Opinião

Estatais podem receber bens e serviços como dação em pagamento?

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9 de outubro de 2024, 19h16

Ao tutelar a dação em pagamento, o Código Civil estabeleceu em seu artigo 356 que o “credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”. O artigo consagra a ideia de que o titular do crédito pode consentir em extingui-lo de modo distinto do que foi originalmente previsto.

Na lição da doutrina [i], a dação em pagamento “também chamada datio in solutum pelos romanos, é o acordo liberatório feito entre o credor e o devedor, em virtude do qual consente ele em receber coisa que não seja dinheiro, em substituição à prestação que lhe era devida — aliud pro alio. A dação pode ter por objeto qualquer tipo de prestação, positiva (dar e fazer) e negativa (não fazer), bens móveis e imóveis, direitos reais ou pessoais, cessão de crédito etc.”.

Assim, a grosso modo, o credor pode receber do devedor bens ou serviços para extinguir uma obrigação prevista para ser quitada em dinheiro.

Poder público e a aquisição de bens via dação em pagamento

Mas e quando a administração pública é a credora? Ela pode receber prestação diversa da que lhe é devida via dação em pagamento? Aqui entra em cena o princípio da legalidade, não podendo haver decisão neste sentido sem lei que a admita.

Nesta linha, na esfera tributária, o artigo 156, XI, do CTN possibilita a extinção do crédito tributário por meio da dação em pagamento de bens imóveis.

Comentando tal dispositivo do Código Tributário Nacional, Hugo de Brito Machado Segundo [2] leciona que “o tributo é prestação pecuniária. Por isso, a dação em pagamento de que cuida o art. 156, XI, do CTN, depende da edição de lei, por cada ente tributante (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), estipulando a forma e as condições nas quais poderá ocorrer. À míngua dessa lei específica, não há amparo legal para a dação em pagamento. E, ainda assim, somente pode dizer respeito a bens imóveis, os quais devem necessariamente ser avaliados para que se afira a sua suficiência para quitar uma obrigação que é quantificada também em dinheiro”.

No âmbito da administração pública federal, a lei específica mencionada por Hugo de Brito Machado Segundo é a de nº 13.259/2016 que, por exemplo, permite que “o crédito tributário inscrito em dívida ativa da União poderá ser extinto, nos termos do inciso XI do caput do art. 156 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, mediante dação em pagamento de bens imóveis, a critério do credor” (artigo 4º).

O já revogado marco legal das contratações públicas indicava em seu artigo 19 a possibilidade de que bens imóveis tivessem sido adquiridos pela administração pública por meio de dação em pagamento, conforme se pode ler na transcrição abaixo:

Art. 19. Os bens imóveis da Administração Pública, cuja aquisição haja derivado de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento, poderão ser alienados por ato da autoridade competente, observadas as seguintes regras:

I – avaliação dos bens alienáveis;

II – comprovação da necessidade ou utilidade da alienação;

III – adoção do procedimento licitatório.

III – adoção do procedimento licitatório, sob a modalidade de concorrência ou leilão.

Entretanto, a Lei nº 8.666/1993 só tutelava a forma de alienar bens imóveis adquiridos pela administração pública por meio de dação em pagamento, não tendo normatizado como tal dação em pagamento seria operacionalizada pelo poder público. Regulou-se o modo de alienação do bem recebido, mas não o procedimento para operacionalizar a dação em pagamento.

Por seu turno, a Nova Lei Geral de Licitações e Contratos replicou o modelo anterior:

Art. 76. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:

(…)

§1º. A alienação de bens imóveis da Administração Pública cuja aquisição tenha sido derivada de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento dispensará autorização legislativa e exigirá apenas avaliação prévia e licitação na modalidade leilão.

Ou seja, a Lei nº 14.133/2021 também dá a entender que a administração pública pode adquirir bens via dação em pagamento (ou seja ter suas obrigações extintas pela entrega de bens imóveis), só que sem nada dizer sobre como tal forma de extinção da obrigação se dá.

Spacca

Bem, em última análise, não custa lembrar que a dação em pagamento está prevista no artigo 356 do Código Civil e que o artigo 54 da Lei nº 8.666/1993 estabelecia que “os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado” e que o artigo 89 da Lei nº 14.133/2021 preconiza que “os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”, de modo que, ao menos em tese, pelo menos no caso dos bens imóveis, há sim margem para se interpretar que a administração pública pode aceitar dações em pagamento.

Em sentido contrário ao afirmado acima, lembremos que a aplicabilidade do artigo 156, XI, do CTN depende de lei específica.

E quanto às sociedades de economia mista e as empresas públicas? Seria possível que elas recebessem bens e serviços dos seus devedores por meio de dação em pagamento?

Veja, de imediato, diga-se que o Estatuto das Estatais silencia totalmente sobre o tema, sequer fazendo menção símile às contidas na Lei nº 8.666/1993 e na Lei nº 14.133/2021.

Por outro lado, a Lei nº 13.303/2016 estabeleceu em seu artigo 68 que “os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de direito privado”.

Comentando tal dispositivo, a doutrina [3][4] assevera que “a redação sintética deste artigo oculta sua profundidade. Ele é a pedra de toque da nova concepção de contratos para as estatais, ao indicar que estas empresas se valem, nas suas relações, de contratos regidos pelo Direito Privado. Afasta-se de uma vez por todas a concepção de que os contratos celebrados pelas estatais seriam contratos administrativos (encampada pela Lei nº 8.666/1993), que se caracterizariam pela incidência das chamadas cláusulas exorbitantes. Prestigia-se, assim, a Constituição, que categoricamente indicava que as relações contratuais das estatais se estruturam a partir do regime contratual ordinário, pois elas são criaturas que pertencem, operacionalmente, ao âmbito do Direito Privado. Em alguma medida, o regime anterior à Lei nº 13.303/2016 era manifestamente inconstitucional ao exigir que as estatais contratassem em regime diverso do contemplado na Constituição. Segundo se lê no art. 173, §1o, II, não há qualquer margem para sustentar a aplicação integral do regime público às contratações das estatais. Malgrado a clareza invulgar do mandamento constitucional, celebrizou-se a ideia de que os contratos destas empresas deveriam ser tratados como se públicos fossem. Contudo, como os fatos se impõem à norma, e as estatais muitas vezes se veem premidas com dilemas tipicamente empresariais, não foram raras as situações em que se criou soluções ad hoc ampliando o espaço de autonomia contratual das estatais (a clivagem entre atividade meio atividade fim, por exemplo, responde precisamente a essa exigência).De acordo com a dicção da Lei, os contratos celebrados pelas estatais, independentemente do seu objeto, são regidos pelo Direito Privado, o que coloca o instrumento contratual no centro da relação obrigacional estipulada entre as partes. Afasta-se, assim, a concepção de que os contratos celebrados pela Administração seriam dotados de um conteúdo estatutário, capaz de incidir em favor da Administração para além, e mesmo em sentido contrário, do que fora disciplinado pelas partes no instrumento contratual. Agora, a fonte primeira dos direitos, deveres e obrigações assumidos de parte a parte é o contrato. Embora sua constituição ainda deva obedecer a um procedimento público de escolha (seja a licitação, seja a justificativa de inexigibilidade), fato é que o vínculo constituído será de Direito Privado. Perceba-se que se está muito além do anêmico “contrato da Administração” previsto na Lei nº 8.666/1993 (art. 62, §1o, I), que jamais foi capaz de criar uma alternativa de Direito Privado em favor das contratações da Administração (o que é natural em sistemas de inspiração francesa, em que há uma zona de contratos privados). A Lei nº 13.303/2016 não cuida de um contrato administrativo envergonhado, mas sim de um efetivo contrato privado, organizado estruturalmente de modo alheio ao ideário das cláusulas exorbitantes. Em síntese, o que se coloca agora é a alteração radical do sistema de regência normativa. De acordo com a concepção do art. 54, da Lei nº 8.666/1993, vigente, a disciplina dos contratos celebrados pela Administração obedeceria aos primados de Direito Público (a condicionar e definir as cláusulas do contrato) e, apenas supletivamente (isto é, na ausência de solução de Direito Público), seriam aplicáveis os preceitos da Teoria Geral dos Contratos e o Direito Privado. Ante à notável capacidade de expansão dada às questões de Direito Público, fato é que o Direito Privado, em termos práticos, estava proscrito das relações contratuais administrativas. Este paradigma foi lançado por terra pela nova Lei. Agora, os contratos são regidos exclusivamente por suas cláusulas, pelas disposições expressamente contempladas na Lei e pelo Direito Privado. Não há, salvo aquilo que foi mediado de modo expresso pelo legislador, nenhum espaço para sustentar a aplicação do regime público aos contratos celebrados pelas estatais. Inverte-se a lógica normativa acerca do contrato. Antes, os contratos celebrados pelas estatais eram sujeitos à lógica estatal, sendo que esta se impunha à revelia do instrumento do contrato. Agora, só se admite o apelo a preceitos públicos que tenham sido expressamente contemplados na Lei nº 13.303/2016. Assim, não há qualquer reserva implícita para a utilização de normas de Direito Público, especialmente se invocadas pela contratante para se valer de prerrogativas alheias ao instrumento que celebrou.”

Saindo da doutrina, no âmbito do sistema tribunal de contas, apesar da aridez do tema, registre-se o Prejulgado 0070 proferido pelo TCE-SC nos autos do Processo 146782194, em que deixou-se consignado que a “aquisição de imóvel por Sociedade de Economia Mista poderá processar-se mediante os institutos jurídicos da compra, permuta, doação, dação em pagamento, ou compulsoriamente por desapropriação ou, ainda, por força de lei”.

Nessa mesma linha, cabe também o registro de parecer expedido pela Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais nos autos do Processo nº 1080.01.0022057/2018-81[v] no sentido de “a dação em pagamento rem mobili pro pecunia , negócio translativo oneroso o qual adimple obrigação previamente assumida, é instituto passível de ser utilizado pela Administração Pública para amortização ou quitação de dívida com entidade da Administração Indireta no caso de bens móveis sem utilização previsível por quem deles dispõe. Necessária prévia avaliação técnica e de mercado, a fim de se verificar a compatibilidade do preço do bem com o montante a ser amortizado/quitado”.

No aludido parecer, é mencionado ainda que “nas Notas Jurídicas AGE/CJ nº 1.839/2008, nº 1.840/2008 e nº 1.977/2009, e no Parecer AGE/CJ nº 15.180/2012, trataram-se de situações em que particulares ofertavam à Administração Pública bens móveis dados em pagamento alternativamente ao valor pecuniário cobrado em virtude de descumprimento contratual. Nestes casos, entendeu-se pela viabilidade alternativa propositória de adimplemento obrigacional, estabelecendo-se em linhas gerais como balizas: (I) o princípio da eficiência administrativa; (II) o princípio da razoabilidade; (III) a avaliação pela Administração Pública dos aspectos técnicos e de preço regular de mercado dos bens ofertados; e (IV) a declaração de conveniência e oportunidade por parte do órgão que receberá os bens” e que no “Parecer AGE/CJ nº 15.966/2018 apresentou caso de dação de bem imóvel em pagamento de dívida oriunda de convênio administrativo, apurada em Tomada de Contas Especial. Opinou-se pela sua viabilidade, fazendo-se necessário verificar: (I) a viabilidade econômico-financeira, conveniência e oportunidade; (II) a edição de lei autorizadora, em respeito ao teor do artigo 18 da Constituição Estadual de Minas Gerais (CEMG/89); (III) e a análise quanto à lei de licitações, em atenção especial aos requisitos dispostos no artigo 4º da Lei Estadual nº 14.699/2003”.

Pois bem, entendimentos do TCE-SC e da AGE-MG à parte, ante ao alcance conferido pela doutrina ao artigo 68 da Lei nº 13.303/2016, não nos parece fazer sentido que, por exemplo, empresas privadas que concorram no mercado com as empresas estatais que exploram atividade econômica possam receber bens e serviços por meio dação e pagamento e as empresas públicas e sociedades de economia mista não possam. Como sempre, o ponto de partida é entender que estatais são empresas, ainda que integrem a Administração Pública, e que elas se relacionam com os demais agentes econômicos por vias de direito privado.

Veja, extrai-se do artigo 173, § 1º, II da CF/88 que as estatais que exploram atividade econômica estão sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais; trabalhistas e tributários e, assim o sendo, não faz sentido que as empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica não possam se valer do artigo 356 do Código Civil para aceitar que seus devedores lhe entreguem bens (móveis ou imóveis) ou lhe prestem serviços com o objetivo de extinguir obrigações via dação em pagamento.

Portanto, respondendo à pergunta formulada no título, podemos afirmar que ao menos as estatais que exploram atividade econômica podem sim receber bens (sejam móveis ou imóveis) e serviços como dação em pagamento.


[1] Assunção, Alexandre Guedes A.; Maluf, Carlos Alberto Dabus; Figueira Jr., Joel Dias; Alves, Jones Figueirêdo; Diniz, Maria Helena; Delgado, Mário Luiz, De Lucca, Newton; Fiuza, Ricardo e Zeno Veloso, Código Civil comentado, Regina Beatriz Tavares da Silva (coordenadora), 8ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 432.

[2] Segundo, Hugo de Brito Machado, Código Tributário Nacional: anotações à Constituição, ao Código Tributário Nacional e às Leis Complementares 87/1996 e 116/2003, 6ª. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Atlas, 2017, pág. 369.

[3] Guimarães, Bernardo Strobel (et al.), Comentários à lei das estatais (lei nº 13.303/2016), Belo Horizonte: Fórum, 2019, págs. 375/376)

[4] No mesmo sentido: “Pela regra do artigo 68, os contratos das estatais não se subordinam ao regime jurídico de direito público, passando a sofrer o influxo do direito privado, com as prescrições da Lei nº 13.303/16 e das respectivas cláusulas contratuais. Com o afastamento do regime jurídico de direito público e a incidência de regras de direito privado, a consequência imediata disto é a inaplicabilidade nas relações contratuais das estatais das denominadas cláusulas exorbitantes.” (Guimarães, Edgar e Santos, José Anacleto Abduch, Lei das estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei nº 13.303/2016, Belo Horizonte: Fórum, 2017, pág. 241) e ainda: “A Lei nº 13.303/16 trata do tema nitidamente de modo diverso: o regime de direito privado não é aplicado de modo supletivo, mas de modo direto, ao lado das disposições da legislação mencionada – a qual, diga-se de passagem, sequer prevê um rol de cláusulas exorbitantes. Assim, o regime dos contratos do direito civil aplica-se como fonte primária do direito, e não de modo supletivo, na hipótese em que a Lei das Estatais não desse conta de disciplinar o tema. Logo, a natureza dos contratos feitos e regidos pela Lei nº 13.303/16 seria típico “contrato da administração”.134Para sermos ainda mais objetivos, o art. 68 determina que somente possam ser inseridas nos contratos feitos pelas empresas estatais as cláusulas que derivam expressamente da Lei nº 13.303/16 e, claro, do direito privado. De modo que tal legislação não permite a importação de norma administrativa que não aquelas já constantes (recepcionadas) na própria Lei nº 13.303/16. Assim, se por um acaso se quisesse mirar uma dita “cláusula exorbitante” nos negócios jurídicos feitos pelas empresas estatais, teríamos de procurá-las no âmbito do seu estatuto, ora comentado.Portanto, o art. 68 impõe um traço diferencial marcante entre os contratos feitos pela Lei nº 13.303/16 e pela Lei nº 8.666/93.135 A origem dessa disparidade reside na possibilidade de as sociedades de economia mista e de as empresas públicas deterem capacidade gerencial menos rígida e burocrática, como ocorre com as autarquias e as fundações, para que aquelas entidades possam seguir a lógica do mercado, a enaltecer sua competitividade. Logo, é apropriado dizer que as empresas estatais receberam a possibilidade de contratações de forma mais flexível e ágil, adequadas às dinâmicas do mercado no qual estão inseridas, desde que observados os princípios da administração pública.136Esse panorama abordado é acentuado, por exemplo, pelo regime especial de desinvestimento de ativos pelas sociedades de economia mista federais (Decreto Federal nº 9.188/2017). Veja que o regime em questão permite a feitura de uma série de instrumentos jurídicos negociais de cada alienação, os quais serão regidos pelos preceitos de direito privado – art. 4º, parágrafo único.” (Heinen, Juliano, Comentários à Lei das Empresas Estatais: Lei nº 13.303/16, Jessé Torres Pereira Junior  [et al.], 2ª. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2020, pág. 629)

[5] Disponível em https://advocaciageral.mg.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/parecer-16.058.pdf acesso em 12/09/2024.

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