Opinião

40 anos de prisão: conveniência da pena de feminicídio como ferramenta eleitoral

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12 de outubro de 2024, 12h18

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No último dia 9, o presidente Lula sancionou a Lei nº 14.994, que, dentre outras alterações, trata a conduta do feminicídio como tipo penal autônomo, com pena em abstrato que varia de 20 a 40 anos de reclusão [1] (pena máxima que possui autorização no artigo 75 do CP, haja vista redação oriunda do pacote anticrime). O recrudescimento passa a ser o mais severo em nosso sistema penal, desbancando o crime de latrocínio (20 a 30).

Discutido perante a Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 4266/2023 contou com parecer emitido pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, esclarecendo:

Esses números evidenciam a necessidade de que sejam tomadas medidas mais severas e eficazes para combater a violência contra as mulheres. […] Entendemos que, sob o ponto de vista da segurança pública, o endurecimento e a diversificação das medidas de enfrentamento à violência contra a mulher fazem parte de uma estratégia vencedora […]. [2]

No mesmo sentido foi o posicionamento da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher:

A majoração das penas para crimes que o projeto muito acertadamente trata como precursores do feminicídio são deveras necessárias para que se possa enviar uma mensagem muito clara de que a sociedade brasileira não tolera nenhum tipo de violência contra a mulher e de que o Congresso Nacional e todas as autoridades constituídas estão atentas ao menor sinal de violência. [3]

Consagrada doutrina já elucidou a finalidade das penas [4], apontando divisão entre a teoria absoluta e relativa. Independente do que fora teorizado e das críticas que são tecidas a partir da falácia e falência da função envolvendo a prevenção do delito, nossa história demonstra que as alterações legais que endurecem as consequências para àqueles que praticam crimes graves, geralmente pautadas em políticas imediatistas e eleitoreiras, não resolvem o problema.

Números de crimes hediondos e feminicídio

Para que não tornemos massiva a justificativa a tal premissa, vejamos números fornecidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) tão somente no período pós-Constituição de 1988:

Em 1993, quando o crime de homicídio qualificado sequer era considerado hediondo, foram registrados 30.618 assassinatos no Brasil. Em 1995, mesmo tendo havido, no ano anterior, a inclusão da mencionada conduta no rol da Lei nº 8.072, o número saltou para 37.152. Quer mais? Em 2017 houve recorde de registros em nosso país, tendo alcançado o patamar de 65.302 óbitos. [5]

Spacca

Entre 1993 e 2017, a população brasileira aumentou 34% [6], sendo que o número de homicídios, no mesmo período, aumentou 75%. Fora constatado que tornar hedionda a conduta, com a promessa de regime integralmente fechado [7], impossibilidade de fiança, anistia, graça, indulto, dentre outras distinções processuais se comparado a um crime comum, não foi suficiente (nunca será) para reduzir as cifras envolvendo a prática delitiva.

No que diz respeito à temática que fora debatida recentemente perante a Câmara dos Deputados e agora sancionada pela Presidência da República, em 2004, quando sequer existia a Lei Maria da Penha, foram registrados 3.831 homicídios contra as mulheres [8]. Em 2017, quando já vigente a Lei nº 11.343/06 e também quando já incluída a conduta feminicídio como qualificadora no artigo 121, §2º, VI do CP (Lei nº 13.104/2015), o número de óbitos saltou para 4.936. [9]

O quadro representa um aumento de 29% na taxa de homicídios conta as mulheres, sendo que, no mesmo período, a população brasileira aumentou 13%[10].

Por que número de feminicídios aumenta?

Ora, se fora implementar a Lei Maria da Penha, instituindo medidas protetivas de urgência e, se fora considerado hediondo crime de homicídio praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, por qual razão o número de mulheres assassinadas aumentou em medidas totalmente desproporcionais ao aumento populacional?

A resposta é simples: porque aumento de pena não gera no consciente do delinquente um senso de responsabilidade. Não insere valores que demoram toda a infância e adolescência para serem moldados. O fator “medo das consequências legais” (prevenção específica negativa) já era existente, no patamar de até 30 anos de reclusão, porém, possui limite psicológico. É um mero lembrete de que sua conduta possui tratamento penal. Se o antigo preceito secundário do crime de feminicídio não foi capaz de cessar a prática, por qual razão a pena de 40, 50 anos ou prisão perpétua (por ora, ignoremos a limitação constitucional prevista no artigo 5º, XLVII, ‘b’) seria?

A análise estatística revela ser absolutamente questionável o argumento aposto em pareceres emitidos no PL 4266. Maior severidade não implica em “estratégia vencedora”, não sendo, de maneira isolada, suficiente para inibir a prática delitiva.

Obviamente os legisladores possuem consciência de tal premissa e tem acesso aos dados divulgados no Atlas da Violência. Ocorre que é mais vantajoso (do ponto de vista eleitoreiro) investir em políticas imediatistas que buscam angariar votos  daqueles que são bombardeados diariamente por notícias sensacionalistas.

Políticas sérias para combater violência doméstica

Sobre as políticas criminais baseadas no populismo, assim fora mencionado por Fernando Capez em entrevista:

O problema da produção legislativa no Brasil é que ela obedece a uma pressão exercida pela mídia para aplacar a comoção do momento, em vez de ser orientada por uma sistemática lógica, jurídica e científica. Basta acontecer um crime de grande repercussão e o Parlamento logo se reúne para fazer uma lei de ocasião, para atender àquela demanda popular surgida com o clamor provocado. Isso acaba sendo prejudicial pois anarquiza todo o sistema jurídico, gerando confusão e um emaranhado legislativo contraditório entre si. [11]

Punir é um mal necessário? Até Beccaria concordava que sim [12], disso não há dúvidas. O ponto central é: por qual razão a estrutura estatal não se move para investir em políticas sérias para diminuição da violência doméstica e familiar contra a mulher? Porque estas demoram décadas para dar resultado, e o mandato se encerraria muito antes, sendo inviável politicamente a reeleição sem um (questionável) resultado imediatista.

O País possui séculos de sociedade patriarcal, pautada no machismo e na segregação das mulheres nos mais variados campos de relações humanas. Não será a alteração no Código Penal, ultima ratio, que irá resolver a problemática da violência contra a mulher em razão de seu gênero.

 


[1] PLANALTO. Presidente sanciona lei que amplia para até 40 anos a pena para casos de feminicídio. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2024/10/presidente-sanciona-lei-que-amplia-para-ate-40-anos-a-pena-para-casos-de-feminicidio#:~:text=O%20presidente%20Luiz%20In%C3%A1cio%20Lula,Penal%2C%20de%20at%C3%A9%2040%20anos. Acesso em 10/10/2024.

[2] CSPCCO. Parecer da Relatora, Dep. Delegada Katarina (PSD-SE). Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2434151&filename=Parecer-CSPCCO-2024-06-04. Acesso em 10/10/2024.

[3] CMULHER. Parecer da Relatora, Dep. Laura Carneiro. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2401188&filename=Parecer-CMULHER-2024-03-26. Acesso em 10/10/2024.

[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, volume I. – 19. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017, 620-622.

[5] IPEA. Atlas da Violência: Homicídios. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/328. Acesso em 10/10/2024.

[6]  IBGE. Estimativa da população no Brasil. Disponível em http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=36471&module=M. Acesso em 17/09/2024.

[7] Antes do reconhecimento da inconstitucionalidade pelo STF em 2006 (HC 82.959) e da alteração legislativa em 2007 (Lei 11.464).

[8] Para a presente pesquisa, foram considerados dados absolutos do IPEA, não distinguindo àqueles que ocorreram exclusivamente em razão do gênero feminino. Tal generalização fora necessária em razão da subnotificação dos casos, vide conclusão do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em  levantamento de 2018. Disponível em https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/cresce-n-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-no-brasil-dados-de-feminicidio-sao-subnotificados.ghtml. Acesso em 10/10/2024.

[9] IPEA. Atlas da Violência: Homicídio Mulheres. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/40. Acesso em 10/10/2024.

[10] IBGE. Divisão de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica (IBGE/Pop)Estimativa da população no Brasil. Disponível em http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=36471&module=M. Acesso em 10/10/2024.

[11] BOSELLI, André. Leis são feitas com base em agenda oportunista, não critérios jurídicos, diz Capez. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-27/leis-sao-feitas-base-agenda-oportunista-fernando-capez/. Acesso em 10/10/2024.

[12] BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. – tradução J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. – 4. ed. rev. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 33.

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