Opinião

Abordagem policial na jurisprudência do Supremo e do STJ

Autor

  • Thales Sousa da Silva

    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (matéria cível) servidor efetivo do TJ-DF especialista em Direito Penal e Processual Penal autor no Canal de Ciências Criminais e no Internacional Center for Criminal Studies (ICC) colaborador no Empório do Direito e membro do Clube Metajurídico.

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8 de outubro de 2024, 15h23

Segundo Ramos e Musumeci, a abordagem ocorre em “situações peculiares de encontro entre a polícia e a população, em princípio não relacionadas ao contexto criminal” [1]. Nessas particulares ocasiões são empreendidas diligências com espeque no tirocínio e na discricionariedade do agente policial.

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Para os fins propostos, deve-se entender discricionariedade como a característica dos atos administrativos que possibilita a adoção de medidas convenientes ao quadro fático apresentado, sem descurar dos limites legais impostos para o exercício do poder de polícia [2].

O Código de Processo Penal não oferece o conceito de abordagem e nem mesmo normatiza de modo cabal o tema. Não obstante, algumas diligências usualmente adotadas no cenário da abordagem estão regulamentadas nos títulos “VII e IX” do diploma normativo em referência.

O artigo 240 disciplina, a respeito especificamente da “busca e apreensão”, ser indispensável para autorizar a medida a existência de fundadas razões (busca domiciliar).

E diz o artigo 244:

A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar” (Ressalvam-se os grifos).

‘Fundada suspeita’ e ‘mera suspeita’

Tanto as medidas de constrição corporal (prisões) como as buscas (pessoal, veicular e domiciliar) só podem ser promovidas se presentes os requisitos normativos. Para a prisão em flagrante, que aqui pouco nos interessa, quando caracterizada alguma das hipóteses descritas no artigo 302 do CPP. Para a busca pessoal quando exista “fundada suspeita”.

Spacca

A fundada suspeita pode ser entendida como “justa causa” e por isso desafia um standard “probatório” característico do “juízo de probabilidade”. Não é um juízo de certeza, mas depende da comprovação ao menos da presença de elementos concretos que justifiquem determinada conclusão percebidos anteriormente à realização da diligência.

A expressão, no entanto, é vaga e o ordenamento não traz a lume critérios objetivos que permitam ao policial distinguir entre a suspeita fundamentada e o comportamento meramente suspeito. A doutrina especializada, por sua vez, não foi capaz de aclarar o seu significado. A propósito convém observar a crítica proposta por Aury Lopes Júnior [3]:

“A autoridade policial poderá revistar o agente quando houver fundada suspeita. Mas o que é fundada suspeita? Uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade do policial.

(omissis)

Por mais que se tente definir a fundada suspeita, nada mais se faz que pura ilação teórica.

(omissis)

A busca pessoal somente pode ser feita quando houver a fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida (ou sem porte regular), ou ainda coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; instrumentos de falsificação ou contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; apreender cartas, abertas ou não, destinadas a acusado ou sem seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato” (ressalvam-se os grifos).

Paradigma da ‘fundada suspeita’

Azor Lopes da Silva Júnior adverte que a fundada suspeita deve ser descrita “com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto”. Aduz também existir um paradigma de integração normativa da “fundada suspeita” com a posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito [4].

Em período recente os tribunais superiores passaram a disciplinar, de modo casuístico, as hipóteses em que as circunstâncias fáticas não admitem cogitar da presença de “fundada suspeita”. Esse dado é relevante pois os tribunais pátrios têm avançado no poder criativo dos precedentes judiciais, com respaldo no novo Código de Processo Civil, embora o estado brasileiro adote tradicionalmente o sistema jurídico da Civil Law [5].

Sem adentrar ao mérito da discussão a respeito da possibilidade de exercer a invalidação dos elementos informativos influência no exame da prova na fase processual, é certo que, na praxe jurídica, a inobservância dos critérios estabelecidos pela jurisprudência para as diligências adotáveis no curso da abordagem pode culminar com a rejeição da denúncia eventualmente oferecida (artigo 395, inciso III, do CPP), o arquivamento do inquérito policial ou o trancamento por meio de Habeas Corpus.

A imprescindibilidade de serem adotados critérios objetivos para distinguir “fundada suspeita” e “mera suspeita” foi objeto de deliberação no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 81.304-4/GO, senão vejamos:

A fundada suspeita, prevista no artigo 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter configurado na alegação de que trajava o paciente blusão suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias, ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder.

Entendimentos dos tribunais superiores

Sem critérios científicos ou normativos para definir o que seja “fundada suspeita”, devemos nos socorrer então ao que já foi definido pelos tribunais superiores a respeito do tema até o presente momento, em síntese:

  • A aparência física do suspeito não autoriza a medida de busca pessoal (STF. Plenário. HC 208.240/SP)
  • Hipótese em que o agente se esquiva da guarnição policial (fuga) evidencia fundada suspeita e, embora não permita o ingresso em domicílio, autoriza a busca pessoal (STJ. 6ª Turma. HC 889.618-MG e STF. 2ª Turma. RHC 229.514/PE)
  • “A mera alegação genérica de atitude suspeita é insuficiente para a licitude da busca pessoal” (STJ. 6ª Turma. RHC 158.580/BA).
  • O nervosismo demonstrado pelo abordado não justifica busca pessoal (STJ. 6ª Turma. Resp 1.961.459/SP)
  • A existência de denúncia anônima não caracteriza fundada suspeita para fins de busca pessoal. (STJ. HC 706.522/SP)
  • É legítima a busca pessoal quando ocorre prévia abordagem de verificação de indivíduo que trajava roupas visivelmente maiores que o seu tamanho e, questionado pela autoridade policial, fornece informações contraditórias. (STJ. HC 810.469/PB).
  • É válida a busca veicular quando o condutor acelera o veículo ignorando ordem de parada. (STF. HC 230.232/MG)
  • É válida a busca pessoal quando precedida de outras diligências investigatórias (STJ. 5ª Turma. AgrRG no HC 895.516/SP)
  • O fato de ser o suspeito conhecido dos policiais por envolvimento em comportamento criminoso autoriza a busca pessoal quando amparados em outras circunstâncias fáticas concretas (STJ. AgRg no HC 922.638/SC)
  • Não é possível admitir que a posterior constatação da situação de flagrância justifique a abordagem e a busca pessoal anteriormente realizadas, já que amparadas em mera suspeita, o que contamina todo o conjunto probatório produzido. (STJ. AgRg no HC 864.982/SP)

Em suma, a abordagem policial rotineira e de verificação pode ser empregada com amparo em situação ou comportamento meramente suspeito, mas as medidas de busca pessoal e veicular exigem a presença de “fundada suspeita”, com os delineamentos apresentados ao longo desse texto.

 


 

[1] RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda.”Elemento Suspeito”: Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania, nº 8, nov. 2004.

[2] “Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder” (art. 78, parágrafo único, do Código Tributário Nacional”.

[3] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 529.

[4] DA SILVA JUNIOR, Azor Lopes. Polícia Preventiva no Brasil: abordagens e busca pessoal. 1 ed. São Paulo: Dialética, 2022.

[5] DA SILVA JUNIOR, Azor Lopes. Polícia Preventiva no Brasil: abordagens e busca pessoal. 1 ed. São Paulo: Dialética, 2022.

Autores

  • é autista, policial legislativo do Senado Federal, ex-assessor judiciário de um dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, tecnólogo em Secretariado, bacharel em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, pós-graduando em Gestão de Segurança Pública, membro do Clube Metajurídico e autor de artigos jurídicos.

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