Opinião

Lei 14.973/24 e seus impactos nos depósitos judiciais: da revisão da Súmula 112-STJ

Autores

12 de outubro de 2024, 15h52

A Lei nº 14.973/2024, originada do Projeto de Lei nº 1.847/2024 e recentemente sancionada, promoveu uma reformulação substancial das normas relacionadas aos depósitos judiciais e extrajudiciais que interessam à administração pública federal.

Freepik

Conforme o artigo 37, inciso II, da nova lei, os depósitos judiciais, quando levantados pelos titulares que obtiverem êxito em processos judiciais ou administrativos, serão corrigidos apenas por índices oficiais que reflitam a inflação, sem a adição de juros de mora. Anteriormente, esses depósitos eram corrigidos pela taxa Selic, que inclui tanto correção monetária quanto juros de mora.

Essa mudança traz uma discrepância significativa no valor final a ser devolvido aos contribuintes. Considerando que a Selic acumulada nos últimos 12 meses foi de 10,70%, enquanto o IPCA acumulado foi de 4,24%, a diferença é clara e desfavorável ao contribuinte. Com a Selic sendo bem mais alta do que o IPCA, o valor corrigido para restituição fiscal usando a taxa Selic resultaria em um montante consideravelmente maior para os contribuintes do que se fosse corrigido pelo IPCA. Esta diferença de correção monetária pode impactar a percepção pública sobre a justiça e a equidade do sistema tributário brasileiro.

Além da diminuição no montante a ser recuperado, essa alteração pode violar o princípio da isonomia, pois a União continuará a corrigir seus créditos via Selic, criando um tratamento desigual.

Como se sabe, o princípio da isonomia, consagrado na Constituição (artigo 5º, caput), estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinções. No direito econômico, o princípio da isonomia é especialmente importante em questões patrimoniais, tais como os depósitos judiciais.

Nesse contexto, a correção monetária dos valores depositados deve observar não apenas critérios objetivos, mas também as realidades financeiras de cada situação, de modo a assegurar que os valores atualizados reflitam corretamente o poder de compra ao longo do tempo.

O uso de um índice inadequado ou insuficiente de correção pode gerar desníveis de tratamento entre diferentes litigantes, desrespeitando, por conseguinte, a exigência constitucional de tratamento isonômico.

O cerne deste tratamento anti-isonômico, como vimos, está previsto no artigo 37, inciso II da Lei nº 14.973/2024, o qual estabelece que a correção monetária pela inflação será aplicada unicamente ao contribuinte quando este obtiver êxito na ação judicial e solicitar a liberação do depósito ao término do processo, sem incidência de quaisquer juros moratórios.

Spacca

Ou seja, a Fazenda Pública terá a garantia de levantar os valores depositados com correção plena pela Selic, enquanto o contribuinte, mesmo vencedor, só receberá o valor atualizado pela inflação.

Essas mudanças sobre os depósitos judiciais tendem a impactar nas execuções fiscais e, também, nas chamadas ações antiexacionais, que têm como principal objetivo a suspensão da exigibilidade de créditos tributários discutidos judicialmente.

O artigo 151, II do CTN e a Súmula STJ nº 112

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar o tema da suspensão da exigibilidade de créditos tributários, tem afirmado a taxatividade do rol das causas suspensivas previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional (CTN). Este entendimento tem sido aplicado pelo STJ e, também, pelos tribunais de segunda instância, sendo negada a suspensão da exigibilidade nos casos calçados em garantia distinta do depósito integral e em dinheiro.

Na maioria destas decisões, ao analisar o conteúdo e alcance do inciso II do artigo 151 do CTN, tem-se aplicado, sistematicamente, o entendimento contido no enunciado da Súmula STJ nº 112: “O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro”.

No mesmo sentido, seguiu-se o julgamento do REsp 1.156.668/DF, afetado ao regime dos recursos repetitivos, onde restou decidido que a fiança bancária não é equiparável ao depósito integral do débito exequendo para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, ante a taxatividade do artigo 151 do CTN.

Ocorre que o atual entendimento jurisprudencial, com a devida vênia, está partindo de uma intepretação equivocada do artigo 151, II do CTN e, desta forma, precisaria ser revisto.

Pela simples leitura do artigo 151, II do CTN é possível perceber que em nenhum momento está sendo condicionado que o depósito efetuado para fins da suspensão da exigibilidade do crédito tributário tenha que ser realizado, obrigatoriamente, em dinheiro.

Em verdade, o artigo 151, II do CTN sequer dispõe que o depósito tenha que ser em dinheiro. A única condição imposta pelo referido artigo diz respeito à integralidade da garantia apresentada.

Analisando-se semanticamente o verbo “depositar”, é possível concluir que ele não possui um vínculo único e exclusivo com o objeto “dinheiro”. Em verdade, se formos analisar o significado do verbo “depositar” nos principais dicionários da língua portuguesa, veremos que existem outros significados possíveis que atenderiam, perfeitamente, o disposto no artigo 151, inciso II do CTN, como por exemplo, “dar como garantia de pagamento de uma dívida ou do cumprimento de um compromisso -: {Ao liberar o empréstimo, o banco exigiu que ele depositasse todos os seus imóveis.}”

Portanto, a interpretação, dada pelo Judiciário, do artigo 151, inciso II do CTN e consolidada por meio da Súmula 112 do STJ, com a máxima vênia, é extremamente restritiva, contrária à legislação em questão e, como veremos, contrária também ao intuito do legislador ordinário, que tinha em mente uma interpretação mais ampla e abrangente.

Dito isto, passemos à análise dos trabalhos realizados pela Comissão Especial do Código Tributário Nacional do Senado, bem como dos debates ocorridos durante a tramitação legislativa do CTN.

As causas que versavam sobre a suspensão da exigibilidade do crédito tributário estavam previstas, no anteprojeto, no artigo 177, que elencava as seguintes situações possíveis de suspensão da exigibilidade, quais sejam:

“(i) a moratória;

(ii) a consignação em pagamento;

(iii) as reclamações e recursos;

(iv) a ação anulatória;

(v) a suspensão da aplicabilidade da legislação tributária, por decisão da autoridade administrativa ou resolução do Senado Federal, nos termos do disposto nos arts. 91 e 123 e seu § 1º.”

Analisando os debates legislativos e propostas de alteração ao Anteprojeto do Código Tributário Nacional, é possível perceber que foi feita uma substituição da expressão “consignação em pagamento” por depósito do montante integral”, justamente porque esta expressão seria mais genérica e abrangente, prevendo além da hipótese mais comum (depósito em dinheiro) outras formas em que o montante do crédito fosse integralmente depositado, conforme o disposto na proposta de alteração nº 102 decorrente dos debates legislativos ocorridos.

O objetivo do legislador ordinário, no que tange às causas suspensivas do crédito tributário, era trazer um entendimento amplo, abrangente, generalista, incluindo no texto legal uma expressão que abarcasse a hipótese mais comum de depósito do crédito tributário, como qualquer outra forma onde fosse realizado o “depósito” do montante integral — como, por exemplo, a apresentação de seguro garantia ou fiança bancária.

Neste cenário, a recente fixação da correção dos depósitos judiciais pela inflação, introduzidas pela Lei 14.973/2024, pesa sobre o contribuinte e gera grandes preocupações. Ao condicionar a atualização dos valores ao índice de inflação, o legislador ignora o cenário econômico desfavorável para o contribuinte, que será penalizado com a desvalorização dos montantes depositados visando garantir a suspensão da exigibilidade com o depósito integral.

Segundo reportagem do “Valor Econômico”, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estimava que até o segundo semestre de 2019 havia, aproximadamente, cerca R$ 500 bilhões em depósitos judiciais. Somente o Tribunal de Justiça de São Paulo tinha cerca de R$ 90 bilhões em depósitos judiciais depositados no Banco do Brasil, sem contar os valores que estavam depositados na Caixa Econômica Federal.

Tais números dão uma pequena amostra do impacto que a recente fixação da correção dos depósitos judiciais pela inflação irá gerar com a desvalorização dos montantes depositados.

Nesse sentido, a nova Lei 14.973/2024 coloca um holofote sobre a atual legislação e jurisprudência que impede o oferecimento do seguro garantia judicial em ações antiexacionais de créditos tributários.

O contribuinte preterido, por sua vez, buscará alternativas.

Seguro garantia judicial ou fiança bancária como modalidades alternativas ao depósito do montante integral

O seguro garantia judicial, nos termos da Circular Susep 662/2022, permite que o contribuinte ofereça uma apólice de seguro, em vez de efetuar o depósito em dinheiro em ações judiciais.

No entanto, a aceitação do seguro garantia judicial como forma de suspensão do crédito tributário encontrou resistências históricas em razão do posicionamento consolidado na Súmula 112 do STJ, publicada em 1994, que exige o depósito do montante integral em espécie.

O racional da súmula se dá pela necessidade de que o crédito tributário, quando devido, seja prontamente satisfeito com recursos financeiros líquidos.

No entanto, o avanço normativo proporcionado pela Circular Susep 662/2022 trouxe inovações capazes de mitigar os receios que fundamentavam a resistência ao seguro garantia judicial.

A regulamentação estabelece condições específicas que tornam o seguro garantia uma ferramenta robusta, equivalente ao depósito em dinheiro, ao assegurar a liquidez da garantia e a pronta satisfação do crédito em caso de decisão desfavorável ao contribuinte.

Dessa forma, o seguro garantia seria uma alternativa viável e segura em processos judiciais tributários.

A Lei 14.973/2024, ao tratar da correção monetária dos depósitos judiciais pela inflação, trouxe um elemento de conflito com as normativas vigentes acerca do depósito em espécie, reavivando discussões sobre soluções alternativas de garantias. Isso porque, como discutido anteriormente, a correção dos depósitos pela inflação pode resultar em prejuízos econômicos significativos para os contribuintes, especialmente em ações tributárias de longa duração. Nesse contexto, o seguro garantia judicial se apresenta como uma alternativa muito mais equilibrada.

O seguro garantia judicial oferece maior flexibilidade financeira ao contribuinte, que pode evitar o desembolso imediato do montante integral em dinheiro. Em casos de alto valor, como nas ações antiexacionais envolvendo créditos tributários relevantes, o uso do seguro garantia pode representar um alívio significativo no fluxo de caixa do contribuinte, sem comprometer, de forma alguma, a liquidez da garantia e a pronta satisfação do crédito em caso de decisão desfavorável ao contribuinte.

Logo, é inegável que o seguro garantia judicial tem a plena condição de ser uma garantia capaz de suspender a exigibilidade do crédito tributário, uma vez que atende perfeitamente o racional da Súmula 112 do STJ.

A imperiosa necessidade de revisão: do artigo 151,II do CTN, e da Súmula 112 do STJ

Como vimos, a alteração promovida pela 14.973/2024, no que tange aos depósitos judiciais, tende a ser uma grande preocupação para os contribuintes no que diz respeito à estratégia judicial, pois o índice Selic é composto pela correção monetária e, também, pela incidência de juros de mora. Com a recente alteração, a correção dos valores depositados será feita somente pela inflação, criando um risco enorme de perda na recomposição decorrente da ausência dos juros. Tudo isso cria um ambiente de forte desestímulo ao uso de tais depósitos como meio de garantir a suspensão da exigibilidade de créditos tributários.

Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça tem entendido, de forma sistemática, pela taxatividade das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário previstas no artigo 151 do CTN, nos termos da Súmula 112/STJ e do entendimento firmado quando do julgamento do REsp 1.156.668/DF.

Tal entendimento, com a devida vênia, está equivocado e/ou desatualizado.

Isso porque o artigo 151, inciso II, do CTN, ao estabelecer a necessidade de “depósito” do montante integral, em momento algum faz referência à palavra dinheiro. É possível interpretar que o termo depósito se refere ao simples ato de dar algo em garantia do valor. Assim, seria extensível à carta fiança bancária e ao seguro garantia judicial.

Ademais, o objetivo do legislador ordinário, no que tange às causas suspensivas do crédito tributário, era trazer um entendimento amplo, abrangente, generalista, incluindo no texto legal uma expressão que abarcasse a hipótese mais comum de depósito do crédito tributário, como qualquer outra forma onde fosse realizado o “depósito” do montante integral, como, por exemplo, a apresentação de seguro garantia ou fiança bancária.

Além disso, a Súmula 112/STJ é anterior à alteração legislativa que modificou a Lei nº 6.830/1980 para equiparar a fiança bancária e o seguro garantia ao depósito judicial para fins de garantia.

Por fim, o seguro garantia e a fiança bancária são garantias de elevada liquidez, aceitas, em geral, pelas autoridades fiscais, sendo seu oferecimento prática comum em ações de cobrança de dívidas fiscais (execuções fiscais), que dependem de garantia para sua defesa (embargos de devedor) e para viabilizar renovação de Certidão de Regularidade Fiscal.

Assim sendo, conclui-se que são muitos e diversos os argumentos que poderiam servir de suporte para a aceitação do seguro garantia judicial ou da fiança bancária como modalidades de suspensão do crédito tributário. A recente alteração legislativa trazida pela Lei 14.973/2024 coloca um holofote sobre a atual jurisprudência, abrindo um novo caminho de argumentação para modalidades alternativas de garantia que não o depósito em espécie.

É imperativo que se inicie imediatamente o debate acerca da necessária atualização do artigo 151 do Código Tributário Nacional e da Súmula 112 do Superior Tribunal de Justiça. Afinal, não há legislação que não possa ser revisada, alterada e atualizada para se adequar às demandas contemporâneas da sociedade. Da mesma forma, inexiste entendimento sumular de qualquer tribunal que esteja isento de revisão e alteração periódica.

Não existe qualquer súmula pétrea no ordenamento jurídico brasileiro.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!