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A (a)tipicidade dos 'cogumelos mágicos'

Autores

  • Demóstenes Torres

    é advogado sócio fundador do escritório Demóstenes Torres Advogados mestre em Direito Constitucional pelo IDP especialista em Direito e Processo Penal pela Academia de Polícia Civil de Goiás. Procurador de Justiça aposentado e duas vezes Procurador-Geral do MP-GO. Senador da República por Goiás (2003/2012); presidiu a CCJ (Comissão de Constituição Justiça e Cidadania) do Senado.

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  • Daniel Cardoso Rodrigues

    é consultor jurídico e psicoterapeuta (esquizoanalista).

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  • Caio Alcântara Pires Martins

    é advogado sócio do escritório Demóstenes Torres Advogados mestre em Direito Constitucional pelo IDP pós-graduando em Direito e Processo Penal pela ABDConst.

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10 de outubro de 2024, 15h00

Tem-se assistido a uma série de ações policiais de repressão ao cultivo e comércio dos popularmente chamados “cogumelos mágicos”. Há poucas semanas, noticiou-se operação da Polícia Civil de Goiás que prendeu um homem “suspeito de vender cogumelos alucinógenos pela internet” [1].

Em setembro deste ano, no Paraná, foram cumpridos mandados de busca e apreensão e foi preso em flagrante um jovem de 21 anos por “tráfico de cogumelos” [2]. A Polícia Civil paulista, no mês de fevereiro, prendeu duas mulheres “suspeitas de manter uma fábrica para a produção de chocolates alucinógenos [compostos por cogumelos] na cidade de Mairiporã, na Grande São Paulo” [3]. Há vários outros episódios recentes [4].

O produto é o fungo psilocibino (gênero Psilocybe), da espécie cubensis, encontrado em abundância na natureza, especialmente no esterco bovino. Há inúmeras variantes (cepas) catalogadas, comuns nas regiões (sub)tropicais do planeta, em especial nas Américas Central e do Sul. É considerado pelos povos tradicionais uma medicina entegênica (remédio espiritual), por seus efeitos supostamente curativos e amplificadores da consciência.

Aqui, objetiva-se discutir a (a)tipicidade da conduta de comercializar essa espécie de fungo, com enfoque na diferença entre o “corpo” do cogumelo e a sua substância isolada ou sintetizada.

Chamado pelos astecas de “carne dos deuses”, os cogumelos psilocibinos são sacramentados há milênios por diversos povos indígenas, em cerimônias espirituais e religiosas. O termo remete a um alimento sagrado do espírito, já que o fungo sempre foi utilizado para conectar os povos tradicionais à que chamam de dimensão transcendental.

Na década de 1950, o cientista (químico) suíço Albert Hoffman descobriu que a psilocibina – um dos principais alcaloides dos cogumelos psilocibinos — poderia ser isolada desse fungo e sintetizada em laboratório. Observou-se que, quando sintetizada, induz a percepções sinestésicas e estados incomuns de consciência (alterações perceptuais comparáveis às ocorridas no uso ritual da ayahuasca e do peyote). Sua estrutura molecular se assemelha muito ao neurotransmissor serotonina.

Além do uso espiritual e ancestral [5][6][7], recentes pesquisas sobre a molécula psilocibina apontam para sua segurança e eficácia no tratamento de desordens psíquicas como ansiedade, depressão, transtornos por uso de álcool e outros, além de resultados considerados extraordinários nas condições de sobrevida de pacientes terminais [8].

Com suporte em evidências científicas satisfatórias, considerada sua insignificante toxicidade, o uso terapêutico da molécula psilocibina recebeu da FDA (Food and Drug Administration, agência do departamento de saúde do governo dos Estados Unidos) o status de “terapia inovadora” (breakthrough therapy) para investigações adicionais em pacientes com depressão ou transtorno depressivo maior resistente a tratamento [9]. É considerada, por exemplo, quatro vezes mais eficaz que antidepressivos clássicos [10].

E justamente a aplicação terapêutica desse psicofármaco marca a chamada “revolução psicodélica” atual.

À medida que as pesquisas avançam, aumenta significativamente o uso pessoal (espiritual, medicinal e até recreativo), juntamente com a produção e comércio desses cogumelos.

Empresas (de pequeno a grande portes) comercializam os fungos inteiros, na forma desidratada, eventualmente veiculados em cápsulas, e até misturados a outros alimentos, como o chocolate. Tais práticas têm originado procedimentos criminais para apuração do delito de tráfico de drogas (artigo 33, § 1º, da Lei 11.343/2006); além de, em alguns casos, falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de substância ou produtos alimentícios medicinais e falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (artigos 272 e 273 do Código Penal).

Ambos os delitos se configuram com (1) a expressa proibição, em lei ou regulamento, do produto ou substância (tipicidade formal) e (2) a constatação de seu concreto potencial lesivo (tipicidade material).

De fato, a sintetização das moléculas psilocibina e psilocina (iniciada precisamente em 1958) acabou tornando a substância proscrita em diversas legislações do mundo, como a brasileira.

No aspecto formal, segundo o parágrafo único do artigo 1º da Lei 11.343, consideram-se drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

Assim, a Portaria 344 da Anvisa define os seguintes itens: droga — que tenha finalidade medicamentosa ou sanitária; entorpecente — pode determinar dependência física ou psíquica relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção Única sobre Entorpecentes; psicotrópico – pode determinar dependência física ou psíquica e relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas; substância proscrita – aquela cujo uso está proibido no Brasil.

O caput do artigo 4º da citada portaria proíbe “produção, fabricação, importação, exportação, comércio e uso de substâncias e medicamentos proscritos”, enquanto seu parágrafo único excepciona “as atividades exercidas por órgãos e instituições autorizados pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde com a estrita finalidade de desenvolver pesquisas e trabalhos médicos e científicos”.

Nota-se que o corpo dos cogumelos mágicos não consta da “Lista de plantas e fungos proscritos que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas” — diferente do que ocorre, por exemplo, com a Cannabis sativa L (maconha) e a Papaver somniferum L (papoula). Apenas sua substância, a psilocibina, quando extraída e disponibilizada para uso, está na Lista F2, de “substâncias de uso proscrito” – “psicotrópicas”. Nesse sentido, discorre o engenheiro químico Marcos José Correia [11]:

“[…] as substâncias encontradas nos cogumelos Psilocybe cubensis, e que estão listadas no documento acima citado, são a 3-[-(DIETILAMINO)ETIL-]-1H-INDOL-4-OL DIHIDROGENOFOSFATO ÉSTER (PSILOCIBINA) e a 3-[-(DIETILAMINO)ETIL-]-1H-INDOL-4-OL (PSILOCINA), e nenhuma destas está relacionada com a produção das substâncias (6aR,9R)-N,N-DIETIL-7-METIL-6,6a,8,9-TETRAHIDRO-4H-INDOLO[4,3-fg]QUINOLINA-9-CARBOXAMIDA (LSD) e 3-(2-DIMETILAMINO)INDOL (DMT). Sendo que esta última não é encontrada em cogumelos, mas apenas em espécies vegetais pertencentes a gêneros de plantas como Acacia, Mimosa, Anadenanthera, Chrysanthemum, Psychotria, Desmanthus, Pilocarpus, Virola, Prestonia, Diplopterys, Arundo, Phalaris, dentre outros.

As substâncias mencionadas (PSILOCINA e PSILOCIBINA) se encontram listadas no supracitado documento e podem também ser encontradas em outras espécies de fungos pertencentes aos gêneros Conocybe, Copelandia, Galerina, Gymnopilus, Inocybe, Panaeolus, Pholiotina e Pluteus (GUZMAN, 1988). Exemplares de espécies pertencentes a estes gêneros fazem parte da Biodiversidade brasileira e de outros países, e são livremente estocados, trocados e estudados em laboratórios de várias instituições de pesquisas e universidades brasileiras, para fins de estudos científicos, sem constituir nenhum ato ilícito, por porventura apresentarem em sua composição tais metabólitos. É importante que se considere o fato de que estas substâncias (PSILOCINA e PSILOCIBINA) não são compostos constitutivos (não fazem parte da estrutura celular) e, por serem metabólitos secundários, só são produzidos sob condições fisiológicas/ambientais específicas e dependem de características genéticas, podendo, em muitos casos, não serem encontradas nos corpos de frutificação (DÖRNER et al., 2022). Assim sendo, não é possível afirmar a presença de PSILOCINA e PSILOCIBINA, quer em cogumelos, quer em produtos derivados (cápsulas, extratos, pó, etc.) sem uma análise química adequada, uma vez que são relatados casos de não ocorrência de tais substâncias nos cogumelos P. cubenses (SRIJVE & KUYPER, 1988)” [12].

Também se argumenta que a venda desse fungo, quando introduzido em cápsulas ou em gênero alimentício, é proibida pela Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa (RDC) N° 26, de 13 de maio de 2014, que regula o registro de medicamentos fitoterápicos e o registro e a notificação de produtos fitoterápicos, de acordo com o Anexo I (“Lista de espécies que não podem ser utilizadas na composição de produtos tradicionais fitoterápicos”). Assim, ausente autorização do órgão competente e ofertado em desacordo com as disposições regulamentares, afirma-se que a prática configuraria os crimes contra a saúde pública previstos nos artigos 272 e 273 do Código Penal.

Há um grave equívoco nessa interpretação jurídica. Conforme dito, o objeto de comercialização, no caso, é o corpo do cogumelo cubensis, não sua substância isolada (psilocibina). De fato, a encapsulação do fungo seco é vedada na RDC N° 26/2014, mas se trata de proibição administrativa às farmácias de manipulação, em razão de esse cogumelo não ter sido regulamentado como fitoterápico, razão por que não poderia ser manipulado nem ofertado como produto farmacêutico. Inexiste, porém, proibição criminal para comercializar o fungo em qualquer de suas formas.

Questão específica é extrair e sintetizar um dos diversos alcaloides do cogumelo cubensis (ex.: psilocibina), o que caracteriza delito de tráfico de drogas. O “corpo do fungo” (cogumelo in natura), em si, não tem comercialização vedada criminalmente. É o que se depreende da RDC Nº 861/2024, que atualizou o Anexo I da Portaria SVS/MS nº 34 (Listas de Substâncias Entorpecentes, Psicotrópicas, Precursoras e Outras sob Controle Especial) [13].

É interessante observar que, apesar de o Psylocybe Cubensis não constar da lista de fungos e plantas, o regulador inseriu nesse mesmo rol (item 2) outro fungo, o Claviceps paspali Stevens & Hall, encontrado no esporão do centeio, largamente utilizado na síntese da dietilamida do ácido lisérgico (LSD 25), psicodélico inserido na lista de substâncias proibidas pela portaria em exame (lista F2, item 1, da portaria 344/1998 Anvisa).

Nota-se, portanto, que o regulador, quando desejou proibir a comercialização de determinada planta ou fungo — em homenagem ao princípio da legalidade penal — tratou de inseri-los na lista correspondente (lista E), do modo como fez com o fungo Claviceps. Quando intentou proibir a substância correlata (LSD 25), classificou devidamente o item na lista de substâncias proscritas (lista F).

Como visto, o mesmo não ocorre com o fungo psilocybe cubensis, que constou apenas da lista de substâncias proibidas, o que leva a concluir que — até que o corpo do fungo seja inserido na lista E – apenas a extração e síntese da molécula psicoativa (psilocibina) ficam proibidas na seara penal.

“Onde impera a mesma razão, deve imperar o mesmo direito” e não se pode confundir ausência de regulamentação com proibição ou incriminação.

Mas mesmo a extração é impraticável, pois, conforme mencionado também por Marcos José Correia, no citado documento, “a produção de psilocibina e psilocina pura, além do conhecimento e domínio de técnicas laboratoriais refinadas, requer equipamentos de laboratório caros e de reagentes não acessíveis (HEIM et al, 1960)”. No mesmo sentido, para a professora Elisa Esposito[14], “extrair psilocibina necessitaria pelo menos um extrator ultrassônico ou um Soxhlet[15], os quais são de difícil acesso.

Esse raciocínio levou o Ministério Público Federal a promover o arquivamento de procedimento investigatório instaurado com a finalidade de apurar possível prática do delito de tráfico de drogas. Segundo a Procuradoria da República,

Com efeito, as substâncias DMT, psilocibina e mescalina não podem ser comercializadas diretamente no Brasil, entretanto, salienta-se que, por sua vez, as mercadorias indicadas nos autos como vendidas pelo site […] não são proibidas no país, mesmo que contenham as referidas substâncias, como é o caso, por exemplo, do Psilocybe Cubensis, cogumelo comercializado pela empresa.

Nesse sentido, sem evidências da comercialização das substâncias proibidas de forma isolada, e, não tendo sido apresentadas outras informações que indiquem a existência de suposto delito, não há que se falar no cometimento de crime9.

Isso porque, nos mesmos autos, conforme consta da Informação Técnica nº 050/2013 — UTEC/DPF/SOD/SP, da Perícia Criminal da Polícia Federal, no IPL18-0486/2013-4DPF, “não foi identificada comercialização de qualquer produto considerado como droga, nos termos da legislação vigente […]. Foram identificadas menções às plantas proscritas […] e oferta do fungo não proscrito Psilocybe cubensis, nos termos da legislação vigente”.

Na mesma linha, em dezembro de 2023, na manifestação da 5ª Delegacia de Polícia Federal (feito 1045082-36.2023.826.0050), a autoridade de PF arrematou: “O produto em si, ou seja, o cogumelo ou fungo em natura, não se apresenta como produto proscrito na lista ‘E’, sendo que, para obter a substância considerada droga, dever-se-á ser submetida a processo de extração”.

A 3ª Vara de Tóxicos, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Comarca de Belo Horizonte, em outubro deste ano, absolveu um acusado de tráfico de drogas em caso similar, ao dispor que “entre as variedades de cogumelos arrecadados na residência dos réus, de fato, não estão inseridos na portaria da Anvisa que dispõe sobre a referida matéria”. Ainda segundo a sentença,

“Para tanto, a extração da substância proibida — psicilocina — faz-se necessário um processamento químico, além de conhecimento técnico para sua retirada, o que leva à conclusão que a simples comercialização desprovida do citado procedimento não importa, por si só, no fornecimento de material ilícito previsto na Lei de Drogas a ensejar o enquadramento no tipo penal disposto no art. 33 da Lei nº 11.343, de 2006. Inclusive, como já ressaltado acima, o fungo do tipo Psilocybe cubensis não se encontra na lista de plantas e fungos proscritos que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, o que difere da Cannabis que encontra previsão” [16].

De fato, não se tem notícia de extração ou síntese dessa molécula no Brasil, razão por que todas as pesquisas em território nacional até hoje foram realizadas por meio de importação da psilocibina (e da psilocina), sempre fornecida por laboratórios estrangeiros altamente especializados.

Já a respeito do potencial lesivo da conduta (tipicidade material), inexiste indicativo de que o cogumelo gere efeitos deletérios à saúde. Sobre dados de intoxicações, a própria Anvisa informa que “não há notificações psilocibina, psilocina e psilocibe nos bancos de dados utilizados pela Gerência de Farmacovigilância — GFARM” [17].

Pelo contrário. Elisa Esposito aponta que “muitos estudos atestam os benefícios terapêuticos de seu uso” e, por sua vez, diz José Marcos Correia:

“O uso dos cogumelos psicoativos remonta a milênios. Os astecas os denominavam de teonnacatl (carne dos deuses) e utilizavam em rituais religiosos e de cura (NICHOLS, 2020). Em relação aos efeitos da psilocibina/psilocina no organismo, estas não apresentam risco de dependência química, uma vez que não atuam no sistema de recompensa do cérebro, então relacionado ao neurotransmissor dopamina, como outras substâncias (nicotina, álcool, cocaína e heroína (NUTT et al., 2010; DMHAS, 2022). A psilocibina/psilocina exerce no cérebro uma ação agonista (atividade sobre um neuroreceptor, modificando sua atividade de modo a provocar um efeito observável) nos receptores de serotonina, em particular no receptor 5HT2A, sendo este considerado o mecanismo chave para seu efeito no sistema nervoso central (NICHOLS, 2004). O DMHAS (Connecticut Department of Mental Health and Addiction Services), em seu relatório para sobre o uso legal da PSILOCIBINA, reconhece o uso seguro desta substância no tratamento de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno depressivo maior (TDM), cefaleias em salvas e cefaleias pós-traumáticas (DMHAS, 2022).”

Vale lembrar a famosa pesquisa da Global Drug Survey, de 2016, que, após exame de riscos e segurança do uso, elaborou um ranking das diferentes substâncias psicoativas analisadas. Concluiu que os magic mushrooms (“cogumelos mágicos”) seriam considerados os itens menos perigosos, em comparação com quaisquer outras drogas. Baseou-se na baixa frequência de internações médicas ou emergências associadas ao seu uso.

O estudo ainda ressaltou que a toxicidade dos cogumelos é baixíssima e que o risco de dependência ou efeitos físicos graves é menor em relação a substâncias como álcool, cocaína, tabaco, anfetamina, cannabis, ecstasy e LSD [18].

Corroborando tais dados, cabe apresentar outro promissor estudo brasileiro, em fase de pré-publicação (2024). Examinou, de 2007 a 2022, todos os eventos adversos (intoxicação, morte e outros) registrados no sistema Sinan/SUS, relacionados ao uso dos cogumelos e comparados a eventos adversos de outras drogas. Os resultados foram surpreendentes:

“Evidenciou-se que os eventos adversos relacionados ao uso de cogumelos psilocibinos representaram 13 casos, o que equivale a 0,02% de todas as internações por abuso de drogas entre 2007 e 2022 (n = 112.451).

Apoiado por esses achados, dados do Global Drug Survey (Winstock A. et al., 2017) ressaltam os aspectos de segurança dos cogumelos psilocibinos. Entre mais de 12.000 indivíduos que relataram o uso dessas substâncias em 2016, apenas dezenove (0,2%) precisaram de atendimento médico (Kopra et al., 2022; Winstock A et al., 2017). Destes, oito (42%) foram hospitalizados, mas se recuperaram prontamente dentro de vinte e quatro horas. De 2007 a 2022, a prevalência de internações relacionadas ao uso de cogumelos psilocibinos no Brasil foi de 46,2% (n = 6/13), uma taxa comparável aos dados anuais da Global Drug Survey.

Apesar de essa taxa parecer mais alta em comparação com as internações relacionadas a outros agentes tóxicos, devemos interpretar esses dados com cautela, devido ao tamanho extremamente reduzido da amostra de eventos adversos registrados na série histórica” [19].

Outro equívoco jurídico decorre da (confusa) interpretação de que o fungicultor, ao ter consigo ou ofertar o psilocybe cubensis no mercado, supostamente estaria portando substrato, insumo ou matéria-prima para produzir drogas e, assim, cometendo o delito de tráfico de entorpecentes. Em verdade, o artigo 2º da Lei de Drogas imputa o crime nos casos de plantio, cultura, colheita e exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas.

A definição jurídica de “substrato”, emprestada da bioquímica (e atrelada à produção de fármacos), é fornecida pelo artigo 3º, VI, da RDC 55/2010 da Anvisa: “Moléculas ou substâncias-alvo cuja enzima é capaz de catalisar sua reação”. Ou seja: substratos são moléculas ou substâncias sobre a qual uma enzima reage (quimicamente) para criar produto final. É o que ocorre com o safrol, substância que reage para produção da droga “MDMA”, ou mesmo o ácido clorídrico, para fabricar cocaína.

Quanto à “matéria-prima”, embora não conste da Lei de Drogas, é conceito próximo ao de substrato. A definição surge no artigo 3º, XXX, da RDC 301/2019 (Anvisa), atrelada às boas práticas para produzir e certificar medicamentos: “Qualquer substância ativa ou inativa utilizada na fabricação de um medicamento”, exceto as embalagens.

Os “insumos” (farmacêuticos) tratados na RDC Nº 301/2019 (artigo 3°, incisos XIII, XV, XV e XLIII), fora da legislação, foram definidos pela Anvisa:

“Representam o início da cadeia produtiva da indústria farmacêutica. São as matérias-primas utilizadas na produção dos medicamentos. O insumo farmacêutico ativo, também conhecido como IFA, é uma dessas matérias-primas. É a substância que dá ao medicamento a sua característica farmacêutica, ou seja, aquilo que faz com que um determinado medicamento funcione. Para assegurar a qualidade na produção de medicamentos, a Anvisa é responsável pela fiscalização das empresas e pelo controle sanitário dos insumos farmacêuticos ativos” [20].

Os psilocybe cubensis não são, por si, substratos, insumos ou matéria-prima para a fabricação de drogas. Não são moléculas, nem substâncias, nem produto destinado a outro fim. São organismos vivos, decompositores, recicladores e simbióticos, imprescindíveis por si mesmos, com reino biológico próprio e inúmeros componentes ativos (dentre eles a psilocibina). Não são vegetais nem animais [21].

A simples existência de psilocibina no corpo do cogumelo não o torna matéria-prima para produzir drogas, diferente do que ocorre com outros materiais utilizados em sínteses reações e separações químicas. Como dito, a psilocibina contida no fungo sequer pode ser extraída de forma natural, senão por processos farmacêuticos e métodos científicos complexos, indisponíveis ao comerciante.

Excepcionalmente, de acordo com a RDC Nº 301/2019, seria possível classificar tal fungo como insumo para pesquisa e fabricação de fármacos, desde que destinado a esses fins, e desde que haja maquinário disponível para a sua transformação, como ocorreu na autorização de pesquisa sujeita a controle especial AI/992/2024, que autorizou a importação de 18 kg de cogumelos certificados (para pesquisa e produção de insumos farmacológicos).

Contudo, a presunção incriminatória (interpretação in malam partem), com o fim de evitar a regulação, além de conceitualmente equivocada, viola princípios do direito penal como legalidade, anterioridade e taxatividade. E, no campo da bioética e dos direitos humanos, abre precedentes perigosos para o tratamento jurídico dos inúmeros organismos vivos da natureza que também produzem substâncias psicoativas de forma natural.

O fungicultor, ao produzir ou ofertar o produto no mercado, o faz com apenas uma intenção: vender o cogumelo cubensis (produto ainda não regulamentado, portanto, permitido).

Com essas considerações, conclui-se pela atipicidade formal e material da conduta de comercializar “cogumelos mágicos”, a obstar a persecução penal em desfavor das pessoas que cultivem ou ofertem no mercado o fungo psilocybe cubensis.

 


[1] https://noticias.r7.com/jr-24h/boletim-jr-24h/video/suspeito-de-vender-cogumelos-alucinogenos-e-preso-em-goias-27092024/.

[2] https://g1.globo.com/pr/campos-gerais-sul/noticia/2024/05/03/operacao-policial-mira-em-trafico-de-cogumelo-magico-no-parana.ghtml.

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/policia-fecha-fabrica-de-chocolates-alucinogenos-na-grande-sp/.

[4] https://sbtnews.sbt.com.br/noticia/policia/pf-desmonta-esquema-de-venda-de-cogumelos-alucinogenos-pela-internet-em-belo-horizonte.

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pf-faz-operacao-contra-venda-de-cogumelos-alucinogenos-pela-internet/.

https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2023/07/31/cultivador-de-cogumelos-magicos-e-preso-em-mossoro-rn.htm.

https://www.metropoles.com/distrito-federal/na-mira/cientista-do-trafico-e-preso-por-cultivar-cogumelos-magicos.

[5] CAROD-ARTAL, F. J. (2015). Alucinógenos en las culturas precolombinas mesoamericanas. Neurología, 30(1), 42–49. DOI:10.1016/j.nrl.2011.07.003.

[6] CELIDWEN, Y., REDVERS, N., GITHAIGA, C., CALAMBÁS, J., AÑAÑOS, K., CHINDOY, M. E., VITALE, R., ROJAS, J. N., MONDRAGÓN, D., ROSALÍO, Y. V., & SACBAJÁ, A. (2023). Ethical principles of traditional Indigenous medicine to guide western psychedelic research and practiceThe Lancet Regional Health – Americas, 18, 100410. DOI:10.1016/j.lana.2022.100410.

[7] GUERRA-DOCE, E. (2015). Psychoactive Substances in Prehistoric Times: Examining the Archaeological Evidence. Time and Mind, 8(1), 91–112. DOI:10.1080/1751696X.2014.993244.

[8] IRIZARRY, R., WINCZURA, A., DIMASSI, O., DHILLON, N., MINHAS, A.; LARICE, J. (2022). Psilocybin as a Treatment for Psychiatric Illness: A Meta-Analysis. Cureus. DOI:10.7759/cureus.31796.

[9] HARRIS, E. (2023). FDA Proposes First Guidance for Researchers Studying Psychedelics. JAMA, 330(4), 307. DOI:10.1001/jama.2023.12058.

[10] GRIFFITHS, R. R.; JOHNSON, M. W.; CARDUCCI, M. A.; UMBRICHT, A.; RICHARDS, W. A.; RICHARDS, B. D.; COSIMANO, M. P.; KLINEDINST, M. A. (2016). Psilocybin produces substantial and sustained decreases in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: A randomized double-blind trial. Journal of Psychopharmacology, 30(12), 1181–1197. DOI:10.1177/0269881116675513.

[11] Doutor em Ciências Biológicas – Microbiologia. Professor das Disciplinas Bioquímica e Biologia e Cultivo de Cogumelos (UFRPE). Consultor na Área de Fungicultura.

[12] Nota Técnica juntada nos autos 0717767-35.2023.8.07.0001 – DJDFT – 4ª Vara de Entorpecentes do Distrito Federal.

[13] “LISTA – E LISTA DE PLANTAS E FUNGOS PROSCRITOS QUE PODEM ORIGINAR SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES E/OU PSICOTRÓPICAS [não apresenta o cogumelo Psylocybe Cubensis]”.

[14] Doutora em Engenharia Química, professora e pesquisadora vinculada ao curso de Biotecnologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus São José dos Campos.

[15] Nota Técnica juntada nos autos 0717767-35.2023.8.07.0001 – DJDFT – 4ª Vara de Entorpecentes do Distrito Federal.

[16] TJMG. Sentença proferida nos autos 5067224-18.2024.8.13.0024.

[17] ANVISA. Acesso à Informação. Consulta feita sob o protocolo nº 25072.026294/2023-81. https://consultas.anvisa.gov.br/#/.

[18] WINSTOCK, A. R.; BARRATT, M. J. (2016). Global Drug Survey 2016 findings. Global Drug Survey. Disponível em: https://www.globaldrugsurvey.com/.

[19] NOGUEIRA, M.; GARCÍA-HERNÁNDEZ, S., ROBERTO, G. S.; MARQUES, L. Z. (2024). Psilocybin mushrooms and public health in Brazil: a low-risk adverse event profile calls for evidence-based regulatory discussions. [Preprint]. medRxiv. https://doi.org/10.1101/2024.07.11.24310147.

[20] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/setorregulado/regularizacao/insumos/insumos-farmaceuticos.

[21] STAMETS, Paul. Mycelium Running: How Mushrooms Can Help Save the World. Berkeley: Ten Speed Press, 2005.

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