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Dispensas de AIR no Brasil e no mundo: reflexões a partir da prática da Anvisa

Autores

  • Natasha Schmitt Caccia Salinas

    é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio doutora e mestre em Direito pela USP e master of laws (LL.M.) pela Yale Law School.

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  • Lucas Thevenard Gomes

    é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da FGV mestrando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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8 de outubro de 2024, 9h15

A AIR (avaliação de impacto regulatório) tem se aprimorado como uma ferramenta fundamental para garantir que as decisões regulatórias sejam fundamentadas e efetivas. No entanto, a prática de dispensa de avaliação levanta sérias preocupações sobre sua implementação e eficácia.

A análise do comportamento das agências em relação às dispensas de AIR não apenas contribui para a compreensão das suas implicações no Brasil, mas também se insere em um debate global sobre boas (e más) práticas de melhoria regulatória.

Aumento do uso de dispensas de AIR é tendência mundial

O aumento do uso de dispensas de AIR é um fenômeno constatado não apenas no Brasil, mas também em diversos outros países, tendo suscitado debates em fóruns internacionais como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

 Em 2021, a OCDE lançou uma edição atualizada de seu Regulatory Policy Outlook, destacando uma crescente tendência, entre seus países membros, de utilização de dispensas de AIRs em razão de emergências.

Spacca

A pandemia da Covid-19 apenas ampliou esse fenômeno, de forma que, em 2020, um total de 18 países membros da OCDE passaram a não exigir AIRs para casos de emergências. Isso representa um aumento de 38% dos países membros nessa situação, em três anos, pois em 2017 essa hipótese de dispensa só estava prevista em 13 países.

Riscos do uso indiscriminado de dispensas de AIR

A OCDE considera essa tendência problemática por vários motivos. Em primeiro lugar, situações de crises ou emergenciais são aquelas em que os riscos e potenciais impactos das regulações aprovadas tendem a ser maiores, tornando temerária a decisão de se afastar o uso da AIR nesses casos.

Além disso, hipóteses de dispensa sem parâmetros adequados geram outra ordem de riscos. Órgãos reguladores podem utilizar emergências não genuínas de forma estratégica, para evitar o uso da AIR em casos nos quais o uso da ferramenta poderia ser socialmente desejável.

Soluções para mitigar os riscos das dispensas de AIR

Uma solução adotada por alguns países para esse problema consiste em aumentar o uso de revisões ex post das normas aprovadas sem AIR. Ao fazer isso, os países estabelecem para os reguladores a obrigação de avaliar retrospectivamente os efeitos de decisões regulatórias tomadas em contexto de crise ou emergência.

O objetivo dessa medida seria evitar, em um primeiro momento, os eventuais atrasos e custos associados à AIR, garantindo, contudo, que as normas regulatórias aprovadas sejam submetidas posteriormente a avaliações destinadas a assegurar sua qualidade e eficácia.

Essa solução, contudo, ainda esconde uma outra dificuldade: o fato de que a qualidade de avaliações ex post frequentemente depende da realização prévia de AIR.

Para que o avaliador possa analisar os efeitos de uma regulação, é crucial compreender os problemas, os objetivos e os critérios de seleção que levaram à adoção de uma solução regulatória específica, assim como os seus impactos esperados. No entanto, em casos de decisões regulatórias tomadas sem AIR, essas informações podem não estar prontamente disponíveis ou devidamente documentadas.

Por essa razão, a OCDE atualmente reconhece que os países precisam de flexibilidade no uso da AIR, defendendo procedimentos acelerados ou simplificados em casos de emergências genuínas. Essa abordagem exigiria que os países, no mínimo, seguissem as etapas básicas da AIR e fornecessem explicitamente razões fundamentadas — mesmo que baseadas em dados qualitativos quando as informações quantitativas não estiverem prontamente disponíveis — para a adoção de uma norma sem AIR.

Dispensa de AIR no Brasil antes e depois da vigência do Decreto nº 10.411/2020

No Brasil, o uso de dispensas de AIR por urgência têm sido consistentemente elevadas. No artigo The use and exemption of Regulatory Impact Assessment by the National Health Surveillance Agency, já havíamos constatado que na Anvisa essa prática não estava relacionada à pandemia da COVID-19, sendo-lhe anterior.

Os dados coletados em 2021 haviam revelado que houve dispensa de AIR em 478 das 843 Resoluções de Diretoria Colegiada (RDCs) e Instruções Normativas (INs) adotadas pela Anvisa entre 2012 e 2020 (56,7% dos casos). A justificativa utilizada para 412 dessas 478 dispensas (86,2% dos casos) foi a urgência do processo normativo. Assim, naquele período, a justificativa de urgência resultou na dispensa de 48,9% das RDCs e INs aprovadas pela agência.

Em 2020, contudo, foi aprovado o Decreto nº 10.411/2020 (“Regulamento da AIR”), que previu a obrigatoriedade de AIR para as agências reguladoras independentes e para a administração federal de forma mais ampla, respectivamente.

O regulamento da AIR estabeleceu um amplo conjunto de regras que regem o uso da ferramenta, incluindo a previsão de diversas hipóteses específicas de inaplicabilidade (artigo 3º, § 2º) e de dispensa (artigo 4º) de AIR.

O decreto previu também o uso da ARR (Avaliação de Resultado Regulatório), ferramenta que permite a avaliação ex post dos impactos gerados pela norma após a sua implementação.

Em particular, o artigo 12 estabeleceu que, em casos de dispensa de AIR por urgência, o órgão ficaria obrigado a realizar uma ARR em até três anos da entrada em vigor do ato normativo. Para tanto, dispõe o § 2º do artigo 4º que o documento de dispensa deve, “obrigatoriamente, identificar o problema regulatório que se pretende solucionar e os objetivos que se pretende alcançar, de modo a subsidiar a elaboração da ARR”.

É fácil perceber que a inclusão desse dispositivo foi motivada pelas já mencionadas diretrizes da OCDE sobre o tema, que preveem a necessidade de utilizar prioritariamente ARRs quando a AIR é dispensada e, para que isso seja possível, aconselham também a realização de uma modalidade resumida de AIR cujo objetivo principal é prover informações mínimas que devem substanciar a ARR posterior.

No estudo “Análise dos 3 anos de Regulamentação da AIR no Brasil”, verificamos, no entanto, que a prática de definição do problema e dos objetivos regulatórios antes de publicação a nota de dispensa por urgência nem sempre é observada pelas agências.

Menos AIRs, mais motivos

Diante desse cenário, em estudo recente publicado no Benefit-Cost Analysis Journal, intitulado “Open Exceptions: Why Does the Brazilian Health Regulatory Agency (ANVISA) Exempts RIA and Ex Post Reviews?”, realizamos uma nova coleta de dados para obter informações sobre as RDCs e INs aprovadas pela Anvisa após a data de vigência do Regulamento da AIR (15 de abril de 2021), assim como sobre as razões apresentadas para embasar as hipóteses de dispensa.

Os dados mostram uma redução muito significativa do uso da AIR nos anos subsequentes à vigência do Regulamento da AIR. O estudo evidenciou que, no período anterior à vigência do Regulamento, a Anvisa utilizou-se da AIR em cerca de um terço dos casos (33,67% das 879 RDCs e INs identificadas entre janeiro de 2011 e 15 de abril de 2021).

Em contrapartida, no período posterior à vigência do Regulamento o uso de AIR caiu para cerca de um décimo dos casos (10,38% das 395 RDCs e INs identificadas entre 15 de abril de 2021 e dezembro de 2022).

A evolução da série histórica no período pode apontar para uma redução ainda mais severa do uso da AIR, pois ao final do período analisado observamos sucessivas quedas dos percentuais anuais de uso da AIR, caindo de 36,54% em 2019, para 20,13% em 2020, para 17,47% em 2021 e, no último ano da série, para apenas 8,3%.

Em parte, esse resultado se deve aos atos normativos de consolidação editados no período, os quais caracterizam uma hipótese de inaplicabilidade recorrente. Mas mesmo retirando esses casos da análise, ainda temos um percentual de uso de AIR substancialmente menor após a vigência do Regulamento.

A segunda questão, por sua vez, referente às justificativas de dispensa utilizadas pela agência, suscitou resultados ainda mais interessantes. Ao compararmos o uso de dispensas de AIR pela agência antes e depois do regulamento da AIR, observamos uma grande diversificação das justificativas apresentadas pela agência para dispensar a AIR.

Se o período anterior ao decreto foi marcado por uma vasta prevalência da hipótese de “urgência”, após o Regulamento essa hipótese passou a ser menos utilizada, e diversas outras hipóteses de dispensa se tornaram recorrentes. A tabela a seguir mostra todos os motivos apresentados pela Anvisa para não realizar AIRs, antes e depois do regulamento.

Reprodução

Insuficiência de parâmetros para caracterizar as dispensas

No novo estudo já mencionado, realizamos também uma análise qualitativa dos documentos de justificativa de dispensa em casos de urgência posteriores à vigência do Regulamento. Para os casos de dispensa por urgência após a vigência do decreto, identificamos duas categorias de normas: (i) aquelas diretamente relacionadas à Covid-19, correspondentes a 65,2% dos casos; (ii) aquelas não relacionadas à pandemia, totalizando 34,8% das dispensas.

Verificamos, especialmente nos casos não relacionados à Covid-19, falta de demonstração da situação de urgência, além da falta de rigor na caracterização do que seria uma situação emergencial. Diversas normas que foram dispensadas de AIR por motivo de urgência, poderiam, a nosso ver, ter sido dispensadas por motivo de baixo impacto. A confusão decorre, em parte, da ausência de metodologias adequadas para caracterizar baixo impacto, como exigências de proporcionalidade e aplicação de testes de limiar, conforme nos manifestamos em artigo recentemente publicado nesta coluna.

Em casos onde os impactos de uma norma particular são baixos, não há razões para se exigir AIR, já que isso pode engessar, sem propósito, as escolhas regulatórias. Por outro lado, ausência de parâmetros sobre normas de baixo impacto pode produzir um efeito mais danoso, que é o de afastar a AIR em casos em que ela se revela absolutamente necessária.

Já sobre os atos de dispensa por urgência relacionados à Covid-19, observamos um fato peculiar. Durante a pandemia, a Anvisa adotou uma série de regulações de caráter emergencial com vigência temporária.

Por força do Decreto nº 10.411/20, essas normas regulatórias deveriam ser objeto de estudos de ARR três anos depois, não fosse pelo fato de que a Anvisa aprovou a Portaria nº 162/2021, com alterações, afastando por meio do artigo 57, § 2º, a exigência dessa avaliação ex post para normas de vigência temporária, que corresponderam à maior parte das normas relacionadas à Covid-19.

Embora a solução dada pela Anvisa de afastar a avaliação ex post de normas emergenciais de caráter temporário ainda não tenha sido, pelo nosso conhecimento, contestada nos tribunais, entendemos ser essa decisão equivocada por dois motivos.

Primeiro, porque os efeitos de uma norma temporária podem ter uma duração longa, muito mais longa do que a duração da norma provisória. Em segundo lugar, porque crises sanitárias têm se tornado cada vez mais recorrentes, e as medidas adotadas pela agência para confrontar a Covid-19 poderão ser úteis em diversos outros contextos.

Os achados dessas pesquisas mostram que os casos de dispensa de AIR são hoje um ponto crítico para a efetividade da política de melhoria regulatória. As hipóteses de dispensa previstas pelo Regulamento da AIR estão dotadas de ambiguidades que, na prática, dificultam a implementação efetiva do instrumento.

Uma definição mais precisa de quando as dispensas são apropriadas é crucial para equilibrar a necessidade de respostas rápidas com os benefícios de análises e avaliações de impacto adequadas.

Autores

  • é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio, doutora e mestre em Direito pela USP e Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School. Coordenadora científica do projeto Regulação em Números da FGV Direito Rio.

  • é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio), pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da FGV, mestrando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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