Opinião

Quinto constitucional e judicialização: ADI 6.810 e a necessidade de lei nacional

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10 de outubro de 2024, 6h30

Em pouco menos de dois meses, o Supremo Tribunal Federal foi acionado para decidir matérias a respeito do Quinto Constitucional. Um dos casos é a ADI 6.810, questionando o artigo 5º e o artigo 6º, ‘a’, do Provimento 102 do Conselho Federal da OAB, que trata da necessidade de o candidato ter inscrição há cinco anos no Conselho Seccional responsável pela seleção da vaga e da necessidade de comprovar atos de advocacia no território do respectivo tribunal.

A ADI 6.810 não parece interessada em atacar os “cinco atos profissionais”. Apenas pretende que a comprovação não necessite ser “no território abrangido pela competência do Tribunal Judiciário onde se der a vaga a ser preenchida pelo quinto constitucional”, conforme aditamento à petição inicial.

Outro caso é a ADI 7.667, proposta pela Conamp, em face do parágrafo único do artigo 9º da Lei Complementar 266/2022, com alteração na Lei Complementar 294/2024 (estado do Piauí). Este caso trata de regra de alternância de maioria para os casos de vagas ímpares e para os casos de criações de novas vagas no Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI).

Isso sem contar com uma infinidade de questões que chegam ao Conselho Nacional de Justiça, aos Tribunais Regionais Federais e até ao Superior Tribunal de Justiça, que vão desde interpretações de regras editalícias até mesmo, pasmem, casos de candidatos que não teriam cumprido requisitos mínimos de tempo de advocacia e, mesmo assim, teriam sido admitidos nos certames.

Há ainda o caso da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) e a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), que ingressaram, em 2013, com a ADPF 311 perante o Supremo Tribunal Federal, questionando os prazos de escolha na Presidência da República (extrapolação do prazo constitucional de 20 dias para nomeação), usando a regra do artigo 94 como paradigma.

São tantos os casos de judicialização que é possível chegar a uma conclusão: a atual regulação do quinto constitucional é insegura.

Regras do sistema de seleção: imprecisão e insegurança

O que deveria estar sendo debatido — e não está — é uma legislação nacional para regular com maior segurança o sistema para não se tornar aquilo que o ministro Gilmar Mendes já advertiu, na ADI 4.078:

[…] se não houver regras, claro, podemos transformar isso num convescote eleitoral, com todos os déficits que podem marcar. Então, aqui, talvez esteja o problema: um déficit de organização e procedimento, o que sugere a necessidade realmente de que as cortes que tenham esse poder de cooptação exerçam-no segundo determinadas regras.

Os requisitos previstos na Constituição para o Quinto Constitucional contêm um alto grau de indeterminação conceitual. Por isso, além de ser possível, é absolutamente necessária a existência de regras infraconstitucionais de regulação e de concretização daqueles conceitos abertos, como “notório saber” e “efetiva atividade profissional”.

A “efetiva atividade” não pode ser simplesmente “ter registro” na OAB ou uma atuação “esporádica”. Assim, um número mínimo de atividades pode e deve ser fixado em regulamento: sejamos francos, cinco atos profissionais são até irrisórios, especialmente se analisada a envergadura dos cargos em disputa! Desde a antiga Lei 4215/63 — que precedeu a Lei 8906/94 —, exercer até cinco causas por ano se considera uma advocacia não habitual (como dita a lei nova) ou temporária (como referia a lei anterior).

Salvo melhor juízo, sendo o Quinto Constitucional um procedimento de seleção mediante um ato ou um procedimento administrativo complexo, em que atuam vários atores, em fases seguidas: o Poder Judiciário (onde está a vaga); a Ordem dos Advogados ou o Ministério Público (onde será selecionada a Lista Sêxtupla); o Poder Executivo (que nomeará) e até mesmo o Senado (no caso dos tribunais superiores) — faz-se imperiosa a edição de uma lei nacional, regulando o procedimento de seleção de forma minimamente uniforme e segura. Já tivemos a oportunidade de questionar, em livro[1] de nossa autoria, onde estão regras seguras para os seguintes pontos relevantes:

  • Qual o prazo para os tribunais comunicarem o Conselho da OAB a existência da vaga? Pode a vaga permanecer aberta por tempo indeterminado? Não ocorreria a supressão de representatividade da OAB (ou MP) na composição do Quinto? Qual a sanção neste caso?
  • Qual o prazo para o Conselho da OAB abrir a seleção após o comunicado do Tribunal?
  • O que se entende por “efetiva advocacia”? Cinco atos ao ano são suficientes? São apenas atos forenses (já que a seleção pressupõe advocacia militante e conhecimento da Corte)? Podem ser substituídos por advocacia consultiva? No todo ou em parte?
  • O Conselho da OAB fará a escolha direta? Ou cabe agregar o voto aberto a todos os advogados inscritos?
  • A votação direta seria economicamente proibitiva aos advogados mais humildes, elitizando a disputa?
  • O voto aberto, se adotado, pode valer para todos os tribunais? E no caso dos tribunais que jurisdicionam mais de um Estado? O sistema “um-homem-um-voto” não implica séria restrição de chances aos candidatos dos estados com número reduzido de advogados?
  • Após escolhida a Lista Sêxtupla, o tribunal tem prazo para a escolha da lista tríplice? Qual o prazo medianamente necessário para que todos os componentes da lista sêxtupla possam ser recebidos pelos magistrados votantes para entrega de currículos?
  • Após a escolha da lista tríplice, tem o Poder Executivo prazo de 20 dias para a nomeação: qual a sanção se descumprido o prazo? Até a nomeação, cada candidato inserido na lista tríplice tem direito de ser recebido pelo Chefe do Poder Executivo ou pela Comissão por este incumbida de entrevistar os candidatos?

São temas muito relevantes para deixarmos em regras infralegais esparsas.

Sugestão de uma lei nacional não viola qualquer iniciativa ou competência

A proposta de uma lei geral não altera a forma de provimento de cargo. Afeta tão-somente a regulação do processo de seleção. Fase preliminar. Com isso, não se adentra qualquer hipótese de iniciativa privativa ou exclusiva do Poder Executivo ou do Judiciário. Neste sentido, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal (ADI 2672, relatoria da ministra Ellen Gracie). Ao analisar a Lei 6.663/2001, do Espírito Santo, o STF verificou que a lei estabelecia mero critério de concurso público. Não versava sobre matéria relativa a servidores públicos (§ 1º do artigo 61 da CF/88). Dispunha sobre condição para se chegar à investidura em cargo público, que é um momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor público.

Spacca

O recrutamento de magistrados pela via do Quinto Constitucional é um ato complexo, igualmente é o momento anterior do candidato como magistrado, o qual precisa ser regulado de forma clara e objetiva. São várias entidades atuando em fases, cada uma das fases é essencial à fase seguinte. Não podem ficar reguladas em normas internas. Nem seria o caso, justamente por essa multiplicidade de atores, de ser reservada a regulação do Quinto para a Lei Orgânica da Magistratura. Seria caso de uma lei específica, envolvendo todos os atores envolvidos neste procedimento de escolha.

Do exposto, é cabível, via processo legislativo regular, a propositura de projeto de lei para tratamento de tão importante temática.

Regras nacionais, cabimento: não há afronta a competências estaduais

Regras nacionais não afrontariam, neste caso, qualquer competência estadual (quando falarmos de tribunais de justiça estaduais). A própria magistratura estadual já requereu e obteve que o STF reconhecesse a unidade nacional da jurisdição (caráter nacional do Poder Judiciário), para fins de teto remuneratório, quando da ADI 3854, relator Ministro Cezar Peluso. A questão foi decidida com base no caráter nacional do Poder Judiciário, além de outros pontos. A mesma premissa vale aqui.

Conclusão

A seleção pelo Quinto Constitucional, a despeito de a norma ser mais que octogenária, ainda merece atenção. Ainda parece incompreendida e sofre severos ataques. Muitos argumentam que falta ao sistema uma comprovação “documental” de mérito jurídico, confundindo a aprovação em um exame escrito com a única forma de avaliação meritocrática possível. A avaliação de mérito não se faz exclusivamente por via de provas estanques (igualmente não imunes a severíssimas críticas, em especial qualitativas). Também se pode fazer seleção de mérito pela comprovação de requisitos que podem ser colhidos da atuação profissional perene, na Advocacia ou no Ministério Público. Porém, críticas devem ser sempre bem-vindas e, quando absorvidas com sensatez e desprendimento, acabam gerando o aperfeiçoamento do sistema[2].

Toda clareza, transparência, controles rígidos de requisitos de impessoalidade e de eficiência são necessários em qualquer sistema de recrutamento para os cargos públicos, especialmente os vitalícios. É necessário existir um ambiente de credibilidade para que a seleção seja imune a questionamentos, em especial para que se tenha clareza de uma seleção de mérito, imparcial, impessoal, eficiente, capaz de preservar especialmente a imagem do tribunal no qual o julgador irá ter um lugar. Tudo deve ocorrer sem prejudicar a celeridade necessária na escolha, evitando, assim, que a representação da Advocacia e do Ministério Público seja prejudicada.

Em síntese: tudo o que se busca afirmar, neste texto, é que trazer regras gerais nacionais, com objetividade e segurança seria algo essencial.

Por derradeiro, a respeito notadamente da ADI 6810, nela há um único fundo de razão, trazido na petição de aditamento:

“O art. 10, § 2º, da Lei 8.9063/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil) exige inscrição suplementar do advogado em Conselho Seccional diverso do principal quando o profissional intervenha em mais de 5 causas por ano fora do seu domicílio profissional”. A prática de cinco atos está no limite daquilo que legalmente sequer se considera habitualidade profissional. O motivo foi apontado pela PGR em seu aditamento: a própria Lei 8906/94 somente exige inscrição suplementar acima de cinco causas por ano – vide art. 10, § 2º. O advogado deve promover a inscrição suplementar nos Conselhos Seccionais em cujos territórios passar a “exercer habitualmente a profissão considerando-se habitualidade a intervenção judicial que exceder de cinco causas por ano”. Isso se exigia desde 1963 na revogada Lei 4215, cujo art. 56, § 2º referia como “exercício temporário da profissão a intervenção judicial que não exceda a cinco causas por ano.”

Assim, até que as leis ou os regulamentos exijam mais de cinco atos, de fato, vincular a inscrição em determinado Conselho Seccional parece despropositado, ou uma incongruência com a Lei 8.906. A ADI 6810 poderá limitar a exigência de cinco anos de inscrição em determinado conselho, até que o Conselho Federal da OAB ou outra legislação passe a adequadamente exigir aquilo que historicamente se considera “efetiva advocacia”, “habitualidade” ou “advocacia não temporária”: mais de cinco atos anuais.

Isso não impede — aliás, o que deveria até mesmo incentivar — que a redação do provimento aumente o número de atos profissional para mais de cinco — por exemplo, dez atos anuais, que, inclusive, seria um número razoável e proporcional à elevada posição do cargo em disputa, não bastasse a vitaliciedade.

Mas isso não torna o requisito inconstitucional “tout court”. Tão somente, temporariamente: até que as regras passem efetivamente a exigir número de atos que demandem a inscrição no respectivo conselho seccional.

Ao final e ao cabo, a discussão apenas reforça a necessidade de uma regra geral nacional para o Quinto Constitucional.

 


[1] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. 85 anos do Quinto Constitucional (1934-2019), e os Sistemas de Recrutamento de Magistrados no Brasil. 1. ed. Porto Alegre: PLUS | Simplíssimo, 2019.

[2] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. 85 anos do Quinto Constitucional (1934-2019), e os Sistemas de Recrutamento de Magistrados no Brasil. Porto Alegre: PLUS | Simplíssimo, 2019.

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