Embargos Culturais

Discurso de posse de Clèmerson Merlin Clève na Academia Paranaense de Letras

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13 de outubro de 2024, 7h07

Nos anos 1980, no Paraná, quando começávamos nossa trajetória jurídica e queríamos estudar o direito a fundo, e boquiabertos com a filosofia do direito, queríamos ser Clèmerson Merlin Clève. Circulavam histórias que nos abismavam. Clèmerson teria sido aprovado em primeiro lugar em concursos dificílimos, levando apenas uma Constituição para a última prova, quando todos os demais candidatos levavam malas de livros.

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Líamos o seu livro “O Direito e os Direitos” várias vezes. Tenho comigo uma edição da Acadêmica, verdinha, de 1988. Grampeado no livro, um recorte da Gazeta do Povo, edição de 11 de julho de 1994, com notícia de que a Universidade Federal do Paraná contava com o mais jovem professor de Direito Constitucional do país.

Clèmerson vencia concurso de cátedra, com banca composta por Egas Aragão, Raul Machado, Roberto Rosas, Eduardo de Oliveira Leite e Marçal Justen Filho. Um timaço! Roberto Rosas, autor de “Direito Sumular”, é pioneiro nos estudos de jurisprudência, como fonte privilegiada do direito. A tese de Clémerson é pedra de toque no tema do controle de inconstitucionalidade por omissão.

Clèmerson é diferente

Destacado constitucionalista, é um dos mais citados no Supremo Tribunal Federal. Seu nome já foi cogitado para assumir uma cadeira na corte. Natural de Pitanga, no Paraná, Clèmerson confunde-se com a história intelectual de Curitiba, onde tem uma legião de alunos. É um paranaense notável.

É membro da Academia Paranaense de Letras, ocupando a cadeira 3. Sucedeu a René Ariel Dotti, penalista, que faleceu em 2021. O discurso de posse de Clèmerson é primor da aproximação entre direito e literatura. A posse ocorreu em 22 de novembro de 2021, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, em Curitiba. É o tema dos Embargos Culturais desta semana.

O discurso sugere reflexão sobre emoção e responsabilidade de ingresso nessa renomada instituição. Clèmerson mencionou o impacto que a notícia de sua eleição causara em sua vida, especialmente com referência a seu pai, magistrado e historiador, que também fez parte da Academia.

O acadêmico começou com Borges (no poema Xadrez), uma representação metafórica dos mistérios da vida. No contexto da imperscrutável trama do destino perguntava que Deus atrás de Deus moveria o jogador que move a peça do xadrez. Na apropriação dessa metáfora a sincera pergunta de quem questionava por que estava ali, naquele lugar, ocupando aquela cadeira. Enfatizava a honra de estar ao lado dos confrades, atribuindo sua escolha menos às qualidades pessoais do que à generosidade dos amigos.

Agradeceu a todos que o incentivaram. Refletiu sobre alteridade, comunicação, cooperação. Destacou que, embora dedicado ao mundo jurídico, assumia a missão de contribuir com a Casa, não apenas como jurista, mas como defensor das letras e do conhecimento em diversas áreas.

Ao suceder a René Ariel Dotti, enfatizou que a Academia acolhe não apenas poetas, cronistas, dramaturgos, historiadores. É também espaço para juristas, médicos, cientistas. Retomou a concepção de “representatividade” desenvolvida por Ralph Waldo Emerson. A presença de vozes múltiplas enriquece as instituições.

Analisou o estado da arte da cultura, da ciência e da educação no Brasil. Lamentou o comprometimento dos valores culturais, a desvalorização da ciência e a crescente polarização social e política. Alertou para desafios da era digital, que ao mesmo tempo proporciona acesso ilimitado ao conhecimento e concentra poder. Os efeitos são devastadores: é o “tecnofeudalismo”.

Relembrou a infância e sua permanente relação com livros, leitura e cultura. O acadêmico — jurista revelou preocupação para com a desinformação, o discurso de ódio e a relativação da verdade. São marcas desse tempo sombrio da revolução digital. Lembrou que os grandes grupos econômicos que exploram a tecnologia vêm reconfigurando estruturas tradicionais de troca e de convivência. O resultado é uma inevitável insurgência à própria ideia de liberdade.

Clèmerson é, no entanto, um otimista

Celebrou o acesso democratizado à cultura proporcionado pela tecnologia. Esse admirável mundo novo fomenta o contato com obras e produções artísticas de diferentes épocas e lugares. Porém, e Clèmerson é também realista, o acesso não é universal. Defendeu políticas públicas inclusivas para programas de formação e de educação.

Clèmerson é educador, por isso é muito mais do que professor ou instrutor. Destacou a importância da preservação da tradição literária e artística. É uma compreensão da história como enfrentamento das incertezas de nossos dias. É o tópico da história como mestra da vida, que remonta a Cícero.

Homenageou seu antecessor. Descreveu Dotti como jurista erudito e conferencista brilhante. Destacou a dedicação de Dotti ao ensino e à advocacia, seu compromisso com a justiça e sua habilidade em integrar a racionalidade com a paixão pela defesa dos direitos humanos.  A homenagem também veio em forma de lembrete para com a responsabilidade que o novo acadêmico então assumia.

Clèmerson refletiu sobre si mesmo. Apontou sua busca por uma existência autêntica. Confiante no poder das palavras e das artes como estratégias de superação de desafios, o que para mim nos remete à grande escritora para quem a vida só é possível reinventada (Cecília Meireles).

Expressou gratidão à família, aos amigos e especialmente à esposa, reconhecendo que sua trajetória não teria sido possível sem o apoio incondicional daqueles que sempre estiveram ao seu lado. Encerrou o discurso reafirmando compromisso para com os valores da Academia e com a defesa da cultura, da democracia e dos direitos humanos, destacando que o conhecimento e a tradição são essenciais para que sobrevivamos.

Concluiu com mensagem de esperança e de renovação, lembrando que, mesmo em tempos difíceis, a busca por justiça, conhecimento e solidariedade é esforço contínuo e essencial para a construção de sociedade mais justa e humana. O fecho veio em forma de gratidão à esposa, com a belíssima imagem do verso de Neruda: “Talvez não ser é ser sem que tu sejas”.

O discurso de recepção foi proferido por Ney José de Freitas, jurista e literato, autor de prestigiada tese de doutorado sobre a validade do ato administrativo e o ônus da prova um respeitado juslaborialista, que já presidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, tendo também atuado no Conselho Nacional de Justiça. Ney José de Freitas é um homem de letras, de engajamento e de bondade, como Clèmerson, em tua sua extensão humana.

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