Ambiente Jurídico

A competência licenciatória da União e a Lei Complementar 140/2011

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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13 de outubro de 2024, 12h19

O objetivo deste artigo é analisar, de forma objetiva, a competência da União para licenciamento ambiental de acordo com a Lei Complementar 140/2011. Nesse sentido, analisar-se-ão as suas características, fundamentação constitucional e legal, hipóteses e particularidades.

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Primeiramente, cumpre dizer a que órgão exatamente essa lei se refere ao dispor sobre o licenciamento ambiental em nível federal. Não obstante existam três órgãos ambientais no plano federal, que são o ICMBio, o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, apenas ao Ibama incumbe fazer licenciamento ambiental haja vista o que dispõem os incisos I e II do artigo 2º da Lei 7.735/1989 (Lei do Ibama).

O ministério é o órgão central do Sisnama ao passo que o ICMBio é voltado à gestão das unidades de conservação federais, cabendo ao Ibama o licenciamento ambiental, a fiscalização e a imposição de sanções administrativas nas situações de competência federal.

A Lei Complementar 140/2011 é a norma constitucionalmente legitimada para tratar da repartição de competência administrativa em matéria ambiental, uma vez que regulamentou os incisos III, VI e VII do caput e o parágrafo único do artigo 23 da Constituição para disciplinar a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora. Impende transcrever o que essa lei dispõe sobre o assunto em relação aos três níveis federativos:

Art. 7º. São ações administrativas da União:
(…)
XIV – promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades:
a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe;
b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva;
c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas;
d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);
e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados;
f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999;
g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou
h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento;
(…)

As hipóteses previstas nas alíneas a, b, c, d e e do inciso XIV do dispositivo transcrito guardam evidente semelhança com o art. 4º da Resolução 237/1997 do Conama, fato que inclusive já foi apontado pela doutrina especializada[1]. Entretanto, a troca do critério da extensão geográfica dos impactos ambientais diretos pelo da localização de atividade efetiva ou potencialmente poluidora representa uma relevante mudança no critério para a definição da competência licenciatória federal, pois agora o que importa é o local exato onde o empreendimento se localiza e/ou é desenvolvido, ainda que impacte diretamente outro Estado ou mesmo outro país.

Se a localização é onde se situa a atividade, conceito que de certa forma é autoexplicativo, cabe explicar que o lugar de desenvolvimento é aquele essencial à implementação ou operação, embora nele a atividade não vá se situar, sendo o exemplo mais corriqueiro o de um canteiro de uma edificação ou de obra de infraestrutura. Em outras palavras, o legislador elegeu o caráter geográfico com uma dimensão bem mais previsível e restrita, porque a competência licenciatória federal nesses casos ficou limitada ao espaço territorial diretamente utilizado.

Indubitavelmente, essa foi a mais importante alteração trazida pela Lei Complementar 140/2011 à competência licenciatória federal [2]. Em razão disso, o Ibama editou a Orientação Jurídica Normativa — OJN 43/2012 a esse respeito:

Assim, apesar dos incisos previstos no art. 4º da Resolução Conama coincidirem, em sua maioria, com as alíneas do inciso XIV do artigo 7º da LC n. 140/2011, não se pode ignorar que o critério do caput (artigo 4º), que orientava a aplicação dos incisos, encontra-se revogado. Além disso, houve alterações no texto dos incisos, principalmente referente à definição de competência unicamente pela localização física do empreendi­mento, não mais havendo que se cogitar da abrangência dos impactos diretos ou indiretos causados pela atividade. ­

Assim, se antes um empreendimento localizado, em sua totalidade, em um Estado, mas que causasse impacto direto em outro país ou em Estado diverso, era licenciado pelo Ibama, agora, não há que se falar em com­petência federal. O Ibama será competente, nesse caso, apenas se o em­preendimento ou atividade for contemplado em ato do Poder Executivo (art. 7º, XIV, “h”) ou estiver, fisicamente, localizado ou desenvolvido em mais de um Estado ou extrapole os limites territoriais do país.

Descentralização das atribuições ambientais

O acolhimento desse parâmetro diminuiu o rol de atuação do Ibama, aumentando, por conseguinte, o dos demais entes federativos. Realmente, inexiste, em princípio, outra hipótese de licenciamento ambiental federal senão as situações descritas no inciso XVI do artigo 7º transcrito, já que essa é a competência licenciatória federal originária. Todavia, isso não deve ser visto como um problema, porque guarda consonância com o processo de descentralização das atribuições ambientais previsto na Lei Complementar 140/2011.

De toda sorte, cumpre esclarecer que os padrões de qualidade ambiental não mudam dependendo de quem o faça, devendo o controle ambiental ter a mesma qualidade independente de ser exercido pela União, pelos estados ou pelos municípios.

O licenciamento ambiental da União no Sisnama sempre foi quantitativamente pontual, até porque originalmente essa função sequer existia, pois quando a edição da Lei 6.938/1981 somente aos Estados era dado licenciar [3].

É possível afirmar que a Lei Complementar 140/2011 manteve expressamente essa característica ao conferir aos Estados a competência administrativa residual em matéria ambiental, de maneira que tudo o que não tiver sido atribuído expressamente à União ou aos Municípios será de competência estadual [4].

A competência do Ibama deve ser interpretada sempre de maneira restritiva, não restando dúvida alguma de que o rol transcrito no inciso XIV do artigo 7º da Lei Complementar 140/2011 é taxativo. Por isso, não é de hoje que a AGU defende a taxatividade estrita da competência licenciatória federal, já tendo tratado do assunto de forma reiterada e definitiva por meio da OJN 33/2012 e dos Pareceres Jurídicos 168/2014/CONEP/PFEIBAMASEDE/PGF/AGU [5] e 00012/2016/COJUD/PFEIBAMASEDE/PGF/AGU [6].

Não foi por outro motivo que a União é o ente federativo cuja competência licenciatória foi estabelecida de forma completamente objetiva pela Lei Complementar 140/2011, pois a interpretação de sua atuação deverá se dar da forma mais restritiva possível. Essa sistemática segue o modelo do federalismo tradicional, que outorga as competências expressas à União e as residuais aos Estados para evitar o excesso de poder daquela sobre estes e para garantir uma gestão pública mais descentralizada e democrática [7].

Observe-se, a título de exemplo, a hipótese da alínea c do inciso XIV do artigo 7º da Lei Complementar 140/2011, citada na sentença e que estabelece a competência da União para o licenciamento ambiental de atividades localizadas ou desenvolvidas em terras indígenas. Não é possível aplicar essa regra às áreas das demais populações tradicionais, como quilombolas e ribeirinhos, porquanto é vedada a analogia no que concerne às responsabilidades federais, devendo tais situações serem regidas pelos critérios convencionais da lei [8].

Afora as hipóteses expressamente previstas no inciso XIV do artigo 7º da Lei Complementar 140/2011, existem ainda duas possibilidades de licenciamento ambiental pela União, que são situações consideradas excepcionais: i) atuação supletiva e ii) atuação por delegação. Incumbe compreender essas duas situações, bem como verificar se elas podem ser aplicadas ao caso sob análise.

O inciso II do artigo 2º da Lei Complementar 140/2011 classifica a atuação supletiva como a “ação do ente da Federação que se substitui ao ente federativo originariamente detentor das atribuições, nas hipóteses definidas nesta Lei Complementar”. A norma disciplina o assunto no artigo 15, de forma que o Ibama pode assumir a competência estadual e/ou municipal em caso de inexistência de órgãos ambientais capacitados. Contudo, cuida-se de uma mera hipótese legal, uma vez que não existe Estado que não possua órgão ambiental, cabendo a esses estados exercer a competência supletiva se não houver órgão ambiental capacitado.

Por sua vez, a delegação se encontra prevista nos incisos V e VI do artigo 4º da Lei Complementar 140/2011 como uma das ferramentas de cooperação institucional a serem utilizadas pelos órgãos ambientais integrantes do Sisnama. Além da previsão legal, existe a previsão no artigo 5º de que o órgão delegatário possua órgão ambiental capacitado, uma vez que não seria admissível repassar funções públicas a um órgão ambiental sem a necessária estrutura técnica.

A Instrução Normativa 08/2019 do Ibama regulamentou a delegação da sua competência licenciatória própria para os órgãos estaduais e municipais de meio ambiente. Além da transcrita lei complementar, a possibilidade de delegação está prevista nos arts. 11, 12, 13 e 14 da Lei 9.784/1999 (Lei de Processo Administrativo Federal), sendo, assim, um instituto de uso recorrente no Direito Administrativo brasileiro.

Delegação cautelar

Talvez a maior novidade da norma tenha sido a delegação cautelar, que é a possibilidade de a União delegar uma competência que esteja sob questionamento judicial, de maneira a não interromper a tramitação do licenciamento, conforme estabelecem os §§ 2º e 3º do artigo 2º. Com efeito, não faz sentido esperar anos para saber quem é o órgão competente, se os órgãos envolvidos podem chegar a um consenso, até porque mais importante do que saber quem licencia é que o licenciamento seja feito de acordo com as exigências técnicas e jurídicas vigentes e com a maior transparência possível.

Logo, por exemplo, seria permitido à União celebrar um convênio com o Estado, independentemente do desfecho do processo judicial, para que ocorra a definição cautelar e temporária do órgão licenciador a fim de que o empreendimento não fique paralisado até trânsito em julgado da ação.

Em vista disso, hoje em dia a competência licenciatória regular da União é exercida unicamente pelo Ibama, e se limita às hipóteses previstas no inciso XIV do artigo 7º da Lei Complementar 140/2011. Trata-se de um rol taxativo cuja interpretação deve ser feita sempre de forma restritiva, de forma a se privilegiar os dois demais níveis federativos. De maneira excepcional, pode ocorrer a atuação supletiva, em razão da falta de órgão ambiental estadual e municipal capacitado, ou a atuação por delegação, quando a União recebe em comum acordo uma atribuição não originária sua [9].

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[1] GUERRA, Sidney; GUERRA, Sérgio. Intervenção estatal ambiental: licenciamento ambiental e compensação de acordo com a Lei Complementar n. 140/2011. São Paulo: Atlas, 2012, p. 80. SILVA, Romeu Faria Thomé da.  Comentários sobre a nova lei de competências em matéria ambiental (LC 140, de 08.12.2011).  Revista de Direito Ambiental.  São Paulo: RT, ano 17, vol. 66, p. 55-76, abr./jun. 2012.

[2] Karla Virgínia Bezerra Caribé se posiciona da seguinte forma a respeito do assunto: “Em vista disso, é preciso reconhecer grande mudança na sistemática atualmente vigente de definição de competência. Diferentemente da legislação anteriormente aplicada (Resolução CONAMA nº 237/1997), o Ibama não terá mais competência para licenciar empreendimento, apenas em razão da abrangência do seu impacto ambiental. No momento, ainda que atividade tenha potencial poluidor de âmbito nacional ou regional, o Ibama não será competente para licenciar, a não ser que esteja configurada uma das hipóteses previstas nas alíneas do inciso XIV do art. 7º, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade” (Divisão de competência entre os entes federativos para licenciamento ambiental: LC n. 140/2011Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18n. 381814 dez. 2013. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/26147>. Acesso em: 1.jan.2024).

[3] FARIAS, Talden. Competência administrativa ambiental: fiscalização, sanções e licenciamento ambiental na Lei Complementar 140/2011. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 27-28.

[4] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 214-215. O inciso XIV do art. 8º dispõe expressamente que é de competência dos Estados “promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7º e 9º”, os quais tratam, respectivamente, da competência licenciatória federal e municipal.

[5] Aprovado pelo Procurador Chefe Nacional da PFE/Ibama em 02/12/2014, mediante Despacho 658/2014/GABIN/PFEIBAMASEDE/PGF/AGU, nos autos do PA 02001.007431/201001.

[6] Aprovado pelo Procurador Chefe Nacional da PFE/Ibama em 02/12/2014, mediante Despacho 658/2014/GABIN/PFEIBAMASEDE/PGF/AGU, nos autos do PA 02001.007431/201001.

[7] A respeito do assunto: FERREIRA, Heline Sivini. Competências ambientais. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes Canotilho; LEITE, José Rubens Morato (orgs). Direito constitucional ambiental brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 91. TRENNEPOHL, Terence. Manual de Direito Ambiental. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 61. SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 643. CORRALO, Giovani da Silva. Curso de direito municipal. São Paulo: Atlas, 2011, p. 44.

[8] “Em relação ao critério do impacto direto, por exemplo, não se pode falar em analogia do impacto direto para se deslocar a competência quando ele existir em terras indígenas, unidades de conservação instituídas pela União ou em mais do que um Estado-membro. O que não for expressamente enumerado como sendo da União – que, nos exemplos acima, somente tem competência para licenciar se o empreendimento estiver localizado em terra indígena ou dentro de UC instituída pela União (art. 7º, XIX, c e d), não bastando a mera vizinhança ou a tangência – não pode ser-lhe atribuído” (BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 5. ed. Fórum: 2020, p. 138).

[9] Afora os livros citados ao longo deste trabalho, quem quiser se aprofundar mais no tema pode procurar a seguinte bibliografia: AMADO, Frederico. Critérios definidores da competência administrativa no processo de licenciamento ambiental. Salvador: Baraúna, 2016. ANTUNES, Paulo de Bessa. Federalismo e competências ambientais no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2015. FARIAS, Paulo José Leite.  Competência Federativa e Proteção Ambiental.  Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. FARIAS, Talden (org).  10 anos da Lei Complementar 140: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Meraki, 2022. FARIAS, Talden.  Licenciamento Ambiental: aspectos teóricos e práticos.  9. ed.  Salvador: JusPodivm, 2024. GRECO, Leonardo.  Competências constitucionais em matéria ambiental.  Revista de Informação Legislativa, a. 29, n. 116, p. 135-152, Brasília: Senado, out/dez. 1992. KRELL, Andreas J.  Autonomia municipal e proteção ambiental: critérios para definição das competências legislativas e das políticas locais.  In: KRELL, Andreas J. (org.); MAIA, Alexandre da (coord.).  A Aplicação do Direito Ambiental no Estado Federativo.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 147-203. KRELL, Andreas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e as competências dos órgãos ambientais: um estudo comparativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 114. LIZIERO, Leonam. Federalismo e Estado federal. Rio de Janeiro: Sankoré, 2024. NASCIMENTO, Sílvia Helena Nogueira.  Competência para o licenciamento ambiental na Lei Complementar no 140/2011.  São Paulo: Atlas, 2015.

Autores

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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