Opinião

Valores de operações de crédito com ilícito penal não se submetem à recuperação judicial

Autor

  • Felipe do Canto Zago

    é advogado atuante no setor de Securitização de Recebíveis (FIDCs e Securitizadoras) sócio Diretor da FZ | Advogados Associados professor Universitário mestre em Direito na área de Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado e pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC-RS.

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9 de outubro de 2024, 6h01

A recuperação judicial é um instrumento jurídico essencial no sistema brasileiro, destinado a reestruturar empresas viáveis que enfrentam crises financeiras, permitindo-lhes superar dificuldades momentâneas.

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Ao preservar a atividade empresarial, a recuperação judicial também sustenta a manutenção de empregos, a circulação de bens e serviços, a geração de riqueza, o recolhimento de tributos, entre outros benefícios econômicos e sociais fundamentais para o desenvolvimento do país. Contudo, esse instrumento nem sempre é utilizado de maneira adequada.

Há numerosos casos em que empresas, ao pleitear recuperação judicial, recorrem a fraudes e ilícitos penais, como operações de crédito fraudulentas, incluindo a emissão de duplicatas simuladas (artigo 172, CP), estelionato (artigo 171, CP) e apropriação indébita (artigo 168, CP).

Essas práticas não podem ser tratadas como dívidas legítimas, mas sim como atos com ilícitos que demandam a devida restituição dos bens e/ou recursos provenientes dessas ações. Este artigo analisa o tratamento dos produtos do crime nos processos de recuperação judicial, sugerindo aprimoramentos legislativos ou uma interpretação mais ampla do Procedimento de Restituição (artigos 85-93 da Lei 11.101/2005).

Valores oriundos de operações de crédito com ilícito penal e direito de restituição no contexto da recuperação judicial

 A Lei 11.101/2005 visa preservar a empresa e os empregos, permitindo ao devedor em crise se reorganizar. No entanto, essa legislação não foi projetada para lidar diretamente com bens ou recursos financeiros obtidos de forma ilícita, como aqueles provenientes de operações de créditos fraudulentas que configuram crime. Por isso, o tratamento da restituição de bens de origem criminosa no contexto desses processos tornou-se um desafio legal diante do cenário de práticas corriqueiras e usais de sociedades empresárias que fazem o mau uso do instituto da recuperação judicial para praticar fraudes.

Há inúmeros casos de sociedade empresária ingressam com a recuperação judicial arrolando recursos provenientes de operações criminosas com a transferência de direitos creditórios inexistentes (recebíveis sem lastro) com a prática de crimes de duplicata simulada, apropriação indébita e estelionato, utilizando esses recursos para se locupletar com a proteção e blindagem da recuperação judicial que não raras vezes avalizam essas atividades ilícitas as tratando como se dívida fosse, permitindo o mau uso do instituto, desbordando a finalidade do processo de soerguimento, que tem por norte principiológico a tríade de valores composta pelos primados da proteção da atividade econômica, a relevância dos interesses dos credores, e a par conditio creditorum.

A Lei nº 11.101/2005 não apresenta uma regra clara sobre a exclusão desses bens ou recursos financeiros do processo, o que cria uma lacuna legal que precisa ser abordada. Nesse contexto, a restituição desses bens ou recursos deve ocorrer de forma incontestável, transferindo-os imediatamente ao seu legítimo proprietário, pois constituem frutos de atividades criminosas e, portanto, não pertencem à empresa em recuperação. Esses bens não integram o ativo legítimo da empresa e, assim, não podem ser geridos pelo juízo da recuperação judicial ou da falência, nem podem ser incluídos no plano de recuperação.

E o problema está em que, por ficção jurídica, o produto financeiro do ato ilícito criminal jamais integra o patrimônio da empresa em crise, de sorte que não há que se falar na sua submissão da vítima aos procedimentos próprios do processo de recuperação judicial e de falência para receber de volta o que é seu.

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Assim não fosse, chegar-se-ia à absurda constatação de que a prática crimes deixa de ser relevante juridicamente se a empresa ajuizar a ação de recuperação judicial, o que se revelaria desvirtuamento inadmissível da sua função processual. E se a empresa prospera e sobrevive economicamente pela prática de crimes, sua atividade econômica não é relevante para o direito recuperacional, porque mesmo recuperada, não terá qualquer motivo para não seguir praticando delitos.

O princípio que norteia essa questão é a impossibilidade de integração do produto do ilícito penal ao patrimônio da empresa que está em crise econômica. A lógica subjacente é que o processo de recuperação judicial visa reorganizar o patrimônio lícito da empresa e promover sua continuidade econômica e social, mas apenas com base em ativos legítimos. Os valores derivados de crimes, como operações de crédito fraudulentas, não podem ser considerados parte dos ativos da empresa em recuperação, devendo ser excluídos do plano de reestruturação financeira.

O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência consolidada sobre o tema, conforme decidido no Recurso Especial 1.736.887/SP, em que se reconheceu que valores pertencentes a terceiros, ainda que estejam sob a posse da empresa em recuperação judicial, não se submetem aos efeitos da recuperação. A decisão determina que valores cuja origem está vinculada a contratos inadimplidos, pertencentes a terceiros, não podem ser integrados ao processo de recuperação. O mesmo raciocínio se aplica ao produto de atividades ilícitas, que deve ser devolvido ao legítimo titular. Veja-se:

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. VALORES. POSSE. REPASSE. NECESSIDADE. BEM DE TERCEIRO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUBMISSÃO. EFEITOS. IMPOSSIBILIDADE. 1 (…). 3. Os valores pertencentes a terceiros que estão na posse da recuperanda por força de contrato inadimplido, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. 4. Recurso especial provido. (STJ – REsp: 1736887 SP 2018/0066411-1, relator: ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 13/4/2021, T3 – 3ª Turma, data de publicação: DJe 16/4/2021). (grifos do articulista)

Ainda, em idêntico sentido, é o que positiva a Súmula 480 do STJ, a tratar que o juízo da recuperação judicial não detém competência para dispor sobre bens estranhos ao plano de recuperação judicial: “O juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa”.

Nesse sentido, o artigo 51 da Lei 11.101/2005 também reforça essa diretriz ao exigir que as demonstrações contábeis apresentem a verdadeira situação patrimonial da empresa. Isso significa que bens e valores que não pertencem ao devedor, como os obtidos por meio de operações criminosas, devem ser excluídos da contabilidade da empresa. Portanto, não cabe ao devedor incluir tais valores no plano de recuperação judicial, já que eles não fazem parte de seu patrimônio lícito.

São fundamentos jurídicos para reconhecer o desvirtuamento da ordem legal de preferências na Lei 11.101/05 entre os credores, ao privilegiar os mais ágeis; e não considerar o “Direito de Restituição” — da parte lesada pelo ilícito penal — que decorre do seu direito de propriedade e não de direito de crédito. O Superior Tribunal de Justiça, já decidiu que não cabe ao juízo da recuperação judicial decidir sobre ativos/patrimônio pertencentes à terceiros, devendo-se, pois, haver restituição do ativo respeitando o direito de propriedade de terceiros:

“PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO POSITIVO. AÇÃO DE DEPÓSITO. CABIMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ARMAZÉM GERAL. DEPÓSITO CLÁSSICO DE BENS FUNGÍVEIS. CONTRATO TÍPICO. DIFERENCIAÇÃO DO DEPÓSITO ATÍPICO. GRÃOS DE SOJA. RESTITUIÇÃO. NÃO SUBMISSÃO AO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (…).7. Constituindo, por conseguinte, bem de terceiro cuja propriedade não se transferiu para a empresa em recuperação judicial, não se submete ao regime previsto na Lei 11.101/2005. Incidência do enunciado 480 da Súmula do STJ. 8.” (…). (STJ – CC: 147927 SP 2016/0201177-2, relator: ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, data de julgamento: 22/3/2017, S2 – 2ª SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 10/04/2017. (grifo do articulista)

Lei não difere valores decorrentes de atividades ilícitas em relação aos demais créditos sujeitos à recuperação

A Lei 11.101/2005 não faz distinção explícita entre os valores decorrentes de atividades ilícitas e os créditos legítimos, o que desvirtua a ordem de preferência entre os credores. Isso ocorre ao não considerar adequadamente o direito de restituição da parte lesada pelos ilícitos penais, que decorre de seu direito de propriedade, e não de um simples direito de crédito.

Tome-se um exemplo simples, do mesmo modo que um carro roubado deve ser devolvido ao real proprietário, após sua apreensão pela autoridade policial, o dinheiro desviado por meio de uma operação de crédito fraudulenta também deve ser restituído aos seus legítimos proprietários. Isso se aplica independentemente da situação dos demais credores em um processo de recuperação judicial. No âmbito do direito penal recuperacional, a vítima de um crime não é considerada apenas uma credora; ela é a proprietária do bem desviado. Assim, essa vítima não integra o quadro geral de credores e não deve ser preterida em favor das demais classes de credores.

Isso impede que o princípio da preservação da empresa seja utilizado para legitimar o uso do fruto de crime como fonte de manutenção de atividade econômica, pagamento de empregados e fornecedores, porquanto tal conduta desviaria a finalidade processual da demanda, atentando à própria função social da empresa.

A exclusão dos valores relacionados as operações ilícitas (penal) é primado inescapável, já que tal bem não pode ser considerado como parte dos ativos (patrimônio) da empresa em recuperação, e não podem ser usados no plano de reestruturação financeira da empresa.

Solução jurídica, sob o ponto de vista sistêmico na Lei 11.101/05, que apresentaria a melhor alternativa para preencher a ausência de regulamentação

Diante da ausência de regulamentação expressa na Lei 11.101/2005 sobre o tratamento dos valores decorrentes de ilícitos penais no âmbito da recuperação judicial, algumas soluções jurídicas podem ser adotadas, com base em interpretações sistêmicas do ordenamento jurídico na própria Lei 11.101/05. A restituição desses valores poderia ocorrer pelos procedimentos previstos na própria Lei de Recuperação Judicial e Falência, como:

  • Divergência (artigo 7º, §1º): caso os valores sejam incluídos erroneamente no quadro de credores, pode-se suscitar uma divergência, alegando que esses bens não pertencem à recuperação, pois oriundos de operações fraudulentas.
  • Impugnação (artigo 8º): credores ou terceiros interessados podem impugnar a relação de credores, argumentando que os valores provenientes de ilícitos penais não podem ser utilizados para a quitação de débitos ou para a reestruturação da empresa.
  • Pedido de restituição (artigos 85 a 93): a lei prevê um procedimento específico para a restituição de bens que, embora estejam em poder da empresa, pertencem a terceiros, aplicável também ao caso de recursos financeiros locupletados pela recuperanda por serem fruto de atividades ilícitas.

O problema do pedido de restituição reside no fato de que a Lei nº 11.101/2005 prevê essa possibilidade apenas no âmbito do processo de falência. Esses pedidos de restituição permitem que a parte lesada recupere o produto do ilícito antes que os demais credores sejam pagos. Para o processo de Recuperação Judicial, esse procedimento seria essencial para garantir que o patrimônio obtido de forma ilegal não seja distribuído entre os credores, mas sim revertido para a vítima/proprietário, que é o verdadeiro titular desses bens ou recursos.

A temática aborda crimes em operações financeiras. Nesse sentido, a Súmula 417 do Supremo Tribunal Federal reforça ao dispor que: “pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade” (grifos do articulista).

Uma interpretação ampliativa do pedido de restituição para a recuperação judicial preencheria momentaneamente a lacuna da lei. O pedido de restituição cabe em situações em que os valores de origem ilícita estão temporariamente sob a posse da empresa em recuperação ou falência, mas sobre os quais ela não tem direito de propriedade.

Considerações finais

Em conclusão, o tratamento de operações com ilícito penal nos processos de recuperação judicial e falência requer uma análise cuidadosa das interações entre o direito penal econômico e o direito falimentar.

A restituição de recursos oriundos de operações fraudulentas, ao transferir sua titularidade ao proprietário, exclui esses valores do alcance dos processos judiciais de gerenciamento de crise empresarial. Isso reforça o papel do Estado na prevenção e repressão de crimes econômicos, ao garantir que o produto de tais práticas seja revertido em favor da parte lesada pelo ilícito penal, e não usado para beneficiar empresas que atuaram fora dos limites da lei, servindo como um importante instrumento de política criminal.

O sistema jurídico brasileiro precisa, portanto, estar atento às implicações do uso indevido de ativos ilícitos em processos de recuperação judicial, e a aplicação das soluções propostas pela lei deve ser realizada com rigor para garantir a legalidade e a justiça no tratamento dos credores e das partes lesadas.

A restituição do produto do ilícito é uma medida essencial para preservar a integridade do sistema jurídico e econômico, evitando que práticas corruptivas se perpetuem por meio de brechas nos processos de recuperação judicial e falência.

Autores

  • é sócio diretor da FZ Advogados Associados, professor universitário, advogado atuante no setor de Securitização de Recebíveis (FIDCs e securitizadoras) e consultor jurídico da Abrafesc (Associação Brasileira de Factoring, Securitização e Empresas Simples de Crédito).

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