Opinião

Pode lei federal atribuir autonomia funcional a policiais civis?

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8 de outubro de 2024, 16h24

A Constituição de 1988 possui um rol taxativo de órgão públicos que possuem autonomia funcional, dentre eles o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública. Vejamos os artigos elucidativos:

“Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.”
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento.”
“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. § 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.”

Regulamentações

Nesse particular, é importante frisar que a Carta Magna não atribui liberdade funcional aos agentes desses órgãos, mas à instituição. Quem estende essa prerrogativa aos cargos são as leis reguladoras respectivas.

Nessa senda, a Lei Complementar nº 35 de 1979, conhecida como Lei Orgânica da Magistratura, prescreve eu seu artigo 41 que “salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir [1].

Outrossim, a Lei Federal nº 8.625 de 1993, denominada de Lei Orgânica dos Ministérios Públicos Estaduais, sem seu artigo 41, inciso V, afirma que constitui prerrogativa dos membros do Ministério Público, no exercício de sua função, gozar de inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional.

Finalmente, a Lei Complementar nº 80 de 1994, Lei Orgânica da Defensoria Pública, de forma solar, em seu artigo 43, inciso I, aduz que são garantias dos membros da Defensoria Pública da União a independência funcional no desempenho de suas atribuições. Igual disposição consta no artigo 127, inciso I, em relação aos Defensores Públicos Estaduais.

Por sua vez, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei Federal nº 8.906 de 1994, de forma mais tímida, sintetiza em seu artigo 18 que a relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia.

Autonomia do delegado

Lado outro, a recente Lei Federal nº 14.735 de 2023, a qual instituiu a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, sem seu artigo 26, parágrafo único, cria de forma inédita para o delegado de polícia a autonomia funcional, nos seguintes termos:

“Cabe ao delegado de polícia presidir o inquérito policial, no qual deve atuar com isenção, com autonomia funcional e no interesse da efetividade da tutela penal, respeitados os direitos e as garantias fundamentais e assegurada a análise técnico-jurídica do fato.” (grifos do articulista)

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Diga-se de passagem que, em relação ao perito oficial criminal, o legislador federal reiterou o equívoco constitucional quando, em seu artigo 28, assegurou a essa categoria a autonomia técnica, científica e funcional, pois poderia ter se limitado à parte técnica e científica.

Com relação a esse tema, de forma alheia à jurisprudência como doravante será apresentado, comenta com naturalidade o delegado de Polícia Luís Gonzaga da Silva Neto (2024, p. 126),

“A autonomia funcional do delegado de polícia é um princípio essencial que garante sua independência na condução das atividades de investigação e na tomada de decisões no âmbito da polícia civil. No exercício de suas atribuições, o delegado de polícia tem o poder de dirigir as atividades da polícia civil, determinar a realização de investigações, coordenar operações policiais, comandar apurações e procedimentos, além de presidir o inquérito policial. Essa autonomia tem como escopo permitir ao delegado a tomada de decisões fundamentais para a condução das investigações, como a realização de diligências, a coleta de provas, a oitiva de testemunhas e a solicitação de perícias. A autonomia funcional do delegado também se reflete na sua capacidade de agir de acordo com critérios técnicos e jurídicos, garantindo a observância dos princípios legais e dos direitos fundamentais durante todo o processo investigativo. Essa independência é crucial para assegurar a imparcialidade e a efetividade das investigações, contribuindo para a promoção da justiça criminal, que visa garantir a eficiência e a legitimidade das atividades de investigação, fortalecendo a confiança da sociedade no trabalho policial e na aplicação da lei.” (grifos do articulista)

O que diz a jurisprudência

Destarte, a questão posta neste breve excerto é se a legislação infraconstitucional pode atribuir a servidores públicos a autonomia funcional, sem que tal prerrogativa esteja prevista na Constituição da República previamente. Temos para nós que não é juridicamente aceitável.

Com relação à concessão de autonomia funcional às Procuradorias dos estados, extensível às Procuradorias dos municípios pelo princípio da simetria [2], a Suprema Corte possui o seguinte entendimento, verbis:

“A Procuradoria-Geral do Estado é o órgão constitucional e permanente ao qual se confiou o exercício da advocacia (representação judicial e consultoria jurídica) do Estado-membro (CF/88, art. 132). A parcialidade é inerente às suas funções, sendo, por isso, inadequado cogitar-se independência funcional, nos moldes da Magistratura, do Ministério Público ou da Defensoria Pública (CF/88, art. 95, II; art. 128, § 5º, I, b; e art. 134, § 1º). A garantia da inamovibilidade é instrumental à independência funcional, sendo, dessa forma, insuscetível de extensão a uma carreira cujas funções podem envolver relativa parcialidade e afinidade de ideias, dentro da instituição e em relação à Chefia do Poder Executivo, sem prejuízo da invalidação de atos de remoção arbitrários ou caprichosos.” [ADI 1.246, relator: ministro Roberto Barroso, j. 11/4/2019, P, DJE de 23/5/2019.]

“Ação direta de inconstitucionalidade. Arts. 135, I, e 138, caput e § 3º, da Constituição do Estado da Paraíba. Autonomia institucional da Procuradoria-Geral do Estado. Requisitos para a nomeação do procurador-geral, do procurador-geral adjunto e do procurador-corregedor. O inciso I do mencionado art. 135, ao atribuir autonomia funcional, administrativa e financeira à Procuradoria paraibana, desvirtua a configuração jurídica fixada pelo texto constitucional federal para as procuradorias estaduais, desrespeitando o art. 132 da Carta da República.” [ADI 217, relator: ministro Ilmar Galvão, j. 25/8/2002, P, DJ de 13/9/2002.] = DI 291, relator: ministro Joaquim Barbosa, j. 7-4-2010, P, DJE de 10/9/2010

De outro vértice, com atenção às Policias Civis, o Tribunal Constitucional detêm jurisprudência “pacífica” acerca da impossibilidade de assentimento da autodeterminação por meio de normas da Constituição do Estado. Vejamos seus acórdãos:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMENDA CONSTITUCIONAL 61/2012 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATRIBUIÇÃO DE STATUS DE FUNÇÃO ESSENCIAL À JUSTIÇA E DE INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL AO CARGO DE DELEGADO DE POLÍCIA. AUSÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO, NO PROCESSO LEGISLATIVO, DO GOVERNADOR DO ESTADO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL (CF, ART. 144, § 6º). PROCEDÊNCIA. (ADI n. 5.520-SC)”

“EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Emenda Constitucional nº 35/2012 à Constituição do Estado de São Paulo. Nova redação dada ao art. 140 da Constituição. 3. Polícia Civil do Estado de São Paulo incluída entre as funções essenciais da justiça estadual. 4. Violação aos arts. 37, 129 e 144 da Constituição Federal. 5. Precedentes: ADI 5520 e ADI 882. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI n. 5.522-SP)”

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA N. 26/2014 À CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO TOCANTINS. REVOGAÇÃO E ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE PARTE DOS DISPOSITIVOS QUESTIONADOS PELA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 37/2019. PERDA PARCIAL DE OBJETO. DELEGADO DE POLÍCIA. ENQUADRAMENTO DAS FUNÇÕES COMO DE NATUREZA JURÍDICA E ESSENCIAIS AO ESTADO. REGIME JURÍDICO E FORMA DE PROVIMENTO. DISCIPLINA. VÍCIO FORMAL. RESERVA DE INICIATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO PARA DISPOR SOBRE REGIME JURÍDICO DE SERVIDOR PÚBLICO. VÍCIO MATERIAL. FIXAÇÃO DO SUBSÍDIO MEDIANTE LEI. ADEQUAÇÃO. ART. 144, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. (ADI n. 5.528-TO)”

“EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMENDA CONSTITUCIONAL 82/2013 DO ESTADO DO AMAZONAS. VÍCIO DE INICIATIVA EM MATÉRIA ORGÂNICA À ESTRUTURAÇÃO DA POLÍCIA CIVIL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL (CF, ART. 61, §1º, II, C). MODIFICAÇÃO DE REGRAS E CRITÉRIOS DE PROVIMENTO DO CARGO DE DIRETOR DA POLÍCIA CIVIL, ATRIBUIÇÃO DE STATUS DE FUNÇÃO ESSENCIAL À JUSTIÇA E DE INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL EM ANTINOMIA À PREVISÃO CONSTITUCIONAL DE SUBORDINAÇÃO DA POLÍCIA CIVIL AO GOVERNADOR DE ESTADO. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL (CF, ART. 144, § 6º). PROCEDÊNCIA. (ADI n. 5.536-AM)”

Nesse ponto, vemos que o STF tem reiteradamente propugnado pela inconstitucionalidade das tentativas do legislador constituinte estadual em atribuir à Polícia Judiciária e às autoridades correlatas a independência funcional, pois isso subverte a lógica da hierarquia inerente à estrutura do Poder Executivo dos estados, cujo chefe é o governador.

Nesse diapasão, da mesma forma vemos a impossibilidade de lei federal conceder a benesse, já que não sobrevive a uma filtragem constitucional, pelos mesmos fundamentos aventados no tocante às Constituições estaduais, qual seja, a hierarquia e o controle externo e interno.

Sem embargo, é bom relembrar o que foi salientado na ADI nº 5.579-DF, no sentido de que

“A inconstitucionalidade das normas previstas nos §§ 4º e 9º do art. 119 da Lei Orgânica do Distrito Federal não afasta o dever desses servidores públicos em atuarem com o rigor da independência técnica, em especial, das funções como de peritos criminais, médicos-legistas e datiloscopistas policiais, cabendo a esses profissionais analisar vestígios e elementos de convicção e interpretá-los, sem interferências ilegítimas, à luz de seus conhecimentos técnicos e de sua experiência.” (grifos do articulista)

Autonomia funcional e autonomia técnica

Portanto, ficou definido que a ausência de independência funcional não afasta a independência técnica no exercício de seu mister, à semelhança do que ocorre com a advocacia pública.

Nesse prumo, a Lei Federal nº 12.830 de 2013 declara algumas garantias ao delegado de Polícia, como o direito de remoção somente por ato fundamentado e a invocação do caderno apuratório por superior hierárquico somente mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação, suficientes à sua atuação.

Oportunamente, aproveitamos o enseja para salientar que a Lei nº 14.735/2023, em seu artigo 44, criou o Conselho Nacional da Polícia Civil, “com competência consultiva e deliberativa sobre as políticas públicas institucionais de padronização e intercâmbio nas áreas de competências constitucionais e legais das polícias civis”.

Sobre esse tópico, conforme nos alerta o delegado de Polícia Contelli (2024, p. 142) sobre a importância de um órgão nacional de gerenciamento policial investigativo,

“Essa dificuldade tem levado inúmeros trabalhos de investigação de sucesso a circunscreverem-se ao âmbito estadual em detrimento da eficiência do combate uniforme. Quando isso ocorre, estamos diante, mais uma vez, da ausência de diálogo, ainda que dentro das próprias policias judiciárias.”

É bom que se diga que esse órgão não equivale àquele proposto na PEC nº 381/2009 na Câmara dos Deputados que intenta instituir um Conselho Nacional de Polícia com competência para exercer o controle externo da atividade policial no lugar do Ministério Público.

Concluindo, temos que a aquiescência de emancipação funcional a agentes públicos, em especial delegados de polícia, por Constituição estadual ou legislação infraconstitucional viola frontalmente a Constituição Cidadã.

 


Referência bibliográficas

CONTELLI, Everson Aparecido. O Custo da Investigação Criminal: Abuso de direito criminal e a epistemologia das externalidades. São Paulo: JusPodivm, 2024.

JORGE, Higor Vinícius Nogueira. Polícia Judiciária e Ministério Público – Uma Relação de Interdependência Funcional no Sistema de Justiça Criminal. São Paulo: JusPodivm, 2024.

[1] Na MC na ADPF n. 774-DF, o Ministro André Mendonça concedeu a limitar pleiteada nos seguintes termos: Ante o exposto, defiro em parte o pedido de medida cautelar para determinar a suspensão dos processos judiciais que visam a condenar o poder público ao pagamento de indenizações com base no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, tendo como causa de pedir a impropriedade ou o excesso de linguagem de membro da magistratura nacional (art. 41 c/c arts. 35 e 36, todos da LC nº 35/1979), até ulterior decisão em sentido diverso ou julgamento definitivo no âmbito desta ADPF.

[2] RE n. 663.696-MG: A expressão ‘Procuradores’, contida na parte final do inciso XI do art. 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

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