Opinião

A inadequação do Banco Central como empresa pública

Autor

  • Carlos Frederico Alverga

    é economista graduado na UFRJ especialista em administração pública pelo Cipad/FGV e em Direito do Trabalho e Crise Econômica pela Universidade de Castilla La Mancha (Espanha) e mestre em Ciência Política pela UnB.

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10 de outubro de 2024, 15h16

A formulação e a implementação de políticas públicas essenciais à manutenção da higidez da economia do país são atividades típicas de Estado, principalmente quando envolvem o exercício do poder de polícia, o qual, segundo doutrina jurídica majoritária, não pode ser exercido por entidades com personalidade jurídica de Direito Privado. Tal é o caso das políticas monetária, cambial e de regulação do sistema financeiro, formuladas e implementadas pelo Banco Central.

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A tradição jurídica doutrinária brasileira no âmbito do Direito Administrativo, calcada no conceito de regime jurídico-administrativo, formulado pelo eminente administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello, é de preponderância do interesse público sobre o privado, um dos pilares do aludido regime, junto com a indisponibilidade do interesse público.

As políticas levadas a cabo pelo Banco Central, as quais influenciam diretamente as taxas de juros e câmbio, o custo do dinheiro, a proporção pela qual a moeda nacional é permutada com a principal moeda conversível do mundo, o dólar, a gestão das reservas internacionais do Brasil, e as regras que regem os empréstimos e financiamentos concedidos pelas instituições financeiras aos correntistas/depositantes, incidem diretamente sobre a vida da população, e são de interesse público a toda prova.

A formulação e implementação dessas políticas públicas têm que ser desempenhadas pelo Estado, diretamente ou por entidade pública por ele controlada, são atividades tipicamente estatais, jamais podem sê-lo pelo mercado, nem mesmo por entidade privada mediante delegação ou concessão.

Autarquia e o poder de polícia

Conforme consta da doutrina majoritária do Direito Administrativo brasileiro, a entidade juridicamente mais apropriada para desempenhar funções tipicamente estatais, como são as exercidas pelo Banco Central, de forma descentralizada e mais ágil e dinâmica do que a administração direta, é a autarquia, a qual tem personalidade jurídica de direito público, e que, por essa razão, pode, desde que identifique a prática de infrações ao ordenamento jurídico praticadas por instituição financeira a ela jurisdicionada, exercer o poder de polícia e aplicar sanções aos seus jurisdicionados administrativos, o que não pode ocorrer com a empresa pública, por esta ser detentora de personalidade jurídica de direito privado, o que a incompatibiliza para exercer o poder de polícia.

O poder de polícia, segundo o artigo 78 do Código Tributário Nacional, tem a seguinte definição:

“Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”

Conforme o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009:822) uma definição mais direta de poder de polícia poderia ser o estabelecimento, pela administração pública, no exercício da função administrativa, que é a função típica do Poder Executivo, de limitações administrativas à liberdade e à propriedade dos administrados.

Spacca

A aplicação deste conceito de poder de polícia presente no Código Tributário Nacional à atividade exercida pelo BC fica caracterizada nas menções da definição legal aos aspectos de disciplina do mercado e ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do poder público, no caso em tela representado pela Autoridade Monetária Autárquica.

A necessidade de supremacia

Nesse ponto, concordamos com a argumentação desenvolvida por Pablo Bezerra Luciano, em seu artigo publicado nesta revista eletrônica Consultor Jurídico em 30 de março de 2024, intitulado “Ilha de poder: o Banco Central como empresa pública”. No citado artigo, o autor defende que os poderes de que o Banco Central dispõe, como autoridade monetária, principalmente o poder de polícia, pelo qual fiscaliza as instituições financeiras e concede autorização para seu funcionamento (artigo 10, IX e X da Lei 4.595/1964), são incompatíveis com a natureza jurídica de Direito Privado da empresa pública, pela qual o BC ficaria numa situação de igualdade horizontal com as instituições financeiras que ele fiscaliza e pode vir eventualmente a sancionar, por intermédio da imposição de multas, devido a eventuais infrações que estas possam ter cometido. O BC não pode fiscalizar, sancionar e aplicar multas a instituições financeiras que estão no mesmo patamar de horizontalidade que ele.

Para o desempenho de tal mister, é essencial que haja uma relação vertical, de supremacia entre o BC autoridade monetária e as instituições financeiras privadas a ele jurisdicionadas administrativamente, o que só é compatível com o regime jurídico de Direito Público, o regime jurídico-administrativo de Celso Antônio Bandeira de Mello, e, consequentemente, com a natureza autárquica do BC.

Sendo assim, a entidade reguladora do sistema financeiro precisa ocupar uma posição de supremacia em relação aos bancos comerciais privados por ela regulados e supervisionados, caracterizando a situação de verticalidade. Daí, a necessidade imperiosa de manutenção da condição do BC como autarquia, com personalidade jurídica de direito público, e a impossibilidade de sua conversão em empresa pública, devido à existência das incompatibilidades supra aludidas.

Caso adote o regime jurídico de direito privado, por meio de sua conversão à forma de empresa pública, a entidade BC perderá as condições para exercer o poder de polícia sobre as instituições bancárias particulares submetidas a sua fiscalização, deixando de possuir a supremacia característica do regime jurídico de direito público, que é exatamente o que viabiliza o exercício do poder de polícia.

Esta última ponderação encontra respaldo na seguinte passagem de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009:832):

“A restrição de atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos, quando em causa liberdade e propriedade, porque ofenderiam o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns exercessem supremacia sobre outros.”

 


Referências Bibliográficas:

Luciano, Pablo Bezerra. “Ilha de poder: o Banco Central como empresa pública”.  Artigo publicado na Revista Eletrônica Consultor Jurídico em 30 de março de 2024;

Mello, Bandeira de Celso Antônio. “Curso de Direito Administrativo” , 26ª edição, São Paulo, Editora Malheiros, 2009.

Autores

  • é economista graduado na UFRJ, especialista em administração pública pelo Cipad/FGV e em Direito do Trabalho e Crise Econômica pela Universidade de Castilla La Mancha (Espanha) e mestre em Ciência Política pela UnB.

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