Opinião

Recuperação judicial do produtor rural: a essencialidade além do bem de capital

Autor

  • Ramirhis Laura Xavier Alves

    é advogada associada do Grupo ERS e pesquisadora especialista em Direito Processual Civil pela PUC-MG atuante na seara do Direito Empresarial com foco em reestruturação empresarial e agronegócio especialista em administração judicial pelo Instituto Brasileiro da Insolvência e mediação na recuperação empresarial (Ibajud) e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

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11 de outubro de 2024, 13h16

Wenderson Araujo/Trilux/CNA

De acordo com o artigo 47 da Lei 11.101/05, a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir, sobretudo, a preservação da empresa viabilizando a manutenção da fonte produtora.

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

Tratando-se de recuperação judicial do produtor rural, sabe-se que os créditos e as garantias cedulares vinculadas à cédula de produto rural (CPR), de acordo com o artigo 11, da Lei 14.112/20, em regra, não se submeterão aos efeitos da recuperação judicial, a saber:

Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto.”

É possível, contudo, que o juízo recuperacional, no que se refere à expropriação de bens e ativos do recuperando, em atenção ao princípio de preservação da empresa, imponha restrições temporárias aos credores que não se sujeitam ao regime da recuperação judicial — credores extraconcursais. De acordo com a parte final do §3º, do artigo 49 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas, a respectiva restrição — que será imposta pelo magistrado condutor do processo de soerguimento — se estende apenas aos bens de capital que se revelem indispensáveis à manutenção do desenvolvimento da atividade econômica exercida pelo recuperando.

“§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”

No mesmo sentido, caminha o § 7°-A, do artigo 6º, que dispõe:

“§ 7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.” (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)

Manutenção da fonte produtora

Com efeito, a finalidade principiológica e prática da Lei 11.101/05 encontra-se estabelecida no artigo 47, dispondo que o objetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora como forma de estímulo à atividade econômica.

Inobstante ao teor principiológico da legislação recuperacional, o legislador, em certo contrassenso, trouxe o §3º do artigo 49 e o §7°-A, do artigo 6º, que por sua vez, além de demasiadamente esvaziar os créditos submetidos ao concurso de credores e engessar a recuperação do produtor rural, condicionam que somente os bens de capital devem ter seus atos de constrição suspensos no período legal de blindagem.

Spacca

Sabe-se, contudo, que tratando-se de produtor rural em recuperação judicial, os bens produzidos (commodities, semoventes etc.), não são caracterizados como bens de capital. No entanto, sabe-se, também, que o único produto — isto é, a única moeda de troca que o produtor rural possui, na maioria das vezes, são os produtos de sua produção, como por exemplo os grãos (soja, milho, algodão, feijão, café etc.) e, no caso dos pecuaristas, os semoventes.

Dito isto, em que pese a parte final do §3º, do artigo 49, da Lei 11.101/05, fato o é que o dispositivo legal deve ser interpretado de acordo com o objetivo principal da norma, de modo que uma única palavra denominada “capital”[1], não pode ir contra todo o objetivo legal da norma jurídica, sob pena de ferir todo princípio e objetivo dela decorrente.

Hermenêutica jurídica

Faz-se necessário, a partir de então, interpretar a norma de acordo com o seu objetivo. Utiliza-se, para tanto, o artigo 5°, da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro, que dispõe, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” [2].

Nessa perspectiva, para aplicação da lei utiliza-se a ciência da interpretação dos textos legais, a qual é denominada hermenêutica jurídica. Dentro deste contexto, há vários meios/métodos interpretativos para que o operador do direito busque o sentido e alcance da norma, sendo eles: gramatical; teleológico; lógico; histórico; sociológico e sistemático.

Tratando-se da recuperação judicial do produtor rural, a interpretação do §3º, do artigo 49 e § 7°-A, do artigo 6º, ambos da Lei 11.101/05, deve ser efetuada através do método teleológico, através do qual o julgador busca encontrar a finalidade estabelecida pelo legislador para o texto legal.

O método teleológico busca o desiderato final do preceito normativo para, a partir dele, determinar o seu sentido e alcance. Baseia-se na investigação da ratio legis — razão ou motivo que justifica e fundamento o preceito[3].

A professora da Universidade Federal de Minas Gerais Iara Menezes Lima, em seu artigo denominado “Métodos Clássicos de Interpretação no Direito Constitucional”, explica que:

“Essa razão ou motivo diz respeito à criação da norma, residindo na própria necessidade humana que esta visa amparar, ou seja, na sua finalidade prática. Há que se ter um motivo, uma justificativa, para a criação da norma jurídica, e  é  este motivo que vai possibilitar a revelação do seu verdadeiro sentido e alcance. Em uma linguagem mais objetiva, podemos dizer que a interpretação teleológica consiste na perquirição do “para quê” da norma jurídica, isto é, o fim a que ela se destina.

A regra básica do método teleológico se constitui na afirmativa de que sempre é possível atribuir – se um propósito às normas, uma vez que o direito é essencialmente finalista.”

Carlos Maximiliano entende que “o hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática”[4]

Método teleológico

Nessa conjuntura, com relação à interpretação da norma pelo método teleológico, o Tribunal de Justiça do Paraná, em um recurso de agravo de instrumento, entendeu que “o método teleológico de interpretação é realizado com vistas à intenção da lei, a finalidade para a qual a norma foi editada, desconsiderando sua literalidade, utilizando-se para tanto de elementos extra-textuais”.[5]

Da mesma forma, em um caso diverso, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios[6], entendeu que:

“O Magistrado, no exercício da função jurisdicional, deve valer-se de diversos recursos interpretativos para aplicar corretamente o direito ao caso concreto, destacando-se, dentre eles, os métodos teleológico e axiológico. O primeiro busca o fundamento da norma legal e o segundo explicita valores que ela deve concretizar.”

Nesse sentido, Francesco Ferrara é incisivo, quando afirma que “toda a disposição de direito tem um escopo a realizar, quer cumprir certa função e finalidade, para cujo conseguimento foi criada”.[7]

Por este ângulo, tanto o §3º, do artigo 49 e §7°-A, do artigo 6º, ambos da Lei 11.101/05, devem ser interpretados de acordo com a método teleológico, a fim de fazer a lei cumprir a sua função e finalidade de acordo com o que preceitua o artigo 49.

Nesse passo, tratando-se de produtor rural cuja fonte de renda e de produção seja exclusivamente grãos, gados ou semelhantes, a palavra “capital” deve ser mitigada a fim de cumprir os objetivos e a finalidade da Lei 11.101/05, esculpida no artigo 49.

Bem essencial para reestruturação do produtor

Nesse caso, comprovando que o bem é essencial para a reestruturação do produtor e, sobretudo, para a manutenção da fonte produtiva, este não necessariamente precisa ser de capital, sob pena de ferir todos os princípios, objetivos e finalidade da lei em razão de uma única palavra que, claramente, está em descompasso com os princípios norteadores do processo recuperacional.

Cumpre salientar que tal deliberação — mitigação da palavra “capital” — não trará nenhum prejuízo aos credores, uma vez que:

  1. A medida somente poderá ser utilizada durante o período do stay period [8], ou seja, por tempo determinado;
  2. Os grãos são bens fungíveis, isto é, podem ser substituídos por outro da mesma espécie, qualidade e quantidade, sem qualquer prejuízo.

A medida faz-se necessária para conceder ao recuperando — produtor rural — o mínimo de fôlego financeiro, permitindo, por consequência, a manutenção da sua fonte produtora, a preservação da empresa e de sua função social, de modo a fazer cumprir o objetivo legal da Lei 11.101/05[9].

Dessa forma, ultrapassado o prazo do stay period, encerrando o pedido de blindagem, o credor poderá dar continuidade aos atos expropriatórios, de modo a receber o que lhe é devido.

Tem-se, com isso, o cumprimento do objetivo e da finalidade da Lei 11.101/05 — seja para o recuperando, seja para o credor extraconcursal que receberá o seu crédito após o período de blindagem.

 


[1] § 3º do art. 49, da Lei 11.101/05.

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm

[3] https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/22/20

[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p.151-152.

[5] AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 659.236-3, DE TOLEDO – 1ª VARA CÍVEL AGRAVANTE: MULTIPET INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE EQUIPAMENTOS LTDA. AGRAVADA: FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DO PARANÁ RELATOR: Juiz ESPEDITO REIS DO AMARAL TRIBUTÁRIO E PROCESSO CIVIL – EXECUÇÃO FISCAL – CESSÃO DE CRÉDITO OFERECIDA COMO GARANTIA – PRECATÓRIO – EXEQUENTE QUE É O PRÓPRIO DEVEDOR – FACULDADE CONFERIDA NO ART. 673, § 1º, DO CPC – INAPLICABILIDADE – INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO – SUB-ROGAÇÃO – RECURSO PROVIDO, POR MAIORIA. O intérprete necessita procurar as recíprocas implicações de preceitos e princípios, até alcançar uma vontade unitária e harmônica da Constituição. O método teleológico de interpretação é realizado com vistas à intenção da lei, a finalidade para a qual a norma foi editada, desconsiderando sua literalidade, utilizando-se para tanto de elementos extra-textuais. A previsão da faculdade inserta no art. 673, § 1º, do CPC, neste cenário, não se aplica ao caso em tela, pois caso contrário estaria sendo privado de efeito o disposto em norma constitucional (art. 78 do ADCT), quanto ao poder liberatório dos precatórios.(TJ-PR – AI: 6592363 PR 0659236-3, Relator: Dimas Ortêncio de Melo, Data de Julgamento: 18/05/2010, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 451)

[6] Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios TJ-DF: 0739686-88.2020.8.07.0000 (https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-df/1137707913/inteiro-teor-1137707935?origin=serp)

[7] FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis, p.141

[8] § 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.

[9] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Autores

  • é advogada associada do Grupo ERS e pesquisadora, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-MG, atuante na seara do Direito Empresarial com foco em reestruturação empresarial e agronegócio, especialista em administração judicial pelo Instituto Brasileiro da Insolvência e mediação na recuperação empresarial (Ibajud) e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

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