Xô, concurseiros

Valorizar a vocação do juiz evita êxodo da carreira, diz Benedito Gonçalves

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11 de outubro de 2024, 8h52

Recém-empossado diretor-geral da Escola Nacional de Formação de Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, vê na valorização da vocação a forma de conter o êxodo da magistratura no Brasil.

Benedito Goncalves Spacca

O ministro Benedito Gonçalves, do STJ

Essa preocupação é a mesma demonstrada pelo ministro Herman Benjamin ao assumir a presidência do STJ, em agosto. Na ocasião, Benjamin prometeu estudar esse fenômeno preocupante e enfrentá-lo por meio do recrutamento e treinamento de juízes.

O cumprimento dessa promessa do novo presidente passa obrigatoriamente pela Enfam. Afinal, a escola organiza o Exame Nacional da Magistratura, que pode substituir a primeira etapa dos concursos públicos da carreira nos estados e busca um perfil diferenciado de candidatos.

Ao fim do processo seletivo, os aprovados passam por treinamento e preparação na Enfam. “Nós temos de levantar, primeiro, a vocação desses magistrados. Tem de ter um processo e também valorizar a carreira”, disse o diretor-geral em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Valorizar os vocacionados significa diferenciá-los daqueles que se enquadram na figura clássica do concurseiro. E é também o que permitirá à Enfam tornar esses juízes e juízas pessoas aptas a julgar todo tipo de ação, ainda que relacionada a realidades absolutamente distintas das deles.

“A escola de magistratura é fundamental para fazer com que o juiz entenda que o bem da vida que ele vai entregar é tão valoroso, não para ele, mas para a pessoa que vai receber. Esse bem da vida pode ser o quinhão de uma herança, um benefício previdenciário cancelado, seja o que for”, afirmou o ministro.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Qual é a ideia para a sua gestão na Enfam?
Benedito Gonçalves — A Enfam, para mim, começou com a ideia de regular os cursos de início, promoção, remoção e vitaliciamento de magistrados. Com o decorrer do tempo, começamos a ver as gestões e os movimentos dentro do STJ para a Enfam assumir outras missões ligadas a esse aperfeiçoamento da magistratura, com seminários, eventos, simpósios. Posteriormente, percebi que ela tem um intercâmbio cultural e escolar com outras escolas e universidades do mundo. Então, vejo que a missão da Enfam vai muito além do que eu pensava.

ConJur — Como o senhor avalia o estado atual da formação do magistrado, neste mundo digitalizado? Ele chega à profissão preparado?
Benedito Gonçalves — Tenho observado tanto na Enfam quanto nas escolas estaduais que todo o discurso para o juiz, não só o inicial, está voltado às novas tecnologias. É um assunto a que o juiz não está alheio. Ele não está em um mundo diferente, está no contexto do mundo. As novas tecnologias chegam mais rapidamente à vida do juiz. E criou-se no CNJ o Exame Nacional da Magistratura justamente para facilitar e unificar o ingresso. Então, há preocupação com economicidade, agilidade e com o juiz estar afeito aos novos instrumentos do mundo contemporâneo, que hoje é tecnológico e amanhã não sabemos como será. Haverá coisas novas por aí, e o juiz terá de estar familiarizado.

ConJur — No discurso de posse do ministro Herman Benjamin na presidência do STJ, ele destacou sua preocupação com a permanência do magistrado na carreira. Essa é uma preocupação que o senhor também tem?
Benedito Gonçalves Dentro do Judiciário há essa preocupação. Estive em um evento recentemente em que estavam falando da figura do concurseiro. Vou falar aqui hipoteticamente. Abre o concurso para juiz, ele diz: “Caramba, R$ 30 mil de salário, vou fazer”. Ele paga cursinho e entra, mas continua olhando concurso. Aí abre concurso para outra carreira com salário maior do que isso. Ele vai prestar. Ele não tem vocação. Então nós temos de levantar, primeiro, a vocação desses magistrados. Tem de ter um processo e também valorizar a carreira.

Veja que, para esse concurseiro, não adianta valorizar, porque se passar o salário para R$ 40 mil, ele vai encontrar um concurso de tabelião com salário de R$50 mil e vai prestar. Hipoteticamente. Essa é uma verdade do Judiciário. O que nós temos de fazer? Garantir condições de trabalho, de qualidade de vida, saúde. Quando eu cheguei ao Judiciário, não tinha nem plano de saúde. Então tem de ter qualidade de vida, saúde, o lazer que faz parte da vida saudável do funcionário. E também um salário digno, com o qual ele consiga viver e pagar suas contas. Hipoteticamente falando, é inadmissível um juiz conseguir um dinheiro para o café e estar preocupado com o dinheiro do almoço. Esse juiz vai poder cuidar, administrar o litígio, as demandas, as insatisfações do bem da vida dos outros, sem estar satisfeito com ele próprio? Ele não consegue ter a paz para ele.

ConJur O Enam tem o efeito de buscar a vocação?
Benedito Gonçalves Exatamente. A ideia é fazer essa peneira. Cada estado é independente e autônomo pela Constituição, mas é importante pelo menos tirar dessa peneira aqueles aventureiros e só ficar na segunda fase aquele que fez um investimento maior para o concurso, os vocacionados.

ConJur Como fazer com que um juiz, em regra uma pessoa de classe média ou alta, que dedicou anos ao concurso, seja capaz de julgar casos relacionados a realidades absolutamente distintas da dele?
Benedito Gonçalves — Eu vou fazer um paralelo aqui não muito apropriado, mas vou falar: eu não conheço ninguém na carreira de medicina que seja pobre. Porque o custo é muito alto, a não ser que consiga bolsa e tudo o mais. Aí a gente é surpreendido com aquele médico que é formado lá em Ipanema indo atender em hospital público, de periferia. A medicina, para mim, é um exemplo porque os primeiros atendimentos, o cara pode ter o maior plano de saúde, mas não dá tempo, ele é atendido para não morrer no hospital público.

Por isso eu digo que a escola de magistratura é fundamental para fazer com que o juiz entenda que o bem da vida que ele vai entregar é tão valoroso, não para ele, mas para a pessoa que vai receber. Esse bem da vida pode ser o quinhão de uma herança, um benefício previdenciário cancelado, seja o que for.

ConJur Como o senhor avalia a adesão dos novos juízes à cultura de precedentes tão importante e incentivada pelo CPC de 2015?
Benedito Gonçalves Para o juiz do Código de Processo Civil de 1973, ainda se falava que “o juiz é independente” — e continua sendo —, “tem livre convencimento” — e continua tendo. Eu vim da classe de juiz federal. Na minha época, eu estava louco para que o tribunal dissesse alguma coisa, seja a nível regional ou do STJ, para facilitar a minha vida, para dar segurança. A minha formação, na minha cabeça, sempre foi isso. Acho muito difícil não ter essa cultura de precedente e gerar insegurança.

Era comum acontecer, por exemplo, na primeira instância o sujeito conseguir um benefício e, muitos anos depois, o vizinho dele dizer: “Ué, mas eu tenho o mesmo direito e nunca recebi”. Não pode ser assim.

O precedente é tão antigo no Brasil… Não é uma coisa nova. Na Lei Orgânica da Magistratura, no artigo 90, está a obrigatoriedade da obediência ao julgado sumulado. Essa necessidade aumentou por causa da segurança jurídica. Temos agora um Código de Processo Civil de 2015 que coloca o precedente como algo obrigatório para todas as instâncias, pelo artigo 927. Mas, repito, lá em 1990, na Lei Orgânica da Magistratura, isso já aparecia.

ConJur — O juiz atualmente tem uma noção maior dessa importância?
Benedito Gonçalves — Se o juiz quer fazer literatura, ele tem o seminário, tem as aulas, tem a escrita. Dentro do Judiciário, tendo essa disciplina (de respeitar precedentes), vai ajudar muito. Nós temos hoje mecanismos de precedentes obrigatórios. De nada adianta ter o chamado recurso repetitivo se deixarmos a primeira instância decidindo cada um de um jeito. Não é para engessar, é para dar segurança. É para que, quando aquele vizinho do nº 30 não entender por que o do nº 29, do lado dele, ganhou e ele não, a gente poder justificar. E, normalmente, são questões sociais, como benefício previdenciário, por exemplo.

No Supremo, temos um sistema de repercussão geral, que não é pela quantidade de processos, mas pela repercussão da matéria — pode ser até um único caso. De nada adiantaria ter esse sistema se os tribunais ficassem sem respeitar. É uma necessidade, com o volume de casos e a demanda cada vez aumentando mais.

Desde 1988, nós temos o acesso livre à Justiça, que está lá no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição. Agora, nós temos de saber gerenciar esse acesso livre para dar essas respostas. Outro direito constitucional que veio com a Emenda à Constituição 45 é a razoável duração do processo. A Constituição não diz qual é o prazo razoável, mas nós, na nossa racionalidade, sabemos que não é racional ficar uma demanda por 20 anos em tramitação. Aí o precedente ajuda a cumprir os dois direitos: o do prazo razoável e o da segurança jurídica.

ConJur — Um juiz precisa saber gerir a sua unidade. Para isso, qual é a importância da formação?
Benedito Gonçalves — Aí voltamos à Emenda 45. O debate grande era de que o juiz não tinha tendência para a gestão. Mas por quê? Quando ele se forma na faculdade, é para ser advogado litigante. Não é nem para mediação. No escritório, ele entrega para alguém ser o administrador. Quando vira juiz, entrega para o escrivão. Nós temos, pela Emenda 45, a previsão de cursos oficiais de preparação. São 480 horas durante dois anos para os juízes entenderem a gestão. As 40 horas iniciais são feitas em módulo inicial aqui na Enfam, que voltou a ser presencial. O restante é feito com acompanhamento na origem, na sua escola estadual.

Quando eu assumi a Escola de Magistratura do TRF-2, disse o seguinte: “Não vou ensinar a vocês Processo Civil, Tributário, Penal. Isso foi feito lá no concurso, pela avaliação. Aqui é um filtro de como vocês vão se sair em diversas áreas e aprender a ser juízes”. E a gestão está dentro do juiz. Hoje, temos uma preocupação. Quando vem meta do CNJ, meta da OAB, meta do gabinete, são exatamente atos de gestão. Só que hoje estamos com uma metodologia maior dentro da escola de magistratura. Tudo isso está englobado na formação inicial.

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