato de matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino, repetindo substancialmente a redação anterior e, neste ponto, não trazendo nenhuma novidade legislativa relativamente à previsão típico normativa do caput ou mesmo quanto à introdução ou supressão de alguma elementar.

Como na redação anterior, a previsão típica destaca que o crime ocorre quando há supressão da vida da mulher realizada com violência doméstica e familiar ou quando o homicídio é motivado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. As elementares do tipo exigem que o crime esteja diretamente, mas não exclusivamente, relacionado a essas condições, estabelecendo uma diferenciação clara entre o feminicídio e outras formas de homicídio.

Quando exige no feminicídio que a motivação do agente esteja atrelada à condição de sexo feminino da vítima — violência doméstica ou familiar; discriminação e o menosprezo — o legislador  toma o cuidado de especificar essas condições para garantir que o crime seja adequadamente distinguido de outros homicídios, reforçando a importância do reconhecimento das causas que levam à prática desse tipo de violência.

O bem jurídico protegido é a vida humana extrauterina, com ênfase especial na proteção da dignidade e integridade física e psicológica da mulher. O tipo penal decorre do reconhecimento de que a mulher, historicamente, foi colocada em uma posição de vulnerabilidade, inclusive pelo próprio Estado, como se pode verificar de inúmeras legislações e práticas que submetiam à mulher uma injusta e irracional posição de inferioridade em relação ao homem.

O sujeito passivo do crime de feminicídio é a mulher, abrangendo a mulher trans, conforme orientação prevalente na doutrina e decisão do STJ (HC 541237). A motivação do crime deve estar diretamente relacionada à condição de mulher da vítima, seja em função de violência física, psicológica ou simbólica.

Já na posição de agressor, pode ser qualquer pessoa de qualquer gênero, inclusive no âmbito de relações homoafetivas entre mulheres quando previu que “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (artigo 5º, Parágrafo único). Neste mesmo sentido, o STJ (HC 277.561) decidiu que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem quanto a mulher. Embora a violência de gênero possa ser exercida tanto por homens quanto por mulheres, na maioria dos casos o sujeito ativo é pessoa do sexo masculino.

No caso de concurso de agentes, a alteração normativa inclui o § 3º ao artigo 121-A, determinando de forma expressa que “comunicam-se ao coautor ou partícipe as circunstâncias pessoais elementares do crime previstas no § 1º deste artigo”.

Agora considerado como crime autônomo, outro debate poderia se iniciar sobre a incidência da norma penal sobre eventuais coautores ou partícipes sem a mesma motivação do autor. O acréscimo do §3.º ao artigo 121-A não deixa qualquer dúvida, porque se estende aos coautores e partícipes por expressa opção do legislador.

É importante destacar que o feminicídio pode envolver uma série de agressões prévias à morte da vítima, como violência física, psicológica ou ameaças, que podem ser parte do contexto da violência de gênero. Contudo, o crime só se consuma com o resultado morte. Se houver agressões que não resultem em morte, o agente poderá responder por lesão corporal, em concurso de crimes ou de forma continuada, ou tentativa de feminicídio, dependendo da extensão das lesões e da intenção de matar.

Classificação e retroatividade da lei

Doutrinariamente, a nova figura penal do feminicídio possui a seguinte classificação: comum, porque pode ser praticado por qualquer pessoa; simples, porque lesiona apenas um bem jurídico; de dano, porque causa uma lesão efetiva; de ação livre, porque pode ser praticado por qualquer meio; instantâneo de efeitos permanente, porque, na forma consumada, os efeitos da ação de matar são permanentes; material, porque somente se consuma com a ocorrência do resultado morte da mulher.

No tocante à retroatividade, a nova lei que tipifica o feminicídio não pode retroagir para alcançar fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor, em obediência ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, previsto no artigo 5º, XL, da Constituição.

A irretroatividade da lei penal garante a segurança jurídica dos atos já praticados, impedindo que os agentes sejam punidos por condutas que, no momento de sua prática, não configuravam feminicídio. Isso não significa, contudo, que os crimes de homicídio contra mulheres antes da vigência da nova lei sejam tratados de forma branda, pois as qualificadoras de homicídio podem ser aplicadas, especialmente em casos que envolvem violência doméstica ou discriminação de gênero.

Por óbvio, não se pode falar em abolitio criminis em face da revogação do inciso VI do § 2º e os §§ 2º-A e 7º, todos do artigo 121 (artigo 9º da nova lei), pois o novel artigo 121-A opera o que se convencionou tratar como Princípio da Continuidade Normativo-Típica, pois a mesma conduta prevista na norma penal revogada continua sendo crime na norma penal revogadora, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário (STJ — HC 204.416).

Ampliação da pena aplicada

A pena prevista para o feminicídio é de reclusão, de 20 a 40 anos. Passa a ser a maior pena do ordenamento jurídico brasileiro. Antes, quando era uma qualificadora do homicídio, a pena cominada era de 12 a 30 anos.

Além disso, a nova legislação prevê causas de aumento de pena na terceira fase da dosimetria que podem, inclusive, elevar a pena acima da previsão máxima da moldura penal. Ou seja, com a configuração de uma ou mais destas majorantes, mesmo relativamente a apenas uma conduta de feminicídio consumada, a pena pode chegar ao patamar de 60 anos de privação de liberdade.

Algumas das causas de aumento dispostas no §2º do artigo 121-A já tinham previsão anteriormente na norma revogada, o §7º do artigo 121, outras, como fato de a vítima ser mãe ou responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade; ou por ser menor de 14 anos, são novidade na lei.

A nova lei passou a prever como majorante do crime de feminicídio as qualificadoras do crime de homicídio elencadas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do artigo 121 do Código Penal. Como se pode observar, acrescentou três novas causas de aumento de pena:

  • (a) emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
  • (b) traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; e
  • (c) emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido.

A norma penal do feminicídio não estabelece qualquer causa de diminuição de pena. Ao contrário do que ocorreu com algumas das circunstâncias qualificadoras do homicídio, que passaram a ser previstas expressamente como majorantes, o legislador escolheu por não transplantar as hipóteses de homicídio privilegiado para dentro do novo tipo penal de feminicídio.

O feminicídio é classificado como crime hediondo, pois consta na nova lei a inscrição do artigo 121-A na lista dos crimes desta espécie previstos na Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos). Essa classificação implica uma série de consequências penais, como a proibição de concessão de anistia, graça ou indulto, o início do cumprimento de pena em regime fechado e a progressão de regime mais rigorosa, exigindo o cumprimento de 2/5 da pena para réus primários e 3/5 para reincidentes.

Com a nova lei, a condenação por feminicídio passa a acarretar automaticamente (artigo 92, §2º, III) a perda do poder familiar, da tutela ou da curatela; a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo; e a vedação à nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo desde o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena.

Outras alterações penais

Em relação ao artigo 129, CP, que trata da lesão corporal, houve alteração do patamar mínimo e máximo da qualificadora da circunstância de ser cometido o crime em violência doméstica (§9º), antes com pena de detenção, de três meses a três, agora com pena de reclusão de 1 a 4 anos.

Os artigos 141 e 147, do Código Penal, foram modificados para incluir a duplicação da majorante, e o artigo 21, da Lei das Contravenções Penais, teve causa de aumento triplicada, em casos de crimes cometidos contra mulheres por essa razões da condição de sexo feminino. Relativamente ao crime de ameaça, expressamente impõe ação penal pública incondicionada se for cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino (artigo 147, §3º).

O artigo 7º  altera o artigo 24-A da Lei Maria da Penha para ajustar a pena do crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência. A pena prevista que antes era de detenção, de três meses a dois anos, passou a ser de reclusão de seis meses a dois anos.

Modificação na LEP

A nova lei traz alterações à Lei de Execução Penal para vedar ao condenado por crimes contra a mulher o direito à visita íntima (artigo 41); transferência do condenado para estabelecimento penal distante do local de residência da vítima (artigo 86); inclusão de um novo critério para a progressão de regime, sendo primário, após o cumprimento de 55% da pena, sem direito a livramento condicional; obrigatoriedade do uso de monitoramento eletrônico para condenados por crimes contra a mulher, quando estiverem em gozo de qualquer benefício que envolva a saída do estabelecimento penal (artigo 146-E).

Embora essas mudanças busquem garantir uma maior segurança para as vítimas de violência doméstica e familiar, evitando novos confrontos ou ameaças após a condenação, sua generalização é de constitucionalidade  duvidosa, de forma que a aplicação deve ser analisada detalhadamente no caso concreto.

Alterações processuais

A lei também busca garantir a tramitação prioritária de processos que envolvem crimes contra a mulher, de forma a assegurar que a justiça seja aplicada de forma mais ágil e eficiente. Isso diminui o risco de impunidade, responde à urgência da proteção das vítimas, e visa a prevenir novas violências.

Há, ainda, a previsão expressa de isenção de custas judiciais para as vítimas ou seus familiares em casos de feminicídio, reforçando o caráter inclusivo da legislação. A previsão de isenção de custas é uma medida fundamental para garantir o acesso à Justiça para as famílias das vítimas, muitas das quais podem enfrentar dificuldades financeiras após o crime. Essa isenção abrange todos os atos processuais necessários para a persecução penal do feminicídio, garantindo que as famílias possam buscar justiça sem impedimentos financeiros.

A nova legislação reforça a pretensão do legislador de incutir um duvidoso — para não dizer nunca concretizado — caráter preventivo e protetivo ao direito penal, por meio do aumento do rigor na punição, e as mudanças efetivadas refletem justamente o anseio justo, mas de não comprovada efetividade, de garantir a proteção ä mulher por meio de uma resposta penal proporcional à gravidade do feminicídio, considerando as circunstâncias que envolvem maior vulnerabilidade da vítima.

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