Opinião

Decreto paulista: desafios e potencialidades na prevenção da mobilidade criminal

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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12 de outubro de 2024, 17h27

O Programa Muralha Paulista é uma iniciativa do governo do estado de São Paulo, criada com o objetivo de integrar tecnologias avançadas de vigilância e análise de dados para enfrentar o desafio da criminalidade, especialmente em áreas urbanas de grande circulação. A proposta é baseada em um modelo de segurança pública que utiliza ferramentas como câmeras de reconhecimento facial, softwares de análise preditiva e sistemas de coleta massiva de dados. O foco principal do programa é monitorar padrões de comportamento e deslocamento em tempo real, a fim de prever e prevenir crimes.

Governo de SP

O Decreto estadual nº 68.828, de 4 de setembro de 2024, que instituiu o Programa Muralha Paulista, define a mobilidade criminal como o deslocamento de criminosos durante ou após a prática de crimes violentos em vias públicas, contra usuários de transportes, em locais públicos ou privados, ou durante o transporte de produtos ilícitos, como drogas, armas e contrabando.

Na criminologia, o conceito de mobilidade criminal refere-se ao deslocamento de crimes e criminosos pelo espaço geográfico. De acordo com Johnson, Guerette e Bowers (2014), essa mobilidade pode ser analisada em dois níveis principais: o nível macro, que trata da reconfiguração dos “pontos quentes” de criminalidade — áreas onde a incidência de crimes pode mudar ao longo do tempo devido a intervenções policiais ou condições socioeconômicas; e o nível micro, que descreve a jornada para o crime, ou seja, o caminho que os criminosos percorrem de seus locais de origem até os locais onde os crimes são cometidos. Essa teoria sugere que criminosos tendem a agir em áreas familiares, onde identificam maiores oportunidades para a prática de delitos (Siena, 2024).

O decreto estabelece uma estrutura tecnológica robusta para combater a criminalidade, com o uso de dados audiovisuais e soluções de análise de dados, conforme descrito no artigo 4º. Esses recursos são utilizados para prevenir crimes, responder rapidamente a ocorrências e gerar provas digitais, como destacado no artigo 5º. O programa está acessível à Secretaria de Segurança Pública e a entidades conveniadas (artigo 6º), enquanto colaboradores externos podem fornecer dados, mas sem acesso direto ao sistema (artigo 7º).

Apesar das inovações tecnológicas, o decreto trata de questões preocupantes em relação à privacidade. A colaboração com entidades privadas e a coleta em larga escala de dados podem criar um ambiente de vigilância generalizada, abrindo margem para abusos e invasões de privacidade. A participação de empresas privadas, prevista por meio de convênios, pode ser útil para ampliar a rede de segurança, mas também traz riscos, como a possível exploração de dados para fins comerciais ou outras finalidades alheias à segurança pública.

O uso de ferramentas de análise de dados e alertas digitais pode ser eficaz na prevenção e repressão ao crime, mas é importante considerar os riscos associados ao mau uso ou erros nesses sistemas. A análise preditiva, baseada em algoritmos, pode reforçar preconceitos e estigmatizar grupos específicos, replicando padrões históricos de criminalização seletiva. Isso pode resultar em uma concentração excessiva de policiamento em determinadas áreas, perpetuando estereótipos de perigo.

Spacca

A criação de provas digitais é, sem dúvida, um avanço para o sistema de justiça criminal, especialmente se for garantida a integridade da cadeia de custódia. No entanto, a digitalização também abre espaço para manipulações tecnológicas, e é fundamental que o acesso a essas informações seja rigorosamente controlado para evitar abusos e garantir a confiabilidade do processo penal.

Mobilidade criminal na literatura criminológica

Os primeiros estudos empíricos sobre mobilidade criminal datam da década de 1930, com destaque para a obra de Stuart Lottier (1937). Em seu artigo “Regions of Criminal Mobility”, Lottier investigou os padrões espaciais do crime em Detroit, entre 1931 e 1935. Ele sugeriu que os crimes não se limitavam a uma única cidade, mas abrangiam regiões maiores, destacando a mobilidade como um fenômeno regional. A pesquisa identificou três regiões principais de mobilidade criminal, relacionadas à expansão populacional e ao crescimento urbano.

Na década de 1940, Marshall Clinard (1942) expandiu o estudo da mobilidade criminal ao investigar como delinquentes rurais se deslocavam para cometer crimes em pequenas cidades. Clinard observou que esses delinquentes evitavam cometer crimes em suas comunidades de origem devido aos laços sociais, preferindo agir em locais onde seus vínculos eram mais fracos. O uso do automóvel foi fundamental para facilitar essa mobilidade, permitindo que os criminosos se distanciassem de suas redes sociais.

Nas décadas seguintes, os estudos sobre mobilidade criminal se tornaram mais complexos. A década de 1970 trouxe pesquisas focadas em crimes contra o patrimônio, com destaque para o trabalho de Capone e Nichols (1976), que analisaram os deslocamentos de criminosos reincidentes. Na década de 1980, Paul e Patricia Brantingham (1984) introduziram a teoria dos padrões criminais, sugerindo que os criminosos desenvolvem uma “consciência espacial”, escolhendo alvos estrategicamente para minimizar riscos.

A década de 1990 foi marcada pelo avanço das técnicas de Sistemas de Informação Geográfica (SIG) e pela consolidação da criminologia ambiental, que trouxe uma análise mais detalhada dos padrões de deslocamento. O trabalho de Mazerolle (1996) sobre o programa Smart em Oakland destacou como os traficantes de drogas se moviam em resposta à repressão policial.

Nos últimos 20 anos, o campo da mobilidade criminal se expandiu significativamente, abordando temas como estupro, homicídio e tráfico de drogas. Pesquisas sobre os “pontos quentes” de criminalidade e a difusão dos benefícios da presença policial, como descrito por Eck, Clarke e Guerette (2007) e Weisburd (2018), indicam que a presença de “guardiões” pode gerar efeitos positivos em áreas adjacentes ao local primário de intervenção.

Crítica criminológica do Muralha Paulista

O Muralha Paulista representa uma tentativa de aplicar as lições da criminologia ao combate à criminalidade, mas apresenta limitações que devem ser avaliadas. Estudos mostram que a criminalidade não se restringe a áreas geográficas específicas e pode migrar para outras regiões quando há intervenções policiais intensas (Weisburd, 2018). A vigilância concentrada proposta pelo decreto pode acabar deslocando o crime para áreas menos monitoradas, o que é amplamente documentado em estudos sobre crimes violentos e de oportunidade.

A experiência do Ceará, descrita por Aloísio Lira (s.d.), oferece um exemplo de sucesso na redução da criminalidade, combinando inteligência artificial com ações coordenadas de cercos policiais. Esse modelo, baseado no Sistema Policial Indicativo de Abordagem (SPIA), reduziu significativamente os crimes contra o patrimônio em 28 meses. Para que o Muralha Paulista alcance um nível semelhante de eficácia, seria necessário incorporar inteligência preditiva e motopoliciamento, garantindo que a vigilância tecnológica seja acompanhada por intervenções ágeis no campo.

Outra questão é a participação de empresas privadas no fornecimento de dados. Embora isso possa ampliar a rede de vigilância, há riscos associados ao controle e uso desses dados, com possíveis implicações éticas e de privacidade (Weisburd e Eck, 2017). A parceria com o setor privado precisa ser rigorosamente regulada para evitar que o uso de dados seja desvirtuado.

O decreto também parece subestimar a complexidade dos padrões de deslocamento criminal. Estudos indicam que a escolha dos locais de crimes, especialmente em casos de estupro e homicídio, é fortemente influenciada por fatores sociais e geográficos que nem sempre podem ser detectados por sistemas de monitoramento tecnológico.

Beauregard, Proulx e Rossmo (2005) mostram que criminosos sexuais frequentemente escolhem locais públicos abertos e oportunos, baseando-se em oportunidades situacionais que podem escapar à vigilância digital. Da mesma forma, Goetz (2003) e Rossmo (2006) destacam que homicídios tendem a ocorrer em áreas marcadas por marginalização social e geográfica, fatores que são cruciais para entender a dinâmica desses crimes, mas que podem não ser totalmente captados por tecnologias de monitoramento automatizado.

Esses estudos evidenciam que, embora os sistemas de vigilância tecnológica ofereçam suporte à prevenção, eles podem falhar ao não considerar variáveis contextuais mais amplas que influenciam o comportamento criminoso. Além disso, mercados criminais, como o tráfico de drogas, envolvem lógicas territoriais e disputas que não são facilmente captadas por sistemas de vigilância estática (Ruediger et al., 2018).

Portanto, a efetividade do Muralha Paulista depende de uma abordagem multidimensional da criminalidade, para além do simples uso de tecnologia para vigilância. A criminalidade em São Paulo precisa ser combatida com uma combinação de inteligência, policiamento dinâmico e uma análise aprofundada das dinâmicas socioeconômicas que influenciam o comportamento criminoso.

 


Referências:

BEAUREGARD, Eric; PROULX, Jean; ROSSMO, Kim. Spatial Patterns of Serial Rape: A Study of the Journey-to-Crime. In: Journal of Criminal Justice, v. 33, n. 2, p. 109-120, 2005.

BRANTINGHAM, Paul; BRANTINGHAM, Patricia. Patterns in Crime. New York: Macmillan, 1984.

CAPONE, Donald; NICHOLS, Harold. Crime and Community. New York: Praeger, 1976.

CLINARD, Marshall. The Process of Urbanization and Criminal Behavior. American Journal of Sociology, v. 48, n. 2, p. 202-214, 1942.

ECK, John; CLARKE, Ronald; GUERETTE, Rob. Risky Facilities: Crime Concentration in Homogeneous Sets of Establishments and Facilities. Crime Prevention Studies, v. 21, p. 225-264, 2007.

GOETZ, Edward. The Impact of Social and Spatial Marginalization on Urban Crime: A Study of Homicide in Deprived Areas. Journal of Urban Affairs, v. 25, n. 3, p. 207-222, 2003.

JOHNSON, Shane D.; GUERETTE, Rob; BOWERS, Kate J. Crime Displacement and Diffusion of Benefit: Evaluating the Consequences of Police Interventions. In: BRAGA, Anthony; WEISBURD, David. Policing Problem Places: Crime Hot Spots and Effective Prevention. Oxford: Oxford University Press, 2010.

LOTTIER, Stuart. Regions of Criminal Mobility. American Sociological Review, v. 2, n. 6, p. 927-934, 1937.

MAZEROLLE, Lorraine. Policing Drug Hot Spots: The Jersey City Drug Market Analysis Experiment. Justice Quarterly, v. 13, n. 3, p. 327-341, 1996.

MEHAY, Stephen L. Crime and Residential Mobility. Journal of Research in Crime and Delinquency, v. 18, n. 2, p. 135-147, 1981.

ROSS, Robert. Crime and Urban Disorder: A Study of the Ecology of Crime. New York: Free Press, 2003.

ROSSMO, Kim. Geographic Profiling. New York: CRC Press, 2006.

RUEDIGER, Marco; SILVA, Marcela; NASCIMENTO, Thiago. Análise de Padrões de Mobilidade Criminosa no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 2, p. 54-79, 2018.

SIENA, David Pimentel Barbosa de. Criminologia, ed.1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.

SOUZA, Vanessa; SILVA, Thiago; CARVALHO, Fernanda. Revisão Integrativa: O Que É e Como Fazer. Einstein (São Paulo), v. 8, n. 1, p. 102-106, 2010.

WEISBURD, David. Place-Based Policing and Crime Prevention. In: BRAGA, Anthony; WEISBURD, David. Policing Problem Places: Crime Hot Spots and Effective Prevention. Oxford: Oxford University Press, 2018.

Autores

  • é graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestre e doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC, delegado de polícia do estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra", professor de Direito Penal, coordenador pedagógico do Curso Superior de Tecnologia em Segurança Pública e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, tutor da Rede de Ensino à Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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