Opinião

In dubio pro societate: standard negativo de prova

Autor

  • Matheus Felipe de Castro

    é doutor em Direito pela UFSC e pós-doutor em Direito pela UnB. Professor de Direito Processual Penal na graduação em Direito da UFSC. Professor do mestrado profissional em Direito e Acesso à Justiça da UFSC. Professor de Criminologia na Graduação em Direito da Unoesc. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais da Unoesc. Coordenador do Cautio Criminalis (Grupo de Estudos em Realidade do Sistema Penal Brasileiro). Ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SC. Advogado criminalista.

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10 de outubro de 2024, 17h14

O Supremo Tribunal Federal, em 12 de setembro de 2024, no julgamento do RE 1.235.340/SC, com repercussão geral (Tema 1.068), firmou entendimento, por maioria de votos, segundo o qual a soberania dos veredictos no Tribunal do Júri, prevista na alínea ‘c’, do inciso XXXVIII, do artigo 5º, da Constituição, autoriza a execução imediata da pena privativa de liberdade imposta.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Também prevaleceu no julgamento o entendimento de que os trechos do §4º e da alínea ‘e’, do inciso I, do artigo 492, do CPP, que condicionavam a execução imediata da pena somente nas condenações a penas de reclusão superiores a 15 anos seriam inconstitucionais, pois relativizariam a soberania dos veredictos.

Enfim, a tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.

Embora a decisão represente uma deturpação do princípio da soberania dos veredictos (cujo significado remete à impossibilidade de revisão da decisão de mérito do Júri senão pelo próprio júri) e a aplicação, pela mais alta corte do país, de uma espécie de antiponderação de princípios (não se buscou otimizar o sistema de princípios e regras, anulando, isso sim, corolários do estado de inocência e do duplo grau de jurisdição), o Tema 1.068 demanda o enfrentamento do in dubio pro societate como regra de verificação de suficiência probatória na primeira fase do Tribunal do Júri.

O escalonamento do procedimento do Tribunal do Júri

É que, a partir de agora, com o cumprimento imediato da pena imposta em caso de condenação, cresce a importância prática de se respeitar a função do escalonamento do procedimento do Júri em duas fases, o judicium accusationis e o judicium causae, as competências exercidas em cada uma delas e o compromisso ético com a valoração da prova produzida em juízo de admissibilidade a partir de critérios efetivamente previstos na legislação constitucional e processual penal.

Na tradição da “common law”, com interesses mais pragmáticos e adversariais, o procedimento do Tribunal do Júri foi pensado em duas fases distintas, cada uma exercendo uma função diferente no julgamento do acusado: o Grand Jury, separado do Judiciário (que não preside seu funcionamento), com atribuições investigativas e encarregado de realizar a admissibilidade prévia da acusação — aquilo que nós, brasileiros, chamamos de verificação da “justa causa” [1] — e o Petty Jury, presidido por um judge, e encarregado do julgamento definitivo do mérito.

A Inglaterra desenvolvera seu sistema acusatório em paralelo ao modelo inquisitorial da Europa Continental, de modo que a figura do inquérito não se tornara central naquela tradição, permitindo uma melhor distribuição ou paridade de armas entre as partes. Por isso, desde sempre foi adotado o princípio da imediatidade da prova, segundo o qual as evidences deveriam ser produzidas na presença dos jurados, o que foi viabilizado pela desconcentração da sessão plenária e pela comunicabilidade entre os jurados.

Spacca

Isso levou a um júri bipartido, com produção prévia das provas da materialidade e indícios de autoria perante o Grande Júri, encarregado de verificar o nível de suficiência probatória da acusação para dizer, ao final, se o acusado seria ou não submetido ao julgamento definitivo pelo Pequeno Júri. Embora existam modelos que abandonaram a bipartição, como acontece em alguns estados norte-americanos, foi mantido o sistema de imediatidade.

Esse modelo possibilitou que, diante de uma causa apresentada em mesa do júri pela acusação, o juiz presidente pudesse agendar audiências de instrução seriais, onde as provas são produzidas em contraditório pelas partes, com a presença física dos jurados que, na audiência de julgamento, decidem com base num conjunto probatório efetivamente conhecido, de modo que suas decisões sejam muito mais fundadas em elementos de convicção extraídos da instrução que da retórica dos debates propriamente considerados.

Ressalte-se a tradição de um efetivo cross examination sobre as provas produzidas pelas partes, o que foi possibilitado pela compreensão acusatoriamente mais bem elaborada do adversary system inglês, onde as partes foram efetivamente concebidas como as gestoras das proofs, cabendo ao president apenas a direção dos trabalhos e a análise jurídica das objections opostas pelas partes, cabendo o julgamento definitivo do mérito somente aos jurors.

Essas diretrizes levaram a um procedimento qualitativamente diverso do brasileiro: se, aqui, tradicionalmente se valorizou a pompa dos debates, longos e eruditos, mediocrizando a produção probatória em plenário, nos Estados Unidos se valorizou a instrução plenária (produção, em exame cruzado, de provas documentais, periciais e testemunhais na presença efetiva dos jurados), com debates iniciais (de apresentação da causa e das regras do julgamento) e finais (conclusões de mérito) mais enxutos, diretos e argumentativos.

Como se vê, o modelo brasileiro desenhado no CPP de 1941 seguiu um caminho diverso. Aqui não adotamos o Grande e o Pequeno Júri, mas optamos pelo modelo de procedimento bipartido, substituindo o Grande Júri por uma fase inicial, o judicium accusationis ou sumário de culpa, perante um juiz togado, encarregado de realizar a admissibilidade dos níveis de suficiência da prova produzida por uma acusação que, não bastasse ter tido o apoio inicial do inquérito confeccionado pela Polícia Judiciária, ainda conta com o sumário de culpa para transmudar os elementos informativos inquisitorialmente produzidos em efetivas provas submetidas ao contraditório.

Portanto, o escalonamento do procedimento do Júri foi historicamente pensado como um juízo prévio de admissibilidade orientado a verificar a presença de um “suporte jurídico legitimante”[2] contra acusações temerárias, filtrando a remessa dos réus ao julgamento definitivo do plenário. Nesse sentido, Stalyn Paniago Pereira, em excelente dissertação de mestrado defendida recentemente no programa de pós-graduação em direitos fundamentais da Unoesc sustentou, corretamente, que a sentença de pronúncia deve ser considerada um “instrumento eficacial de direitos e garantias fundamentais a não banalizar a instituição do Júri” [3].

No entanto, como veremos adiante, assim como o STF confundiu o sentido da soberania dos veredictos no julgamento do RE 1.235.340/SC, a jurisprudência estadual brasileira deturpou o sentido do procedimento escalonado do Júri mediante a criação ficcional de um antistandard de prova denominado in dubio pro societate, que cumpre a triste função de fazer tábula rasa de direitos e garantias fundamentais estabelecidos pela Constituição.

Standard negativo de prova

As questões ligadas à criação exótica desse “princípio” e à falta de sua previsão legal são há muito conhecidas da teoria processual penal, tendo sido inclusive reconhecidas no âmbito jurisprudencial tanto pelo STJ (por exemplo, no REsp n. 2.091.647/DF, relator ministro Rogério Schietti Cruz), quanto pelo STF (por exemplo, no HC n. 227.328/PR, relator ministro Gilmar Mendes).

Para não repetir argumentos conhecidos, concentremo-nos na natureza dessa criação ficcional que gera efeitos práticos no procedimento escalonado do Júri. Como apresentado na práxis judicial, o in dubio pro societate tem sido arguido em duas oportunidades: na argumentação pelo recebimento da denúncia (por exemplo, na jurisprudência mais antiga do STJ, APn nº 996/DF, relator ministro Maria Isabel Gallotti), ou com mais intensidade, na sentença de pronúncia, quando é sacado como argumento que encerra o jogo, submetendo o acusado ao julgamento pelo conselho popular, sem que o juiz togado tenha que enfrentar efetivamente o problema da suficiência probatória.

O argumento padrão é que, em sendo os jurados os juízes naturais dos crimes dolosos contra a vida, haveria usurpação de suas competências constitucionais se o togado adotasse qualquer medida que não a pronúncia (impronúncia, absolvição sumária, desclassificação). Como se percebe, o argumento se consolidou mais como um artifício para sagrar vitoriosa a imputação preliminar, conferindo procedência ao pedido de pronúncia do que um respeito efetivo às atribuições constitucionais do conselho de sentença.

Na redação originária do CPP, anterior às modificações inseridas pela Lei 11.689/2008, o artigo 411 estabelecia inclusive o recurso “ex officio” interposto pelo magistrado em face de sua própria sentença de absolvição sumária, sendo que a regra da práxis judicial da época era a reforma protocolar da decisão, com fundamento no in dubio pro societate, para o fim de pronunciar o acusado e submetê-lo ao julgamento definitivo do conselho de sentença.

Fica evidente que a criação jurisprudencial do in dubio pro societate atendeu à função de operar como um “standard” pré-concebido com a finalidade de submeter o acusado ao julgamento definitivo do conselho de sentença, fazendo tabula rasa de outro princípio, este sim positivado, o princípio do in dubio pro reo, decorrência lógica do estado de inocência, com assento no artigo 5, inciso LVII, da Constituição.

Acontece que um standard é uma regra técnica de segurança. Toda ciência trabalha com standards metodológicos para evitar acidentes, regras que preveem, inclusive, margens significativas de segurança para prevenir desvios-padrão. Assim, um standard é uma regra que estabelece uma margem de proteção razoável que deve ser seguida pelo técnico responsável pela realização de um trabalho socialmente perigoso. No caso do processo penal, o “quanto” de prova é necessário para confirmar uma hipótese acusatória [4].

Sem a existência dessas regras técnicas, todo profissional permaneceria sem parâmetros objetivos razoáveis para definir suas margens de atuação e manobra. E o que é pior, a sociedade ficaria à mercê da subjetividade ou das percepções diferenciadas dos diversos profissionais em torno da execução de suas atividades perigosas, o que é ainda mais gravoso na atual sociedade do risco.

Portanto, a natureza de um standard é sempre uma “exigência de maior segurança”. Daí que, a partir do direito norte-americano, tenham se desenvolvido e popularizado os standards de prova como níveis técnicos para essa exigência quando da afetação (restrição ou privação judicialmente autorizada) de um ou alguns direitos fundamentais civis.

A popularização no Brasil do debate em torno desses níveis técnicos de segurança probatória na decisão judicial, aliada à adoção expressa dos procedimentos para a efetiva garantia da cadeia de custódia dos vestígios coletados na cena do crime, está permitindo conceber a necessidade de se transmudar o “livre” convencimento motivado (de forte acento subjetivo) em um “convencimento técnico motivado” (de maior acentuação objetiva), mais afeito à auditabilidade por seus pares.

Sem esse critério de objetividade técnica, o sistema se torna incontrolável, como ressaltado por Badaró, para quem “o juiz nunca terá errado, na medida em que ‘se convenceu’ que o nível da prova era aquele. O julgamento e provimento de um eventual recurso, apenas indicará que os julgadores em segundo grau ‘se convenceram’ em sentido diverso. Ambos estarão, contudo, subjetivamente corretos” [5].

No caso do in dubio pro societate, construído na jurisprudência brasileira como argumento orientador da decisão judicial na fase final do sumário de culpa, diante de um leque de possibilidades (pronúncia, impronúncia, absolvição sumária e desclassificação), ele orienta o magistrado à decisão que mais interessa ao órgão acusatório, a pronúncia, mediante rebaixamento dos níveis técnicos de suficiência probatória.

Ora, dessa forma, o in dubio pro societate não é utilizado como um nível de segurança contra decisões potencialmente restritivas ou privativas de direitos fundamentais, mas como uma verdadeira anulação desses níveis de suficiência, de modo que podemos sustentar que ele se constitui em um verdadeiro antistandard ou standard negativo de prova, o que não se coaduna com as funções projetadas pelo legislador quando do escalonamento do procedimento do Júri, pensado para aumentar a segurança do estado de inocência, não para diminuí-la.

Ele, o in dubio pro societate, inverte a lógica das regras técnicas de segurança em nome de uma ancoragem societária punitivista, abrindo as comportas para que se submetam ao Júri demandas que não deveriam passar pelo filtro da segurança do procedimento escalonado. Portanto, ele não apenas estabelece um standard negativo de prova, como anula a razão da existência do próprio escalonamento do procedimento no Tribunal Popular.

Considerações finais

O Conselho Federal da OAB se manifestou contrariamente à decisão do STF no RE 1.235.340/SC e declarou que tentará reverter a decisão por intermédio da ADI 6.783/DF, de sua proposição, que objetiva declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos do artigo 492, do CPP, que admitiram a execução imediata das sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal do Júri.

Conseguindo ou não, a gravidade do cumprimento imediato da pena demanda que a Corte se manifeste, com repercussão geral, sobre a ilegalidade do uso do in dubio pro societate como standard probatório na sentença de pronúncia, impedindo o julgamento definitivo de causas duvidosas e, para as quais, já existe solução legislada no artigo 386, VII, do CPP. Ocorre que a atual composição do STF não é favorável a que isso ocorra.

Há que recordar que o §2º, do artigo 315, do CPP, estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

O in dubio pro societate é um conceito jurídico indeterminado, sem previsão legal, nivelador de decisões em padrões negativos de segurança, se prestando a justificar qualquer decisão pela pronúncia, liberando o juiz de valorar as provas produzidas no sumário de culpa e que poderiam levar a inadmissibilidade da acusação, sendo incompatível com a lógica escalonada do júri e com os preceitos de direitos fundamentais centrados na valorização da dignidade humana, estabelecidos na Constituição.

 


[1] JARDIM, Afrânio da Silva. Direito Processual Penal. RJ: Forense, 1999, p. 95, define justa causa como “suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação”.

[2] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10. ed. SP: Saraiva, 2019, pp. 1342-43.

[3] PEREIRA, Stalyn Paniago. O julgamento dos crimes dolosos contra a vida pelo tribunal do júri: a decisão de pronúncia e os standards probatórios mínimos à efetividade de direitos fundamentais. Dissertação defendida no PPGD da UNOESC. 27/09/2024. Orientador: Prof. Matheus Felipe de Castro.

[4] LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais. Sobre o uso do standard probatório no processo penal. 26/07/2019. In: https://www.conjur.com.br/2019-jul-26/limite-penal-uso-standard-probatorio-processo-penal/

[5] BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. 2. Ed. SP:RT, 2023, p. 248.

Autores

  • é doutor em Direito pela UFSC e pós-doutor em Direito pela UnB. Professor de Direito Processual Penal na graduação em Direito da UFSC. Professor do mestrado profissional em Direito e Acesso à Justiça da UFSC. Professor de Criminologia na Graduação em Direito da Unoesc. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais da Unoesc. Coordenador do Cautio Criminalis (Grupo de Estudos em Realidade do Sistema Penal Brasileiro). Ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SC. Advogado criminalista.

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