Opinião

Lei 14.905/24 e os novos encargos legais para a atualização de dívidas

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9 de outubro de 2024, 16h16

As empresas varejistas que atuam na cadeia de distribuição de bens e serviços operam em um ambiente de intensa competitividade e constante interação com os consumidores. A relação direta com o cliente faz com que o setor esteja exposto a questões jurídicas que envolvem inadimplência, qualidade de produtos, danos extracontratuais, disputas contratuais e renegociação de dívidas.

Nesse contexto, as recentes mudanças legislativas que estabelecem a aplicação da taxa Selic e do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para correção monetária e juros em dívidas civis, sobretudo as oriundas de responsabilização extracontratual, impactam a forma de negócio e sua estrutura financeira.

Para um setor no qual a dinâmica de fluxo de caixa e o controle de crédito ao consumidor são essenciais, o entendimento dessas novas regras de atualização monetária nas dívidas civis é crucial para a manutenção de uma operação eficiente, com prevenção de litígios prolongados. Isso requer a adoção de práticas que mitiguem os riscos e assegurem o cumprimento das normas legais vigentes.

Diversidade de índices e o entendimento do STJ

Os tribunais brasileiros utilizam diferentes índices de correção monetária nas dívidas civis, o que pode ocasionar insegurança jurídica devido à falta de previsão geral a esse respeito. O Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais de Santa Catarina, Bahia e São Paulo, por exemplo, adotam majoritariamente o INPC/IBGE como índice de correção. A corte do Paraná, por sua vez, utiliza uma média entre os índices INPC/IBGE e IGP-DI para atualização. O Tribunal do Rio Grande do Sul, em 2023, substituiu a aplicação do IGP-M para o IPCA em processos que envolvem débitos judiciais. Essa diversidade de critérios complica a previsibilidade nas relações jurídicas, principalmente de empresas com atuação nacional, além de dificultar a uniformização das decisões.

Frente a isso, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.795.982/SP trouxe estabilidade ao consolidar a aplicação do IPCA e da taxa Selic como índices de correção para as dívidas civis. A aplicação da taxa Selic assegura a correção monetária e os juros de mora com maior previsibilidade e uniformidade nos casos em que não são pactuados índices específicos ou reportados aos consectários legais.

Com a Selic estabelecida como taxa padrão para os juros de mora e o IPCA para a correção monetária, os credores têm clareza sobre os índices que serão aplicados no cálculo, caso não haja previsão específica. Isso permite que as empresas ajustem suas estratégias de acordos, cobrança e financiamento, favorecendo um planejamento mais eficiente e uma gestão de risco mais robusta.

Pacta sunt servanda

A nova regulamentação se aplica principalmente aos contratos nos quais não há definição prévia de índices entre as partes ou os remete aos encargos legais. A legislação deixa claro que as partes continuam livres para pactuar correção monetária e juros de mora com base em outros índices, reforçando o princípio do pacta sunt servanda, desde que dentro dos limites da legislação. Para o varejo, é crucial que essas cláusulas sejam revisadas e incluam a definição de índices de correção para que as empresas possam se proteger de variações desfavoráveis e garantir a adequação financeira das suas operações.

Calculadora financeira do BC

A Selic, como uma taxa que conjuga correção monetária e juros, reflete o entendimento de que ambos os encargos devem ser tratados de forma unificada, conforme interpretação dada ao artigo 406 do Código Civil. Essa unificação representa uma maneira de preservar o poder de compra original e de compensar a perda inflacionária, ao mesmo tempo que mantém o caráter punitivo dos juros moratórios. O cenário resultante dessa decisão pode favorecer tanto as empresas, que podem prever melhor seus custos com a inadimplência, quanto o mercado, que se beneficia de um sistema mais padronizado.

Spacca

No entanto, no caso do varejo e de empresas de atuação direta com os consumidores, essa mudança pode significar que, sem uma pactuação clara dos índices de correção nos contratos de venda parcelada, a atualização monetária pode não ser devidamente ajustada ao longo do tempo, resultando em uma remuneração abaixo do esperado.

A Lei 14.905/24, que recentemente alterou o Código Civil, prevê a aplicação da taxa Selic pelo acumulado mensal deduzido do IPCA para os casos em que não há previsão expressa e pactuada acerca da taxa de juros de mora. A fim de melhor elucidar a nova forma de cálculo, o Banco Central disponibilizou uma calculadora financeira conforme a nova regra [1].

A medida visa padronizar a liquidação e a execução de débitos civis, o que pode reduzir tanto o tempo quanto os custos processuais, além de diminuir o risco de discussões sobre métodos de cálculo.

Apesar de padronizado, o cálculo é complexo. A fórmula definida pela Resolução CMN 5.171/2024 [2] não goza da simplicidade da legislação anterior (que previa os famosos juros de mora de 1% ao mês), pois a Selic incorpora tanto juros quanto correção monetária, aplicados de forma composta. Isso significa que o cálculo deve ser feito mensalmente, acumulando os valores diários da taxa. Além disso, deve-se deduzir a correção monetária aplicada (como o IPCA) para evitar duplicidade de atualização da moeda. Essa composição de encargos exige cálculos contínuos e precisos, tornando o processo difícil para quem não possui familiaridade com a metodologia, ou requer o uso de ferramentas específicas como a disponibilizada pelo Banco Central.

Teto para os juros

Em que pesem os pontos positivos trazidos pela nova legislação, os baixos reajustes dos índices podem incentivar empresas a pactuar seus próprios encargos em contratos. No caso do varejo, as empresas que não ajustarem seus contratos de venda parcelada podem ver uma redução significativa no valor total corrigido a receber, impactando diretamente sua rentabilidade. Essas negociações devem respeitar os limites estabelecidos pela legislação, que, em alguns casos, impõe um teto de 12% ao ano para os juros, conforme previsto na Lei de Usura.

No entanto, a Lei 14.905/24 trouxe flexibilizações relevantes, permitindo que a Lei de Usura não se aplique a determinadas obrigações, como aquelas contratadas entre pessoas jurídicas, títulos de crédito e valores mobiliários, além de transações no mercado financeiro e de capitais, garantindo maior liberdade contratual.

 


[1] https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method=exibirFormCorrecaoValores&aba=6. Acesso em 12/09/2024 às 15:30.

[2] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=5171. Acesso em 12/09/2024 às 16:15

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