A anatomia de um precedente: o caso Pearce v. Brooks
12 de outubro de 2024, 8h00
Há algum tempo escrevi um texto para a coluna Diário de Classe falando sobre como se dá o “nascimento” de um precedente (ver aqui), discorrendo sobre as diferenças entre as teses precedentalistas brasileiras — que defendem a indeterminação do Direito e a necessidade de atribuição de sentido às normas jurídicas, exclusivamente, por parte dos tribunais superiores — e os precedentes da common law, que são casos concretos cuja solução jurídica é aplicada contingencialmente em casos posteriores.
Para ilustrar a situação, referi um caso ocorrido na Inglaterra no século 19, tratando da compra de uma carruagem por uma prostituta que não pagou e foi demandada judicialmente pelo fabricante. Como o caso em questão despertou curiosidade dos leitores, hoje trago a história completa e refiro outros casos subsequentes em que este foi utilizado para solucionar controvérsias com base na mesma holding.
1. A prostituta, o artesão e a carruagem
O caso em questão, como é de praxe nos países da common law, leva os nomes dos envolvidos, sendo conhecido como “Pearce v. Brooks” [1] e diz respeito a um fato ocorrido na Inglaterra, no ano de 1865, em que uma prostituta, Miss Brooks, encomendou uma carruagem de um artesão, Mr. Pearce, para que pudesse desfilar pelas ruas e atrair uma possível clientela.
Conforme consta no statement of facts do caso, Brooks encontrou com Pearce em Cremorne Gardens — um pleasure garden da Era Vitoriana que a esta altura já havia se tornado ponto frequente de prostituição [2] — acompanhada de outra mulher em “circunstâncias que foram devidamente calculadas para indicar o seu caráter”[3].
Então, após o encontro com o artesão, Miss Brooks encomendou uma pequena carruagem (brougham) que deveria ser construída de maneira similar a que havia sido feita para uma terceira mulher “da mesma estirpe”; consta ainda que Brooks era praticamente analfabeta e mal conseguiu assinar o contrato [4].
O acordado entre as partes foi que a carruagem seria construída conforme as especificações de Miss Brooks – fontes contemporâneas dizem que a carruagem foi arquitetada “de maneira curiosa” (curioulsy constructed) com o propósito específico de chamar a atenção de possíveis clientes[5] – a carruagem seria cedida inicialmente em aluguel, com o pagamento de 50 libras em prestações sucessivas, em no máximo 12 meses, podendo o contrato ser quitado a qualquer momento para aquisição definitiva; caso a carruagem fosse devolvida antes que um segundo pagamento fosse realizado, deveria ser paga uma multa no valor de 15 guineas (uma soma bastante considerável para a época), além do valor dos danos que não fossem típicos de uso [6].
Após o pagamento da primeira prestação e a entrega da carruagem, quando chegou o momento de pagar a segunda parcela acordada, Brooks se recusou a honrar o compromisso e, conforme a cláusula que constava no contrato teve que devolver a carruagem ao construtor. Quando recebeu a carruagem de volta Pearce ficou indignado: não apenas o pagamento não havia sido cumprido, como a carruagem havia sido devolvida muito danificada.
Inconformado com prejuízo que havia sofrido, Mr. Pearce resolveu buscar a justiça de Sua Majestade, a Rainha…
2. A Justiça da Era Vitoriana e a ação de Mr. Pearce
Antes de adentrarmos na ação específica proposta por Mr. Pearce é fundamental explicar ao leitor – ainda que de maneira bastante simplificada – como funcionava o sistema judicial da Inglaterra Vitoriana, uma vez que este difere substancialmente do modelo contemporâneo do Reino Unido.
Naquela época o sistema judicial inglês já vinha passando por reformas que perdurariam até o final dos anos 1890, visando tornar este mais simples e funcional, observado que, frente à expansão dos territórios britânicos, havia se instaurado uma multiplicidade de jurisdições que confundiam os súditos do reino.
Havia naquele momento três cortes dedicadas à common law: Queen’s Bench, dedicada a matéria criminal e qualquer ofensa à paz; Common Pleas, dedicada aos litígios civis entre comuns, e a Court of Exchequer, uma corte que tratava preponderantemente de litígios de natureza comercial e funcionava como grau recursal das decisões da Queen’s Bench. Cada corte era composta por um chief justice e três puisne judges (juízes condecorados com o título de Knight e no caso da Exchequer, Baron); abaixo dessas cortes havia juízes comissionados (assizes at nisi prius) e juris a depender da matéria tratada; em casos muito específicos era possível apelar da decisão da Chamber of Exchequer para a House of Lords, composta pelos Law Lords, juízes nobres de maior experiência e distinção [7].
Havia ainda uma court of equity, a Court of Chancery, que atuava com base em princípios de equidade, derivados diretamente da autoridade do monarca, “a fonte suprema da justiça”; esta era composta apenas pelo Lord Chancellor e seu Master of the Rolls, responsáveis por revisar petições diretas ao monarca, que diziam respeito a fundos de bens, propriedade de terras, curatela de “lunáticos” e guarda de menores. Ao contrário das cortes de common law, a court of equity, via-de-regra não ordenava pagamentos, mas sim injunctions (ordens de fazer ou não fazer) cujo descumprimento ensejava prisão por contempt (desprezo) [8].
Dada a natureza comercial da negociação entre Pearce e Brooks, a demanda foi apresentada no primeiro grau da Court of Exchequer: uma ação de cobrança que compreendia o valor da carruagem, 50 libras, mais 15 guineas da clausula penal, além da compensação pelos danos sofridos.
O caso foi levado para julgamento perante o júri, sob a presidência do Barão Bramwell, que submeteu duas questões aos jurados: a ré adquiriu a carruagem para o seu propósito de prostituição? Se sim, o requerente sabia para qual propósito a carruagem havia sido adquirida? O júri entendeu que a carruagem fora utilizada como parte da exibição da ré para atrair homens e que o autor sabia que esta foi fornecida para que assim fosse utilizada, razão pela qual o juiz presidente julgou em favor da ré.
Embora o valor do contrato tenha sido considerado não exigível, foi inicialmente concedida uma permissão para que o requerente fosse adiante com o pedido referente à multa, razão pela qual o processo foi levado à Chamber of Exchequer.
3. A decisão da Chamber of Exchequer: inexistência de diferença de imoralidade e ilegalidade do objeto do contrato e ausência de direito de ação dele decorrente
A pretensão do requerente não estava completamente desprovida de fundamentos, em suas razões Pearce sustentou que não havia evidências concretas que ele sabia qual seria o intento de uso da carruagem; e que se havia a expectativa de ser pago a partir dos proventos oriundos da prostituição da ré, esta era uma alegação material que não havia sido provada, o que diferenciava do precedente estabelecido em Bowry v. Bennet[9].
A ação de Pearce foi fulminada pela corte pelos seguintes fundamentos: ainda que não houvesse provas de que ele buscava lucrar a partir dos proventos oriundos da prostituição da ré, o júri concluiu que ele sabia que ela era uma prostituta e forneceu a ela a carruagem sabendo que esta seria, e efetivamente foi utilizada como parte de sua exibição para atrair homens. Portanto, o contrato era nulo e dele não derivava direito de ação.
A posição do tribunal foi capitaneada pelo Chief Baron Pollock que referiu [10]:
“Sempre considerei como lei estabelecida que qualquer pessoa que contribua para a prática de um ato ilegal, fornecendo uma coisa com o conhecimento de que será utilizada para esse fim, não pode recuperar o preço que por ela foi pago. Se, para negar essa possibilidade, alguma vez se considerou necessário que o preço fosse negociado ou esperado que fosse pago a partir dos frutos do ato ilegal […], essa proposição […] deixou de ser a lei.”
O Barão trouxe ainda uma referência importante sobre a impossibilidade de cisão entre ilegalidade e imoralidade:
“Não pode ser feita qualquer distinção entre um propósito ilegal e um propósito imoral; a regra aplicável à questão é ex turpi causa non oritur actio, e quer se trate de um fim imoral ou ilegal em que os demandantes tenham participado, enquadra-se igualmente nos termos dessa máxima, e o efeito é o mesmo: nenhum direito de ação pode surgir de um ou de outro.”
No mesmo sentido foi a fala do Barão Martin, que apontou a desnecessidade de que fosse provado a expectativa de pagamento a partir de proventos de origem ilegal:
“A petição afirma primeiro o fato de a ré ser, […], uma prostituta; segundo, que a carruagem foi fornecida para permitir-lhe exercer a sua vocação imoral; terceiro, que os demandantes esperavam ser pagos com os ganhos de sua prostituição. Na minha opinião, isto já seria suficiente, mesmo que se retire o terceiro ponto. [Se] há provas de que a carruagem foi, […], adquirida para fins de exibição para auxiliar a ré em sua ocupação imoral, o mérito está comprovado, e o contrato era ilegal.”
Por sua vez o Barão Pigot afirmou que “[…] se uma mulher, que é conhecida por ser prostituta, quer uma carruagem ornamentada, não há dúvida de para que finalidade ela a necessita. Então o princípio da lei expresso na máxima que meu Senhor citou rege o caso”
Por final o Barão Bramwell, que havia presidido o júri na origem, concordou com os demais e assentou:
“[…]O único fato realmente em disputa é para que propósito o contrato foi firmado, e se para um propósito imoral, os demandantes sabiam disso? No julgamento duvidei se havia provas, mas, pelas razões já expostas, penso que o júri tinha o direito de inferir, como o fez, que foi contratado para com o propósito de sua exibição, isto é, com o propósito de permitir que a ré prosseguisse sua vocação, e que o requerente sabia disso.”
4. Legado e repercussão
Pearce v. Brooks permanece sendo emblemático no âmbito do common law e é citado em decisões de diversos tribunais, sendo referenciado não só no Reino Unido, mas em outros países da Commonwealth, como Canadá (Minnie Nakata v. The Dominion Fire Inssurance Co. [1915]), Austrália (Andrews v Parker [1973]), Índia (Pranballav Saha V Tulsibala Dassi [1958]) e no território de Hong Kong (Chuang Yue Chien Eugene v Ho Yau Kwong Kevin [2002]).
O caso foi responsável por uma guinada em relação a Holman v Johnson (1775) [11] ao estabelecer a desnecessidade de envolvimento direto do vendedor na ilegalidade perpetrada para tornar o contrato nulo e inexigível.
No âmbito do direito contratual, Pearce v. Brooks estabeleceu a impossibilidade de se fazer uma distinção entre a imoralidade do objeto de um contrato e sua ilegalidade, sendo referência neste sentido [12].
Deve ser observado, todavia, que a moralidade nele referida é moralidade pública e as ideias do que é imoral mudam com o tempo. Um comportamento que seria considerado imoral há 20 anos pode ser tolerado ou até mesmo endossado pela lei atualmente [13].
No âmbito do direito processual foi responsável por sedimentar a aplicação do princípio ex turpi causa non oritur actio que havia sido inicialmente estabelecido por Holman v. Johnson. Tal princípio tem como pressuposto que o Estado não pode servir de instrumento para obtenção de vantagens oriundas de contratos ilegais; o objetivo da lei é dissuadir as partes de entrarem em transações deste tipo. Ao assentar a impossibilidade de cisão entre imoralidade e ilegalidade, reforça o dever de cuidado.
A doutrina permaneceu hígida na Inglaterra por mais de 100 anos, sendo recorrentemente aplicada. No ano de 1994 ao julgar o caso Tinsley v. Milligan, a House of Lords formulou um novo princípio que visava tornar a sua aplicação meramente mecânica: se o direito de ação estivesse diretamente vinculado à ilegalidade este era vedado, caso contrário este seria permitido. A decisão foi criticada por gerar decisões arbitrárias [14].
Em 2016, já sob égide da Suprema Corte do Reino Unido, ao julgar o caso Patel v. Mirza o teste estabelecido por Tinsley v. Milligan foi objeto de overruling. O motivo? Ao estabelecer um teste arbitrário baseado em uma previsão geral expressa em “norma” que deixava de considerar o caso concreto a decisão da House of Lords havia violado a coerência e a integridade do Direto [15]. A Suprema Corte então estabeleceu um novo teste que deveria ser aplicado caso a caso para que se obtivesse uma resposta: qual o propósito da proibição que foi violada? Quais outras proibições seriam afetadas? E, por fim, essa medida é proporcional?
Assim, ao analisarmos este caso podemos ver como se forma um precedente dentro do common law e perceber claramente as diferenças entre esta tradição e o suposto “sistema de precedentes” do CPC: trata-se de uma construção de anos, que vai sendo assentada a partir de sua aplicação, não baseada em uma autoridade imposta, mas sim da aceitação de sua ratio e de seu confronto ao caso concreto; isso faz com que nem mesmo haja necessidade de uma vinculação obrigatória do Tribunal que analisa o caso com aquele da onde surgiu o precedente.
Tudo isso serve para reafirmar a máxima do professor Lenio Streck: “precedente não tem certidão de nascimento”, mas pode ter sua “anatomia” estudada para que se entenda como foi constituído.
[1] PEARCE v BROOKS, 1866, LR 1 Ex 213.
[2]Cremorne Gardens: Gardens: Its History Between 1845 and 1877. Disponível em: <https://victorianweb.org/history/london/cremorne.html>.
[3] TEH, E. History and Sources of the Common Law. v. 87, p. 1318–1338, [s.d.];
[4] Ibid.
[5] BEALE, H. G. et al. Cases, materials and text on contract law. Oxford ; Portland (Or.): Hart Publ. Copyright, 2019.
[6] DLS. Pearce v Brooks: 1866. Disponível em: <https://swarb.co.uk/pearce-v-brooks-1866/>.
[7] CORNISH, W. R. et al. Law and society in England : 1750-1950. Oxford ; Chicago, Illinois: Hart, 2019.
[8] Ibid.
[9] Roupas vendidas para uma prostituta com intento de que fossem usadas no seu trabalho e que seriam pagas por meio dos proventos oriundos de sua prostituição (Bowry v. Bennet (1808) 1 Camp 348)
[10] Todos os trechos citados estão em tradução livre a partir da transcrição constante em PEARCE v BROOKS, 1866, LR 1 Ex 213.
[11] Um comerciante vendeu e entregou em Dunkirk (França) uma quantidade de chá ao réu sabendo este pretendia contrabandear para a Inglaterra (sem pagar o imposto). O autor moveu uma ação contra o réu para recuperação do valor do chá. O Tribunal da King’s Bench decidiu em favor do autor referindo que o objeto do contrato se esgotou fora da Inglaterra e que ele não colaborou para o contrabando (Holman v Johnson (1775) 1 Cowp 341)
[12] MARSH, S.B; SOULSBY, J. Business Law. 8th edition, Nelson: Cheltenham, p. 237-238
[13] BEALE, H. G. et al. Cases, materials and text on contract law. Oxford ; Portland (Or.): Hart Publ. Copyright, 2019. p. 668.
[14] The Defence of Illegality – “Ex turpi causa non oritur actio” – The Cyprus Approach – Legal Developments. Disponível em: <https://www.legal500.com/developments/thought-leadership/the-defence-of-illegality-ex-turpi-causa-non-oritur-actio-the-cyprus-approach/>.
[15] Patel v Mirza [2016] UKSC 42 (20 July 2016)
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