Opinião

Como a inteligência artificial está mudando departamentos jurídicos

Autor

  • João Marcos Rosa

    é contracts manager da Amazon formado em Direito e mestre em Filosofia do Direito pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). As opiniões do autor não refletem a opinião da Amazon.

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12 de outubro de 2024, 6h30

Enquanto escrevo este artigo, minha esposa está revoltada pesquisando no Chat-GPT por que a levedura caseira para fazer pão que ela estava cultivando morreu. Como que a levedura morreu sendo que seguimos o próprio Chat-GPT? Tentamos espremer o robô para entender por que ele tinha enganado a gente. Enfim, chegamos à conclusão de que não tínhamos feito as perguntas certas. Se tivéssemos perguntado com mais clareza e detalhes, ele teria dado a informação que precisávamos. Ao invés de só pedir “me ensine a cultivar levedura para fazer pão caseiro”, adicionaríamos algo como “… e me dê exemplos de erros que podem fazer a levedura morrer e formas de evitar isso”.

Esse tipo de problema já faz parte da vida de várias pessoas e várias empresas em pequena e larga escala. Qual a pergunta ou comando certo devo fazer para que esse tipo de ferramenta não me dê uma resposta errada ou incompleta? Da mesma forma que até hoje muitas pessoas não sabem usar todos os recursos da pesquisa do Google, por mais que o Chat-GPT esteja bombando, muitos também não fazem ideia das capacidades dessa ferramenta poderosa. Por mais que algumas pessoas que leem esse artigo já estejam cansadas de expressões como ‘engenharia de prompt’, não creio que já seja senso comum que o maior potencial dessas ferramentas está na criatividade da formulação das perguntas ou nos comandos que você faz.

Em 30 de outubro de 2022, a Open AI revolucionou a indústria ao oferecer o Chat-GPT publicamente e popularizou o uso de inteligências artificiais (IAs) generativas — ou seja, IAs que geram conteúdo por meio de perguntas ou comandos. Repetindo o jargão de qualquer artigo do tipo, “a IA é muito mais antiga do que imaginamos”. Ela já é o carro chefe de vários mercados faz tempo. A novidade está na abertura das IAs generativas ao público geral. De qualquer forma, tenha o Chat-GPT a idade que tiver, no momento em que seu uso foi aberto ao consumidor ou trabalhador comum, ele abriu para grande parte da população o uso de uma parte do poder das IAs.

Desde o final de 2022, venho lendo constantemente notícias sobre IA e me sinto jogado de um lado pro outro num mar com ondas de pessimismo, otimismo ou de conciliadores que carecem de entusiasmo. Para navegar nesse mar, entretanto, é preciso conhecer essas correntes e nadar com suas próprias forças. Tudo é novo e rápido, e até os especialistas discutem a velocidade da mudança. Mas não há dúvidas que tudo está em movimento. Por mais que eu ame ficção científica, no meio dessa confusão entre utopia e distopia, fico entre os conciliadores quando penso em minha vida prática (mas não sem entusiasmo) e em escrever algo minimamente útil. E é nessa posição que proponho que perguntas mais modestas estão ofuscadas: O que são essas ferramentas hoje? O que elas podem fazer hoje? Quais seus limites hoje? Amanhã reformulamos essas perguntas. Mas e hoje?

Hoje, elas são impressionantes. Nenhuma ferramenta disponível em larga escala adentrou ao campo da linguagem como as IAs generativas. Falar sobre todo esse movimento é entender que a linguagem é o centro do debate. Agora, conseguimos dar comandos complexos a ferramentas poderosas por meio de linguagem comum; e as ferramentas também conseguem produzir tanto linguagem comum como linguagem de máquina com taxas de erro cada vez menores. Eu posso perguntar como cultivar levedura e fazer uma pergunta em seguida para que as instruções dadas sejam melhoradas. Eu posso colar linhas de programação e pedir conselhos como se estivesse pedindo um pastel de carne na feira.

Mudança da IA em departamentos jurídicos

E é nesse imbróglio que meu ponto central se encontra. Como a IA está mudando departamentos jurídicos? Ela incita que o profissional jurídico se volte para uma cultura de inovação e criação. Vou delimitar aqui que falo sobre a IA generativa e todos os produtos como o Chat-GPT. De forma geral, IAs já mudaram o mundo com o processamento de quantidades enormes de dados, reconhecimento de imagem etc. E vão continuar mudando inúmeros setores em diferentes escalas. Entretanto, especificamente as IAs generativas mudam o mundo jurídico na medida em que “entendem” (leia-se processam) e “produzem” (leia-se simulam a produção) linguagem. A linguagem está para o profissional jurídico assim como a madeira está para o marceneiro. As palavras são os componentes de peças processuais, análises de risco, contratos. Palavras e mais palavras.

Spacca

Para complicar mais ainda, várias questões aparecem quando falamos do uso dessas ferramentas no mundo jurídico. E a segurança dos dados? Quais as taxas de erro? Quais os riscos de alucinação? Nenhuma questão é menos importante que a outra. E além de tudo, “risco” é uma palavra que engatilha o profissional jurídico. Da mesma forma que meu objetivo agora não é falar de outros usos de IA que não as generativas, meu objetivo também não é falar sobre os riscos do uso da ferramenta. Quero falar sobre como os departamentos jurídicos podem, hoje, usar o poder da IA generativa e a vantagem de mercado que isso traz se incorporada em processos internos. Ao invés de olhar com um telescópio para o futuro, sugiro olhar com uma lupa apontada para o presente.

Quando olhamos hoje com uma lupa para a IA, ela é uma ferramenta. Dou ênfase na palavra ferramenta pois sinto que a palavra inteligência gera uma falsa ideia de que ela é independente. De que ela não é operada. Se ela é inteligente, não preciso dar comandos ou fazer boas perguntas, certo? O problema é com ela, não comigo. Não estou sugerindo que todo profissional jurídico seja programador, mas sim que, se você compra uma máquina, você precisa de um bom operador de máquinas. Como citei, agora temos uma ferramenta que adentra a produção de linguagem. A produção de linguagem até hoje foi feita no braço, e agora temos uma empilhadeira que — como qualquer máquina — precisa de manuais, manutenção e supervisão.

Se você é um entusiasta de IA já deve ter se deparado com o termo “engenharia de prompt”. Engenharia de prompt é o nome que se tem dado ao conjunto de técnicas usadas para fazer as melhores perguntas e comandos para as IA generativas. Também leio sobre o assunto há algum tempo e também vejo as facções que dizem que os engenheiros de prompt vão substituir os advogados, ou que os próprios engenheiros de prompt vão ser substituídos por IAs que entendem as necessidades do usuário sem muito esforço. Voltamos novamente pro mar de extremos e nós, profissionais jurídicos, ficamos sem saber no que devemos nos capacitar nesse turbilhão de opiniões. Hoje, saber escrever comandos e fazer perguntas é a diferença entre só usar a IA generativa (e deixar a levedura morrer) ou dominar o uso da IA generativa. Amanhã podemos revisar isso.

Acho o termo “engenharia de prompt” ruim por um lado, pois assusta quem escolheu direito no lugar de engenharia. Afinal, ninguém fez direito para aprender cálculo avançado. Esse termo é bom, por outro lado, pois obriga o profissional jurídico a entender que para estar na vanguarda do serviço jurídico hoje, é preciso saber alguns aspectos técnicos básicos. No mais, engenharia de prompt não é nada mais do que aprender a fazer as perguntas e dar os comandos certos com linguagem comum. Se você souber o básico do funcionamento das IAs generativas, decompor problemas e propor soluções de maneira lógica, você será um bom engenheiro de prompt. Na verdade, há uma grande chance de que você seja um ótimo profissional de qualquer área.

Cultivo de uma cultura de inovação

Voltando à metáfora da oficina, falei que a linguagem é para o advogado o que a madeira é para o marceneiro. Agora, imagine uma marcenaria onde o dono compra uma impressora 3D para madeira e coloca no meio da oficina. Não se trata só de comprar a máquina, se trata de incorporá-la no dia-a-dia da oficina. Isso envolve processos e humanos, que são os componentes principais da máquina organizacional. Uma máquina serve ao propósito da outra.

A metáfora da impressora 3D, para mim, é ótima, porque a impressora 3D é versátil de várias formas, seja para produzir ferramentas ou o próprio produto final. Falo por experiência própria: a IA generativa hoje, da mesma forma, tem um valor incrível ao permitir a criação de pequenas ferramentas projetadas de forma rápida e sob demanda que ajudam em pequenas (ou grandes) tarefas. Um dos maiores valores dela está em ganharmos o poder de criar ferramentas. Os profissionais da linguagem comum não tinham esse poder antes de 2022 e, claro, é difícil transpor essa mentalidade. Esse era um poder majoritariamente de programadores. Agora, com as devidas proporções, um usuário de linguagem comum, provido de lógica, pode sentar-se na frente de uma IA generativa e experimentar um pouco da liberdade criativa de um programador.

Todo esse valor, porém, só pode ser aproveitado em um ambiente em que a criação e inovação são instigados e fazem parte dos processos internos de um departamento jurídico. Os departamentos jurídicos, portanto, estão mudando na medida em que os líderes e profissionais compreendem que uma cultura de inovação precisa ser cultivada se quisermos aproveitar de fato as IAs generativas. Isso envolve a capacitação de profissionais jurídicos no uso dessas novas tecnologias e a operacionalização dessas ferramentas — por exemplo, com a criação de bases de prompts, processos periódicos de teste e criação de prompts, gradação de risco e mitigação de alucinações.

De todos esses pontos anteriores, dou ênfase na criação, pois mesmo que sigamos uma cartilha mágica de prompts, é na constante adaptação dos prompts a casos únicos do dia-a-dia que se tira o máximo da capacidade das IAs generativas. De qualquer forma, os departamentos jurídicos que tiverem profissionais criativos e conscientes do uso de IAs, aliados a líderes que saibam incorporar essas ferramentas dentro de processos internos, terão uma vantagem inegável no mercado de serviços jurídicos. Sobre esses e outros assuntos debateremos na Fenalaw 2024, evento que justamente se propõe em estar na ponta dessa revolução que as IAs generativas estão provocando.

Autores

  • é contracts manager da Amazon, formado em Direito e mestre em Filosofia do Direito pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). As opiniões do autor não refletem a opinião da Amazon.

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