Opinião

Processos estruturais, processos individuais e por que um precisa do outro

Autor

  • Susana Cadore

    é defensora pública do estado do Rio de Janeiro doutoranda PPGDIN/UFF mestre PPGD/UNESA especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ e membra da ABEP e IBDP.

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10 de outubro de 2024, 18h13

Está em plena discussão o projeto de lei (PL) que pretende disciplinar o processo estrutural no Brasil. Dos grandes exemplos desse tipo de processo, extrai-se que são litígios associados aos aspectos históricos e culturais moldadores dos comportamentos das grandes estruturas de uma sociedade, infiltradas em suas Instituições que em situação reais, concretas e reiteradas, violam direitos fundamentais [1].

Essas violações cotidianas manifestam-se em judicializações individuais massivas, um dos sintomas da doença crônica que o processo estrutural se propõe a tratar de forma coletiva e gradual, porém, duradoura.

É louvável que o Brasil acorde para esse tratamento, regulamentando um processo estrutural dialógico, que aposta na cooperação das partes e outros atores sociais. Como em um processo terapêutico, com muitas sessões, oitivas, rodadas de participação, observações, diagnósticos e monitoramentos. O PL acerta no método, que demonstra ter aprendido com os erros das ações civis públicas (ACPs) impositivas, que emolduraram suas belíssimas decisões, sem cumprir aquilo que grandiosamente prometiam em canetadas (não) mágicas.

Nessa terapia coletiva, um detalhe: o paciente precisa estar convencido a se tratar. Precisa permitir o diálogo e aceitar ajuda. De partida, precisa reconhecer a contribuição legítima de outros atores na correção de políticas públicas, que ele se omite em ajustar. O PL aposta forte nessa vontade genuína de mudança de postura, diante das inúmeras dores brasileiras que merecem tratamento. Mas o que impulsiona esta súbita disposição ao diálogo?

Ações individuais massivas movimentam o sistema

Quando efetivados, há quase 30 anos [2], os direitos sociais o foram por meio da judicialização individual. As ações individuais massivas movimentam o sistema pelo incômodo, pelo caos, pela imposição bruta, que submete o lesador em execuções invasivas. Um conta-gotas enlouquecedor e persistente, que revela a realidade que não se quer ver. Ainda que não se disponha exatamente a curar a doença, as ações individuais massivas medem a febre que sinaliza ser hora de iniciar o tratamento.

Enquanto o processo estrutural busca o diálogo, as ações individuais apresentam as consequências e o risco, que levam para mesa de negociação quem nunca quis conversar. Exatamente por isso que ações individuais massivas devem ser compreendidas como aliadas do processo estrutural e não como rivais.

Spacca

Além de inconstitucional, a previsão de suspensão dos processos individuais “que tenham relação com o litígio estrutural”, permite a juízes a fuga de suas responsabilidades constitucionais na proteção de direitos subjetivos, fomentando postura de omissão que já havíamos superado. Apesar da previsão de concessão de liminares em casos urgentes, haverá o efeito colateral de uma proliferação de execuções provisórias ad eternum, que evitam os amadurecimentos de mérito. A oportunidade perfeita para o paciente enganar-se, resistir ao tratamento e fugir dos debates incômodos.

Creditar ao processo estrutural o título de “bala de prata” é novamente cometer o erro das antigas ACPs, pretendendo um protagonismo inalcançável em litígios complexos. Ao invés de interagir com as potencialidades dos demais sistemas processuais (individual, constitucional e até internacional), essa suspensão artificial de ações individuais camufla a situação real, induzindo o paciente a achar que está curado, e a não aderir ao tratamento.

Repetir que ações individuais mais atrapalham do que ajudam, ou que desorganizam mais ainda uma estrutura com aprofundamento de desigualdades, mostra desconhecimento da heterogeneidade de demandas individuais prestacionais e, mais importante, da dificuldade em estudos conclusivos nesse sentido [3].

Judicialização impulsionada por elites é mito

Apesar da dificuldade, pesquisa revisada e aprovada pelo Institutional Review Board da Princeton University [4] concluiu, após análise de 1.262 demandas no Rio Grande do Sul, não passar de mistificação a hipótese de que a judicialização é impulsionada pelas elites urbanas e não está disponível aos pobres. Em 91% das demandas, a gratuidade de justiça foi requerida, e, em 50%, os autores eram representados pela Defensoria Pública.

Reconhecer que a judicialização individual massiva é um fenômeno que transcende o processo individual e alcança também efeitos coletivos é importante. Segundo Danielle da Costa Leite Borges, a criação da Conitec, a evolução de órgãos de assessoria técnica (NAT-Jus), ou o bem sucedido caso da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde, impulsionada pela Defensora Pública do estado no Rio de Janeiro, foram respostas indiretas à judicialização massiva individual. Embora reconheça algum grau de injustiça e ineficiência, foi o litígio individual, conclui a autora, a causa de o Sistema de Saúde Brasileiro tornar-se mais justo e eficiente [5].

O discurso simplista da “fila furada” ignora os reflexos legislativos da judicialização massiva, como a recente promulgação da Lei 14.851/24 que dispõe sobre a obrigatoriedade de levantamento e divulgação da demanda por vagas no atendimento à educação infantil. Ignora também a opacidade das Centrais de Regulação de vagas, com filas sigilosas que permitem a negociação de vagas em conhecidas trocas políticas ou decisões médicas absolutamente insindicáveis. Há ainda o caso de filas paradas [6], que somente são impulsionadas por ordens judiciais, considerando entraves administrativos insolúveis a deixar todos a espera da morte. Assegura-se somente a igualdade formal: a de morrer igualmente.

Esses debates incômodos foram pautados por pessoas que judicializam em desespero seus direitos subjetivos aos direitos prestacionais. Segundo os dados do IBGE, em 2022, 60,1% da população do país sobrevive com um salário mínimo e 31,8% com de 1 a 3 salários mínimos [7]. Neste cenário, utilizar-se do sistema público de Saúde e Educação não se trata de uma escolha [8].

A suspensão de ações individuais será medida somente comemorada pelos habituais réus de processos estruturais, que não mais terão motivos para dialogar. É preciso corrigir rapidamente essa rivalidade irrefletida e apostar na complementaridade dos sistemas processuais.

 


[1] FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha. Litígios Estruturais no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Londrina, PR. Thoth, 2024. p.24.

[2] STF, Pet n. 1.246 MC/SC, Min. Celso de Mello, DJ 13/02/1997. Mas detalhes em FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Para equacionar a judicialização da saúde no Brasil. Revista Direito GV. São Paulo. v. 15 n. 3. e1934. 2019. p. 10.

[3] ANDIA, Tatiana. S.; LAMPREA, Everaldo. Is the judicialization of health care bad for equity? A scoping review. International Journal for Equity in Health, BioMed Central, v. 18, n. 1, 18:61, 2019.

[4] BIEHL, João.; SOCAL, Mariana P.; AMON, Joseph. J. The Judicialization of Health and the Quest for State Accountability: Evidence from 1,262 Lawsuits for Access to Medicines in Southern Brazil. Health and Human Rights, v. 18, n. 1, p. 209-220, 2016.

[5] BORGES, Danielle da Costa Leite. Individual Health Care Litigation in Brazil through a Different Lens: Strengthening Health Technology Assessment and New Models of Health Care Governance. Health Hum Rights. 2018 Jun;20(1):147-162. PMID: 30008559; PMCID: PMC6039743.

[6] Um estudo de caso analisou com profundidade a fila das cirurgias ortopédicas de alta complexidade do Estado do Ceará em um processo estrutural em trâmite na 6ª Vara Federal da 5ª Região da Comarca de Fortaleza, qual seja a ação civil pública 0002012-48.2006.4.05.8100. O caso teve início pela reclamação de um usuário que esperava cirurgia para a colocação de prótese no quadril. Na fase de execução, o Ministério Público Federal apurou o quadro de que existia uma demanda de 3.988 pacientes aguardando cirurgia, tendo sido realizadas somente 352 cirurgias até setembro de 2014, Foi diagnosticado que um dos motivos da “fila não andar” decorria de entraves na licitação das próteses, e somente conseguiam se operar aqueles pacientes que judicializavam e compravam suas próteses através de ordens judiciais em ações individuais. FARIA, Priscila Teixeira de. Litígios estruturais e o direito à saúde: o caso da fila das cirurgias ortopédicas de alta complexidade do Estado do Ceará. Universidade Católica de Brasília. Dissertação. 2019. p.76 e p.89

[7] Dados PNAD/ IBGE, Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. 2023. p.63. disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102052.pdf

[8] Refina-se essa seleção, vide a Tese Firmada no Tema Repetitivo 106 do STJ em 2018:  “Concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

Autores

  • é defensora pública do estado do Rio de Janeiro, doutoranda PPGDIN/UFF, mestre PPGD/UNESA, especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ e membra da ABEP e IBDP.

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