Opinião

O STF e o remédio amargo no fornecimento de medicamentos registrados

Autor

  • André Bastos Lopes Ferreira

    é doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Societário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP) graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (NAP-DISA/USP) e do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (NETHIS/FIOCRUZ).

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8 de outubro de 2024, 19h39

Após quase 16 anos da admissão do RE 566.471/RN e dois anos do reconhecimento da repercussão geral no RE 1.366.243/SC, o STF proclamou o resultado dos julgamentos dos Temas 6 e 1.234, inclusive com sugestão de edição de súmula vinculante, firmando o posicionamento da corte quanto ao fornecimento de medicações registradas na Anvisa e não padronizadas no Sistema Único de Saúde.

Reprodução

O julgamento do Tema 6 ocorreu após encerradas as discussões do Tema 1.234, valendo-se do ali decidido para embasar o julgamento. Mesmo que originalmente o primeiro tema tratasse do fornecimento de medicamentos de alto custo, operou-se um julgamento “conjunto” dos casos para alinhavar as teses fixadas.

Em mais um julgamento histórico, foi possível observar como toda estrutura estatal, impulsionada pela inação dos Poderes Executivo e Legislativo, precisou se valer do Judiciário para a efetivação e regulamentação de políticas públicas. O resultado não é de todo ruim, mas escancara os vácuos da administração pública, não só na condução do processo, como também em seu resultado.

Para resolver a questão, o ministro relator Gilmar Mendes convocou todo organograma responsável pela gestão do SUS, os órgãos de controle e representação, além de representantes de todos os poderes para que, em comum acordo, definissem as regras para o fornecimento de medicações não padronizadas.

Sabe-se que tais questões deveriam ter sua condução capitaneada pelo Poder Executivo, responsável maior pela gestão do SUS. Entretanto, os vícios do próprio Judiciário, dentre eles o desrespeito às vontades do administrador sem considerar as consequências estruturais de uma tutela de urgência deferida e a cegueira seletiva em relação aos precedentes, forçou a transação nos moldes em que ocorreu, inclusive, com a proposta de edição de súmula vinculante.

Responsabilidade entre entes federativos

O plenário do Supremo homologou parcialmente os acordos celebrados pelos entes, que, além de estabelecerem critérios para resolver a antiga celeuma acerca da competência jurisdicional e ressarcimento interfederativo, definiram as exceções nas quais o fornecimento de tais medicações é possível.

Spacca

O critério utilizado para a divisão de responsabilidade entre os entes federativos foi o valor do tratamento anual do fármaco não incorporado, com base no preço máximo de venda do governo (PMVG). Apenas se ultrapassar 210 salários-mínimos a competência será da Justiça Federal; do contrário, deverá ser ajuizada a ação na Justiça Estadual. Importante mencionar que não foi alterada a regra já fixada no Tema 500 do STF, que adotou a tese segundo a qual o pedido de fornecimento de medicamento sem registro na Anvisa deve ser proposto em face da União, pois esse registro é um dos pressupostos para incidência da nova tese.

Isso não significa, porém, que estado e município não devam ingressar no polo passivo das ações na Justiça Federal, podendo haver condenação supletiva desses entes para facilitar o cumprimento da ordem judicial, com posterior ressarcimento pela União por repasses via fundos.

O acordo homologado definiu que:

  • i) até 7 salários-mínimos, o custeio será de responsabilidade do Estado;
  • ii) acima de 7 e abaixo de 210 salários-mínimos, haverá ressarcimento pela União de 65% e 35% pelo Estado;
  • iii) acima de 210 salários-mínimos, a incumbência será da União. Para tratamentos oncológicos, deverá ser estabelecido acordo na CIT (Comissão Intergestores Tripartite).

Mesmo com a existência de críticas válidas à condução do julgamento, faz-se necessário avaliar seus resultados práticos e o impacto na vida dos pacientes. O resultado do julgamento que importa ao jurisdicionado, em síntese, vetou o fornecimento de medicações não padronizadas, criando um rol taxativo e excepcional de requisitos cumulativos que permitirão ao magistrado singular obrigar os entes federativos à compra de tais fármacos.

Deste rol, alguns pontos para o fornecimento foram mantidos em relação ao entendimento anterior, sendo eles:

  • i) a negativa administrativa do fornecimento;
  • ii) a incapacidade financeira do paciente;
  • iii) a impossibilidade de substituição por outro fármaco já previsto nos protocolos terapêuticos da Conitec; e
  • iv) a imprescindibilidade clínica do tratamento.

Inovações do julgamento

Quanto às inovações trazidas pelo resultado do julgamento, figura como requisito condicionante a exigência, sob pena de nulidade do ato judicial, da análise: i) do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou demora em sua apreciação, e a ii) comprovação da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do medicamento, necessariamente respaldadas por ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise.

Tais adições têm dois objetivos claros. O primeiro é forçar a obediência pelo Judiciário às vontades administrativas exaradas pelo Executivo. O outro é elevar o nível de embasamento técnico-científico das decisões judiciais, alguns passos para frente, outros para trás.

O primeiro grande destaque deve ser feito sob a obrigatoriedade de análise, pelo Judiciário, do ato administrativo da Conitec, que indeferiu a incorporação do fármaco. Entretanto, tal análise restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato de não incorporação e do ato administrativo questionado.

Pode-se concluir, portanto, que, quando há uma negativa administrativa de padronização de um tratamento, cujo procedimento tenha observado as balizas constitucionais e legais, mesmo que existam vantagens terapêuticas, seu fornecimento via Judiciário está cerceado.

Em uma leitura mais desatenta, tende-se a concordar com a postura adotada: ela dá mais dinamismo e previsibilidade ao sistema público que fornece medicações de alto custo. Contudo, a vedação da análise do mérito das decisões administrativas de não incorporação pode se tornar uma armadilha ao acesso aos melhores tratamentos disponíveis.

Contradição de análise

Um exemplo material desta contradição está na análise realizada pelo Conitec para a incorporação do Pembrolizumabe em monoterapia ou associado à quimioterapia para pacientes com câncer de pulmão de células não pequenas avançado ou metastático (PD-L1 positivo) em primeira linha de tratamento, que deu parecer negativo à padronização (Relatório nº 420/2023), de onde se extrai:

Os participantes com experiência no uso do pembrolizumabe relataram como efeitos positivos a baixa toxicidade, a facilidade de manipulação do medicamento e a ausência de eventos adversos graves. O aumento da sobrevida, a remissão da doença e o menor tempo de tratamento também foram dignos de nota. Os participantes mencionaram ainda a melhora na qualidade de vida e os ganhos relacionados à manutenção e realização das atividades cotidianas […]

Recomendação Final da Conitec

Os membros do Comitê de Medicamentos presentes na 16ª Reunião Extraordinária da Conitec no dia 1° de novembro de 2023 recomendaram, por maioria simples, a não incorporação do pembrolizumabe em monoterapia ou associado à quimioterapia para pacientes com câncer 8 de pulmão de células não pequenas avançado ou metastático (PD-L1 positivo) em primeira linha de tratamento.

A recomendação considerou que os valores estimados para o custo do tratamento por ano de vida com qualidade eram muito superiores ao limiar de custoefetividade utilizado pela Conitec, muito embora tenha reconhecido os benefícios clínicos da tecnologia.

Neste caso, foram observados os prazos e as formas previstas no processo de padronização do fármaco, que resultaram na não incorporação, mesmo com evidências da melhor efetividade e impacto positivos na vida do paciente.

Aos que sofrem de câncer de pulmão e pretendem o uso deste medicamento via SUS, a porta se fechou, baseando-se unicamente na questão pecuniária.

Por outro lado, é digno de reconhecimento o avanço da qualidade do debate no que diz respeito à atuação do Poder Judiciário nas demandas desta natureza. Ao exigir a utilização da medicina baseada em evidência e elevando o mínimo necessário de informações para o fornecimento de tais fármacos, o estado acaba por se blindar de situações que possam comprometer a integridade financeira do SUS.

Sistematização para fornecimento de medicamentos

Ao final, cumpre destacar as propostas de melhor sistematização para o fornecimento de fármacos, através de uma plataforma nacional que unificará todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármaco, de fácil consulta e informação ao cidadão, na qual constarão dados básicos para possibilitar a análise e eventual resolução administrativa, além de posterior controle judicial.

O julgamento dos temas 6 e 1234 encerra questões que ocuparam as cortes nacionais por décadas, fixando uma série de pontos e previsões que, de fato, contribuem para uma evolução do acesso à saúde no Brasil. Todavia, há uma clara utilização do Judiciário para a resolução de temas negligenciados pelos demais poderes, cuja maior vítima é a sociedade.

Novamente, o Supremo parece escrever certo, em linhas tortas. Não se olvidando das necessárias críticas à forma utilizada e aos resultados obtidos, com a proclamação dos resultados finalmente o jurisdicionado pode ter alguma previsibilidade para o fornecimento de medicações não padronizadas pelo SUS. Da mesma forma, os gestores públicos terão orçamentos cada vez mais precisos e com maior previsibilidade, caminhando para a melhor gestão do erário na efetivação de políticas públicas de acesso à saúde.

Autores

  • é doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Societário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP), graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (NAP-DISA/USP) e do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (NETHIS/FIOCRUZ).

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