Opinião

Estado Social como estado de segurança geral

Autor

  • Tarso Genro

    é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

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13 de outubro de 2024, 6h33

O surgimento do Estado Social, tal qual foi constituído no século 20 — mesmo com suas peculiaridades nacionais — é um episódio histórico vencido que não se repetirá. As formas e os conteúdos de um novo Estado Social, se no futuro tivermos algo semelhante, só poderão surgir a partir de um novo sistema legal/constitucional, com novos fundamentos, novos sujeitos da produção, da política e da cultura, já inscritos num novo tipo de socialidade.

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A globalização em curso, “bate” de forma diferente em cada território: tanto na segurança do Estado, que deve garantir o funcionamento das instituições republicanas; na segurança pública, para que possamos fruir uma vida comum em liberdade; e na segurança nacional, para garantir de que o Estado domine o seu território e proteja os seus cidadãos de qualquer tentativa de dominação externa direta, indireta, física ou cibernética.

A atual sociedade liberal-capitalista será — num futuro próximo — uma sociedade que se formará na nova subjetividade social, influenciada também por indivíduos-empresa — apresentados como cidadãos-modelares — num grau bem maior do que aquilo que ocorre até hoje. A emergência de novos grupos sociais será estruturada em torno de novos modos de vida e em torno de novos tipos de atividades, trabalhos e serviços.

Nova sociedade de classes

As hierarquias morais e culturais, na nova sociedade de classes, serão determinadas pela maior (ou menor) proximidade, material e cultural, com os restritos grupos de poder privado, vinculados ao capital financeiro, com maior (ou menor) de proximidade dos mecanismos de domínio e controle das novas tecnologias. Estas serão as chaves de ingresso nos novos “salões” políticos e culturais dos grupos hegemônicos.

As novas condições do capitalismo não informarão, por si mesmas, um novo Estado Social? Este  não se repetirá como é (ou foi): primeiro, porque ele não está mais contido de forma embrionária, como necessidade econômica objetiva no atual sistema global do capital; e, segundo, porque as condições políticas e contratuais não vão decorrer de um pacto político entre dois sujeitos negociadores, com força hegemônica nos dois campos (ou polos) da sociedade industrial, que estão em franca decadência.

Nesta nova situação histórica, o campo (ou polo) das classes ricas (antes hegemonizadas pela burguesia industrial) não está mais ascensão e o campo (ou polo) do trabalho, das classes pobres (hegemonizadas pelo proletariado industrial) não tem mais força política ou mesmo capacidade de interferir no Estado para concretizar acordos de restauração da velha socialdemocracia.

Quando se firmaram os estados sociais nos países escandinavos, estes foram ampliados e seus modelos foram aplicados em outras nações industrializadas e viabilizaram, nos seus respectivos países, os melhores exemplos e melhores projetos de segurança pública cidadã, que mais se aproximaram da Declaração Universal de 1789.

Nestes novos tempos do século 20 emergiram novas esfinges, para serem decifradas ou enfrentadas na estabilidade-instável, que o século prometia: 1, quem se prepararia melhor para as guerras que varreriam a ferro e fogo, da Europa, o “humanismo” das revoluções burguesas?; e 2, como seriam enfrentadas as revoluções que viriam, já ensaiadas na Revolução de 1848 e na Comuna de Paris, em 1871?

Um terceiro fator de bloqueio de uma segurança pública mais efetiva, que afetaria sobremodo a segurança pública interna e a paz social no Estado de Direito, aparece no vigoroso último terço do século 20. Trata-se do tráfico internacional de drogas, da formação dos estados do narcotráfico e dos seus fluxos financeiros, que contaminariam a política, o modo de vida taylorista-fordista e a estabilidade democrática nos diversos países do mundo dito civilizado.

O impulso dado pelo grande mercado americano e europeu ao consumo de drogas ilícitas, facilitaria a vitória de uma concepção de segurança pública de natureza fascista, contida na teoria da “guerra às drogas” do presidente George Bush, conceito que se irradiaria a partir do “vira-latismo” das elites políticas neocoloniais e da sua sujeição ao império americano. [1]

‘Coults’ psicóticos

“Normalidade” e “anormalidade” convivem, hoje, tanto no mesmo território da subjetividade abstrata das redes sociais manipuláveis, como na macro cultura do divertimento, conjugada com a excitação fascista dos “coults” psicóticos, que levam a maioria dos seus súditos a uma “moralidade” anormal, que passa a ser “normal” e normalizável pelo mercado.

Esta fresta se tornaria um largo conduto de dominação das mentes, que também é sobrevalorizada pelo fato de que o Estado tem “instituições” pouco reativas as demandas mais elementares do povo. [2] Estão presentes, portanto, no imaginário da cidadania que a desigualdade e a insegurança podem chegar nas classes sociais com sinais trocados, mas hoje chegam em todas as classes e em todas as esferas da vida comum.

E o fazem porque o que torna a relação entre a desigualdade social e a segurança das famílias e dos indivíduos, já é concreto na esfera privada e na esfera pública, como uma  nova universalidade concreta que dissolver alguns muros, no Estado de Direito, que separam setores sociais distintos, que se colocam no mesmo barco de exclusão da segurança de grupos sociais de diferentes poder aquisitivo.

A corrente política que mais entendeu a “nova universalidade” foi o bolsonarismo, que ele uniu a sociedade em torno da ideia de que uma necropolítica de eliminação uma parte da “marginalidade” — especialmente vista como de negros e jovens — seria um bom remédio contra o aumento da insegurança.

Na barbárie, que a maioria aprovou, a morte como “solução” para a criminalidade, só aparentemente apagou as diferenças de classe, pois logo nos momentos seguintes ficou visível que nesta política a ampla maioria dos mortos teriam origem nas classes mais pobres, habitantes das grandes periferias urbanas.

Vários autores destacam dois temas radicalmente simples, mas extremamente importantes na sua simplicidade, para desenhar uma nova segurança pública. O primeiro é o tratamento do encarceramento, que pode ser destacado, liminarmente, para dar suporte à presente reflexão, pois é um assunto axial para moldar as fundações de um novo modelo socialdemocrata do Estado Social.

Trata-se do encarceramento massivo, sem a readaptação do encarcerado para voltar à liberdade na vida comum, que permite verificar “um aumento consentâneo da criminalidade e do encarceramento(…) porque existe, na verdade, uma questão de retroalimentação “perceptível” quando se pretende delinear um Sistema de Segurança Pública, especialmente no contexto da América Latina.” [3]. Ou seja, o encarceramento aumenta o número de criminosos, ao mesmo tempo que gera uma ilusão de segurança.

A questão do modo de vida é o outro (segundo tema), que é orientado pelas forças heterônomas do mercado que geram os indivíduos pela ilusão do consumo igual. As “regras” do modo de vida fazem “os comportamentos regulares e normativos, oriundos das práticas de se seguir regras (que já) estão radicadas em nossa forma de vida, se revelarem como sendo um `modo de agir comum dos homens´ (que ocorre) em virtude de os homens compartilharem a mesma forma de vida (que constituem) o sistema de referência, por meio do qual podemos interpretar uma língua desconhecida, e distinguir modos de agir normais daqueles anormais”. [4]

A normalidade e a anormalidade na globalização, principalmente ditada pelas regras do mercado, funde normalidade e anormalidade pela desigualdade do consumo.

Quando fica difícil distinguir o normal do anormal, a lucidez da neurose, a arte da performance, o inconsciente coletivo da sociopatia, os crimes contra a vida dos crimes contra humanidade; quando fica impossível separar os crimes contra a propriedade legítima, dos crimes cometidos contra os detentores ilegais de terras públicas, surge um novo normal: é o novo normal que definiu Hitler e Mussolini, como estadistas de uma época de trevas, quando são negadas as condições de aparição do Estado Social. É aquele que foi soterrado na República de Weimar, pela a agonia das mortes coletivas e pelas cinzas dos Campos da Morte, [5] sob a indiferença da maioria do povo alemão.

*este artigo que reproduz argumentos centrais sobre segurança e novo Estado Social, do Prefácio do livro sobre Segurança Pública (ainda sem título), que será publicado em breve, que contém vários textos, altamente qualificados, como o do Professor Luiz Eduardo Soares “et alii”, ora mencionado.

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[1] CAPELLA, Juan-Ramón.Fruta prohibida : una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del Estado. Madrid- Espanha: Editorial Trotta, S.A.,1997, p.161.: “ Las carencias del mercado supuesta mente autorregulado y del estado policía, o, lo que es lo mismo, la inexistencia de verdaderas instituciones de ajuste y composición racional entre impulsos sociales contrapuestos, salieron trágicamente a la luz en aquella primera gran carnicería del siglo XX.”

[2] GARGARELLA. Roberto. Crisis de la Representación Política. México D.F.. México: Distribuciones Fontamara S.A.,1997, p.13.: “Estos reclamos podrían distinguirse por su carácter reactivo, en contra del modo en que tales instituciones estaban funcionando. Llamaré a estos conflictos “conflictos contra-institucionales,” ya que implicaron desconocer y enfrentar a las instituciones políticas entonces vigentes. La fuente de este primer tipo de conflictos, residió básicamente en la presencia de instituciones poco receptivas de las demandas del electorado (…).”

[3] SOARES, Luiz Eduardo. (Antropólogo, cientista político, escritor, ex-secretário nacional de Segurança Pública) A complexa relação entre segurança pública, democracia e desigualdade. Em fase de elaboração.

[4] ARRUDA JR., Gerson Francisco.10 Lições sobre Wittgenstein. Petrópolis, RJ; Editora Vozes, 2017, p.117.

[5] MARTÍN, Carlos de Cabo. Contra el consenso. Estudios sobre el Estado constitucional y el constitucionalismo del Estado social. México: Universidad Nacional Autónoma de México,1997, p. 257-258.: “Pero, sobre todo, no se dan las circunstancias que en definitiva determinan la aparición del Estado social como “pacto” entre capital y trabajo(…).”

Autores

  • é ex-ministro da Justiça, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, autor de livros e artigos de Teoria do Direito e Teoria Política.

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