Opinião

Regularização fundiária urbana: da legitimação, da posse e do marco temporal de 2016

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  • Tiago Martins

    é advogado cofundador do escritório Martins Zanchet Advocacia Ambiental mestre em Direito e Desenvolvimento Sustentável: Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário do Pará - Belém professor universitário de Graduação e em Pós-Graduação professor de Direito Ambiental e sócio-fundador da Escola de Direito Ambiental.

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8 de outubro de 2024, 21h42

A regularização fundiária urbana no Brasil é um tema de extrema relevância no contexto social, jurídico e econômico. Com o crescimento desordenado das cidades e a proliferação de núcleos urbanos informais, o governo federal sentiu a necessidade de implementar uma legislação que facilitasse a regularização dessas áreas.

Tânia Rêgo/Agência Brasil

A Lei nº 13.465/2017 veio com o objetivo de prover uma solução jurídica para a ocupação irregular de terrenos, sejam eles públicos ou privados, oferecendo segurança jurídica aos ocupantes e garantindo a inclusão social.

Dois instrumentos fundamentais para a concretização da regularização fundiária previstos na Lei 13.465/2017 são a legitimação fundiária e a legitimação de posse, que visam a conferir, respectivamente, o direito de propriedade e o reconhecimento formal da posse a indivíduos ou famílias que ocupam áreas irregulares.

Esses instrumentos, no entanto, possuem critérios de aplicação distintos, com a legitimação fundiária sujeita a um marco temporal específico — a data de 22 de dezembro de 2016.

A seguir, será abordada a diferença entre esses mecanismos, suas aplicações e a interferência do marco temporal, com base nas disposições legais e interpretações doutrinárias.

Legitimação fundiária

A legitimação fundiária, prevista no artigo 23 da Lei 13.465/2017, é um mecanismo que permite a aquisição originária da propriedade de imóveis situados em áreas públicas ou privadas, desde que esses imóveis integrem núcleos urbanos informais consolidados. O caput do artigo 23 define que a legitimação fundiária poderá ser concedida tanto para terrenos de propriedade particular quanto para terrenos de domínio público, conferindo aos ocupantes o direito de propriedade sobre o imóvel.

Art. 23. A legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016.

Essa forma de aquisição de propriedade é considerada originária porque o título não deriva de um ato de transmissão entre particulares, mas é outorgado diretamente pelo poder público, seja em áreas públicas ou privadas. Contudo, o artigo deixa claro que a legitimação fundiária só pode ser aplicada a núcleos urbanos que existiam até 22 de dezembro de 2016, data estabelecida pela Medida Provisória nº 759/2016, posteriormente convertida em lei.

Nogueira (2023, p. 19) explica que:

A limitação temporal trazida pela Lei 13.465/2017 se restringiu à aplicação de apenas um instrumento de regularização, denominado ‘legitimação fundiária’, conforme será explanado mais à frente. Fora isso, o legislador não determinou marco temporal para a promoção da Reurb, tendo em vista o objetivo de regularizar as mais distintas realidades brasileiras. (NOGUEIRA, Taniara Ferreira. REURB na prática. São Paulo. Editora Dialética, 2023)

Assim, a judicialização não se limita à correção de práticas inadequadas, mas também desempenha um papel fundamental no estímulo à responsabilidade e à conformidade com as normas ambientais. Ao servir como um mecanismo de controle, a atuação judicial contribui para a conscientização e para a prevenção de novos danos, promovendo um ambiente mais seguro e sustentável para as gerações presentes e futuras.

No caso de terrenos de domínio público, a legitimação fundiária só é permitida para REURB-S, destinada à população de baixa renda, conforme o § 4º do artigo 23. Ou seja, a legitimação fundiária pode ser aplicada em áreas públicas apenas quando o núcleo urbano informal estiver classificado como de interesse social. Se o núcleo estiver classificado como REURB-E (interesse específico), o mecanismo adequado será a venda direta aos ocupantes, conforme o artigo 98 da Lei 13.465/2017.

Art. 98. Fica facultado aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal utilizar a prerrogativa de venda direta aos ocupantes de suas áreas públicas objeto da Reurb-E, dispensados os procedimentos exigidos pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e desde que os imóveis se encontrem ocupados até 22 de dezembro de 2016, devendo regulamentar o processo em legislação própria nos moldes do disposto no art. 84 desta Lei.

A venda direta é uma forma de alienação onerosa de imóveis públicos, que pode ser feita de maneira simplificada, sem os procedimentos licitatórios da Lei de Licitações, desde que o imóvel esteja ocupado até o marco temporal de 22 de dezembro de 2016.

Isso é um ponto importante para entender a distinção entre as possibilidades de regularização de áreas públicas ocupadas irregularmente, diferenciando o tratamento dado aos núcleos classificados como de interesse social (Reurb-S) e os de interesse específico (Reurb-E).

Além disso, de acordo com o artigo 23, § 4º, apenas o titular do domínio de áreas públicas, ou seja, a União, estados, Distrito Federal ou municípios, tem o poder de conferir o título de legitimação fundiária aos ocupantes dessas áreas. Em terrenos privados, por outro lado, o poder público municipal tem a prerrogativa de conceder a legitimação fundiária, independentemente de consentimento do proprietário privado, promovendo assim a regularização de ocupações consolidadas de longa data.

Legitimação de posse

A legitimação de posse, regulada pelo artigo 25 da Lei nº 13.465/2017, é um instrumento que confere ao ocupante o reconhecimento formal da posse de um imóvel, permitindo que, posteriormente, essa posse seja convertida em propriedade.

Spacca

Ao contrário da legitimação fundiária, a legitimação de posse não está vinculada ao marco temporal de 22 de dezembro de 2016, o que significa que este instrumento pode ser aplicado tanto a núcleos urbanos informais consolidados antes quanto àqueles surgidos após essa data.

Essa ausência de vinculação ao marco temporal traz maior flexibilidade para a regularização fundiária de áreas ocupadas mais recentemente, diferentemente da legitimação fundiária, que exige que o núcleo urbano tenha sido consolidado até a referida data. No entanto, apesar de não haver um marco temporal específico, é fundamental que os requisitos de consolidação da ocupação sejam comprovados para que a legitimação de posse seja aplicada.

Isso significa que, embora o núcleo informal possa ter se formado após o marco de 22 de dezembro de 2016, é necessário demonstrar que o imóvel atende aos critérios de consolidação, tais como a posse pacífica, a existência de edificações e o tempo de ocupação, que devem ser apresentados e comprovados durante o processo de regularização. A legislação deixa claro que a legitimação de posse depende da consolidação da ocupação, de modo que a posse não pode ser contestada ou estar em fase inicial.

A conversão da legitimação de posse em propriedade está prevista no artigo 26 da Lei nº 13.465/2017, que estipula que, após o prazo de cinco anos, o título de posse será convertido automaticamente em propriedade, desde que os requisitos estabelecidos pela Constituição sejam atendidos:

Art. 26. Sem prejuízo dos direitos decorrentes do exercício da posse mansa e pacífica no tempo, aquele em cujo favor for expedido título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, terá a conversão automática dele em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183 da Constituição Federal, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral.

A posse mansa e pacífica é um dos principais elementos que devem ser demonstrados para que a legitimação de posse seja bem-sucedida. Além disso, o tempo de ocupação deve ser considerado, pois a conversão em título de propriedade só ocorrerá após cinco anos de registro da posse, assegurando que a ocupação seja consolidada e que o possuidor tenha estabelecido sua relação com o imóvel de forma estável e contínua.

Consolidação da posse e critérios para legitimação

Embora a legitimação de posse não exija a consolidação até o marco temporal de 2016, ela deve atender aos critérios de consolidação previstos pela legislação, tais como a identificação do tempo de ocupação, a natureza das edificações e a estabilidade da posse. O poder público, ao conceder a legitimação de posse, verifica se essas condições estão satisfeitas, garantindo que o processo de regularização seja feito de maneira justa e que a ocupação seja legítima.

Por exemplo, o artigo 25 destaca que a legitimação de posse deve ocorrer com a identificação dos ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse, reforçando que não basta apenas ocupar o terreno; é necessário que a ocupação tenha características que justifiquem o reconhecimento da posse.

Art. 25. A legitimação de posse, instrumento de uso exclusivo para fins de regularização fundiária, constitui ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse, o qual é conversível em direito real de propriedade, na forma desta Lei.

Portanto, mesmo não estando sujeita a um marco temporal específico, a legitimação de posse ainda requer que sejam demonstrados certos critérios de estabilidade e continuidade da ocupação, o que garante que a regularização fundiária promova a inclusão social de ocupantes de boa-fé, ao mesmo tempo em que evita a legalização de invasões recentes ou sem um histórico consolidado de ocupação.

Flexibilidade e segurança jurídica

A legitimação de posse, por sua natureza, é um mecanismo mais flexível no processo de regularização fundiária. Como ela não está vinculada a um marco temporal rígido, é possível que núcleos urbanos informais surgidos após 2016 também se beneficiem desse instrumento.

No entanto, essa flexibilidade não elimina a necessidade de garantir que os requisitos de consolidação sejam devidamente comprovados, o que traz segurança jurídica tanto para os ocupantes quanto para o poder público.

A conversão automática da posse em propriedade, após cinco anos, proporciona um incentivo adicional para que os ocupantes busquem a formalização de sua situação, sabendo que, com o tempo, poderão obter o direito de propriedade sobre o imóvel que ocupam.

Esse processo garante que áreas ocupadas de maneira pacífica e consolidada possam ser regularizadas, mesmo que tenham surgido em períodos posteriores ao marco temporal de 2016.

Conclusão

A Lei nº 13.465/2017 representa um marco significativo na regulação dos núcleos urbanos informais no Brasil, oferecendo um conjunto de instrumentos jurídicos voltados para promover a inclusão social e garantir a segurança jurídica de milhares de ocupantes de áreas irregulares.

Entre esses mecanismos, destacam-se a legitimação fundiária e a legitimação de posse, que desempenham papéis centrais no processo de regularização fundiária, cada um com suas características específicas e critérios de aplicabilidade.

O marco temporal de 22 de dezembro de 2016, introduzido pela Medida Provisória nº 759/2016 e mantido na Lei nº 13.465/2017, é um elemento essencial para a aplicação de determinados instrumentos, como a legitimação fundiária e a venda direta aos ocupantes de áreas públicas.

Essa data estabelece um limite temporal para regularizar ocupações consolidadas, evitando a legalização de invasões recentes e assegurando que a regularização beneficie, de fato, ocupantes de boa-fé que estabeleceram raízes em núcleos consolidados há mais tempo.

No entanto, esse marco temporal não se aplica à legitimação de posse, o que confere maior flexibilidade para a regularização de áreas ocupadas após essa data, desde que sejam cumpridos os requisitos de consolidação da ocupação.

A legislação, portanto, busca equilibrar a regularização de áreas historicamente consolidadas com a necessidade de impedir a regularização indiscriminada de ocupações recentes, promovendo uma urbanização mais ordenada e sustentável. Ao delimitar a aplicação da legitimação fundiária a núcleos existentes até 2016, e ao permitir que outros instrumentos, como a legitimação de posse, sejam aplicados sem essa restrição temporal, a lei oferece uma abordagem mais abrangente, que contempla diferentes realidades e necessidades sociais no território brasileiro.

Por fim, a regularização fundiária se consolida como um instrumento essencial de política pública, capaz de impulsionar o desenvolvimento urbano sustentável e contribuir para a redução das desigualdades sociais no Brasil. Ao formalizar núcleos urbanos informais, a lei promove a segurança jurídica, a inclusão social e o acesso a direitos fundamentais, como a moradia digna e a regularização da propriedade, fortalecendo o direito à cidade e à cidadania de milhões de brasileiros.

Autores

  • é advogado, cofundador do escritório Martins Zanchet Advocacia Ambiental, mestre em Direito e Desenvolvimento Sustentável: Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário do Pará - Belém, professor universitário de Graduação e em Pós-Graduação, professor de Direito Ambiental e sócio-fundador da Escola de Direito Ambiental.

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