Infra e Controle

É hora de um regime legal de parcerias com o Estado?

Autores

  • Giuseppe Giamundo Neto

    é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) advogado e sócio do Giamundo Neto Advogados professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) em Brasília e secretário-adjunto da Comissão Nacional de Direito da Infraestrutura da OAB.

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  • Fernanda Leoni

    é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC) especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

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9 de outubro de 2024, 8h00

Nos últimos anos, o Estado brasileiro tem indicado a busca por maior eficiência na gestão pública por meio da cooperação com a iniciativa privada. Modelos como concessões, permissões, parcerias público-privadas (PPPs) e outras formas de ajuste têm sido amplamente adotados para delegar a execução de serviços e obras públicas a particulares, geralmente em um contexto intencional de modernização e redução de custos, nem sempre alcançado. Entidades sem fins lucrativos, como organizações do terceiro setor, também são, em alguma medida, recorrentes “parceiras” do Estado, a partir do desenvolvimento de projetos sociais diversos.

Contudo, a ausência de um regime legal dedicado e sistematizado para as parcerias lato sensu levanta questionamentos sobre a segurança jurídica, a transparência e a efetividade dessas relações. É o caso, por exemplo, dos acordos de cooperação técnica e dos convênios, o primeiro não regulado — senão pelas disposições gerais da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos [1] —, e o segundo compreendido por normas genéricas de controle e repasse de recursos, sem uma disciplina mais geral em termos de obrigações e contrapartidas [2].

A colaboração entre o setor público e o privado não é novidade. Desde a criação das primeiras autarquias e concessões na década de 1930, o Brasil sinalizava a necessidade de delegar determinadas atividades aos particulares, especialmente aquelas de caráter industrial e comercial. O movimento de descentralização administrativa e a expansão das autarquias foi reforçado pela reforma administrativa de 1967, consolidando a distinção entre administração direta e indireta e criando um ambiente propício para a celebração de contratos com particulares [3].

Entretanto, foi na década de 1990, com o processo de privatizações e a criação de novos instrumentos de parceria, que se visualiza um maior impulso para o desenvolvimento de um modelo gerencial de administração pública, orientado pela busca da eficiência e inspirado em princípios como a subsidiariedade, no que o papel da iniciativa privada passa a ser visto como essencial [4]. A partir desse momento, o Estado brasileiro faz um movimento de se concentrar em atividades estabelecidas como “essenciais”, delegando à iniciativa privada a execução de outras funções, como a prestação de serviços públicos, a gestão de bens públicos e o fomento à iniciativa privada de interesse público.

Mosaico de leis e os pilares de uma sistematização

Embora o Brasil tenha experimentado uma crescente institucionalização das parcerias, é notória a ausência de um regime jurídico que sistematize as diferentes formas de ajustes realizados entre o Estado e os particulares em suas muitas discrepâncias. Hoje, as parcerias são regidas por um mosaico de leis específicas, como a Lei das Concessões (Lei Federal nº 8.987/1995), a Lei das PPPs (Lei Federal nº 11.079/2004), a Lei das Organizações Sociais (Lei Federal nº 9.637/1998), o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei Federal nº 13.019/2014), entre outras. Apesar de importantes, esses diplomas legais não contemplam de maneira abrangente a complexidade e a variedade das relações entre o setor público e o privado — o que é uma constante no Direito.

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Sem nenhuma pretensão de esgotamento do tema, mas, pelo contrário, com a ideia de lançar algumas considerações gerais sobre a temática, três pilares nos parecem relevantes para se pensar em um início de sistematização: (1) uma classificação geral sobre os diversos conceitos que podem ser inseridos na definição de “parceria”; (2) o delineamento de princípios aplicáveis; e, (3) a criação de obrigações e contrapartidas pensadas para cada um dos diferentes modelos de parceria.

Um microssistema sustentado em categorias previamente estabelecidas pela doutrina [5], mas com uma abordagem mais abrangente e detalhada, poderia facilitar não somente a compreensão dos institutos, mas trazer respostas personalizadas. As parcerias de delegação de serviços públicos, por exemplo, poderiam ser subdivididas de acordo com a natureza do serviço prestado e a forma de remuneração do parceiro privado. Já as parcerias de fomento à iniciativa privada poderiam seguir critérios mais rígidos para a concessão de benefícios fiscais e repasses de recursos, de modo a evitar abusos e fraudes.

Outro aspecto de relevo se direciona ao mapeamento de princípios fundamentais aplicáveis ao sistema. O princípio da subsidiariedade, por exemplo, que orienta a atuação estatal apenas em atividades nas quais a iniciativa privada não tenha condições de atuar com eficiência, é um pilar relevante. Também a eficiência, incorporado à Constituição de 1988 pela Emenda Constitucional nº 19/1998, é importante guia à gestão pública. Ainda, o princípio da transparência se revela indispensável para a condução dessas parcerias, notadamente quanto à clareza nos critérios de seleção dos parceiros privados e nas regras de execução e fiscalização dos contratos.

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Mais um pilar de destaque reside na elaboração de cláusulas e condições regulando obrigações e contrapartidas de parte a parte. Se por um lado, as normas sobre PPPs e concessões trazem regras mais estruturadas sobre esses modelos de parceria, inclusive sendo responsáveis pela modernização de condições contratuais, com institutos novos como a matriz de riscos e responsabilidades; as parcerias firmadas com entidades do terceiro setor ainda sofrem de uma má compreensão sintomática das visões igualmente errôneas sobre organizações não governamentais.

Diante da pluralidade de modalidades de parceria entre o Estado e os particulares e da falta de uma legislação unificada, o país se beneficiaria imensamente de um microssistema jurídico específico para regular essas relações, o que apesar de, em grande parte, depender do Legislativo, pode se valer de uma leitura sistemática por parte dos operadores do Direito — obviamente nos limites admitidos pela legalidade. Se um sistema legalmente consolidado poderia eliminar sobreposições e incoerências entre os diferentes diplomas legais, além de estabelecer diretrizes claras para a celebração, execução e extinção de todas as modalidades de parcerias; a interpretação cotidiana das normas de forma realística e contextualizada é poderoso instrumento de adaptação do sistema às novas dinâmicas nele imbricadas.

Nesse contexto, também os mecanismos de controle e fiscalização têm o seu destaque, com a participação ativa dos Tribunais de Contas e do Ministério Público como agentes de direcionamento e não de repressão ou desestímulo. A prestação de contas e a avaliação dos resultados dessas parcerias, certamente de natureza obrigatória, além de garantir que os recursos públicos sejam utilizados de maneira eficiente e que os serviços prestados atendam às necessidades da população, devem servir de instrumento educativo e de aprimoramento da gestão.

Portanto, a experiência brasileira com parcerias entre o Estado e os particulares demonstra que, embora essas relações sejam emblemáticas para a modernização da administração pública e a melhoria da prestação de serviços à população, elas ainda carecem de um regime jurídico claro e consolidado. A criação de um microssistema jurídico específico para regular essas parcerias é necessária e bem-vinda, diante dos desafios impostos pela crescente complexidade das relações entre o setor público e o privado e a insuficiência das normas gerais de contratações para dar conta dessas complexidades.

 


[1] Cf. artigo 184 da Lei Federal nº 14.133/2021: “Art. 184. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber e na ausência de norma específica, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração Pública, na forma estabelecida em regulamento do Poder Executivo federal”.

[2] Apesar do inegável avanço na redação do Decreto Federal nº 11.531/2023, que revoga o Decreto nº 6.170/2007, trata-se de norma ainda bastante recente, cujo balanço de sua aplicação deve ser mais bem analisado nos próximos anos.

[3] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. Revista Interesse Público. Belo Horizonte, nº 42, ano 9. Mar-Abr. 2007.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[5] Um primeiro passo no sentido da sistematização se dá em termos de classificação. Dinorá Adelaide Musetti Grotti, em sua análise sobre as parcerias da Administração Pública, sugere uma taxonomia que pode servir como base. Ela divide as parcerias em quatro grandes grupos: (i) parcerias como forma de delegação de serviços públicos; (ii) parcerias como mecanismo de fomento à iniciativa privada de interesse público; (iii) parcerias como instrumento de desburocratização da administração pública; e (iv) terceirização (GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Parcerias na administração pública. Revista Brasileira de Direito Administrativo e Regulatório. Nº 05. São Paulo: MP Editora. 2012).

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do escritório Giamundo Neto Advogados.

  • é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC), especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura, bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

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