Opinião

Recente protagonismo do Common Law no Brasil e as mazelas do ativismo judicial

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7 de outubro de 2024, 15h21

A relação entre Justiça e Direito sempre foi um tema de que se ocuparam as mais brilhantes mentes que pensaram o Direito, como Aristóteles, Dworkin, Hart, Kelsen, Habermas e Miguel Reale.

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Curiosamente, também é o primeiro dilema que se põe diante do jovem estudante de Direito, mas que — mal sabe ele — o acompanhará durante toda sua carreira, até extinguir-se o curto pavio da vida e que ele durma o sono dos justos (será este o nome mais apropriado?).

Uma das poucas certezas que se pode extrair investigando essa inquietante conexão, é de que o Direito e Justiça não partilham necessariamente do mesmo “cômodo”. São ideias distintas entre si, mas que podem, casualmente, se encontrar.

Este artigo não tem a pretensão de discutir os conceitos de Direito e Justiça. Basta, por ora, algumas breves reflexões acerca das consequências práticas desta distinção, sob a perspectiva do sistema de precedentes e dos diálogos institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário.

Para esta tarefa, será necessário reavivar a memória dos dois grandes sistemas do Direito: o Civil Law e o Common Law.

Nos últimos anos, especialmente após o advento do Código de Processo Civil de 2015, temos observado uma aproximação cada vez maior do Brasil ao Common Law, que historicamente sempre adotou o Civil Law.

Retornando para as aulas de Introdução ao Estudo do Direito, acompanhados dos ilustres professores Miguel Reale e Paulo Nader, aprendemos que o Civil Law, com raízes no Direito Romano, é o sistema jurídico que prestigia o direito codificado, positivado, cuja principal fonte é a Lei.

A Common Law, a seu turno, tem sua origem no direito anglo-saxônico, no qual o direito se cria a partir das aplicações da lei ao caso concreto, fazendo com que a Jurisprudência construída seja a protagonista, isto é, a fonte primária do Direito. Nos países da Common Law, não há lei escrita; ou, se há, existem em um reduzidíssimo número (como é o caso dos EUA).

No Brasil, como é sabido, adotou-se originalmente o Civil Law: a profusão de legislações esparsas, códigos e o próprio número de artigos da Constituição Federal não deixam pairar dúvidas.

Porém, como dito, há uns bons anos o Brasil tem flertado — já às vias de fato — com o Common Law.

A priori, não há nada de errado nisto. É perfeitamente possível a coexistência entre os dois sistemas. Aliás, o caráter híbrido é uma tendência que temos observado especialmente nos países latinos nos recentes anos. E foi exatamente isto que pretendeu o legislador ao pensar o Código de Processo Civil.

Tudo bem

O legislador do CPC/15 não foi, nem de longe, o responsável pela “great openning” do Common Law no país. Há muito, já se observava a guinada sutil promovida pelos Tribunais Superiores em direção àquele sistema, além das tentativas legislativas engendradas no CPC/73, EC 03/93 e a EC 45/2004.

Atribuir-se-á ao CPC, portanto, apenas a convalidação deste sincretismo e a idealização de novos mecanismos para viabilizá-lo.

De qualquer maneira, o que ora se pretende é analisar a confluência desses dois grandes sistemas no ordenamento jurídico brasileiro e seus “efeitos colaterais”, sobretudo no que diz respeito ao tênue equilíbrio republicano de Montesquieu.

Como é de correntia sabença, o artigo 926, do CPC — fruto da persistente voz do professor Lenio Streck —, criou para os tribunais a incumbência de manter sua jurisprudência “estável, íntegra e coerente”, senão vejamos:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

A contínua aproximação do Brasil e o Common Law não aconteceu sem motivo. Fato é que o Brasil enxergou, naquele sistema, uma potencial solução de um dos seus problemas mais crônicos: a litigiosidade excessiva. Sem dúvidas, esse é o “bicho-papão” da atividade jurisdicional no Brasil.

Não à toa, o Brasil envida esforços em várias frentes para desconcentrar do Poder Judiciário a solução de litígios. Alguns mecanismos que podem ser citados são os tribunais administrativos, a exemplo do próprio Carf, os tribunais de arbitragem e a eficácia vinculante das decisões (como um parente mais próximo).

Sobre o tema, afirmam Leite e Feitosa que “o efeito vinculante tem por objetivo evitar que uma demanda judicial, cujo conteúdo substancial já tenha sido objeto de discussão e julgamento por parte do Judiciário, em várias outras demandas, seja novamente submetida ao mesmo órgão julgador”.

O efeito vinculante, portanto, busca eliminar as demandas repetitivas — sobre as quais o Tribunal já tenha se pronunciado — e conferir segurança jurídica às decisões. Na teoria, é tudo o que o Brasil precisa. Na prática, sua inserção no nosso sistema jurídico é recheada de desafios e, entre eles, está a busca pela correta dosagem de ativismo judicial.

Nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso (2012b, p. 371 apud Dias e Sá, 2020, p. 168), o ativismo judicial pode ser definido como “participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação nos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios”.

Nota-se, portanto, uma postura equilibrada por parte do ministro, que enxerga o ativismo judicial como um elemento importante para uma “democracia sólida”, mas que seu uso deve ser moderado, para garantir a interferência apenas em ocasiões não contempladas pela Lei ou pela Constituição, isto é, esquecida pelo Legislativo. (Barroso, 2012a, p. 27 apud DIAS e SÁ, 2020, p. 169)

No que podemos considerar um entendimento contrário ao do ministro e professor Pedro Fernández Sánchez, no XII Fórum de Lisboa, afirmou que “a inércia ou passividade de um órgão não implica a transferência de competências para outros órgãos (…) a separação de poderes não se altera perante a omissão de um poder”.

Ora, num ordenamento jurídico com raízes profundas no Civil Law, presume-se que o protagonismo pertence à lei. O precedente, em segundo plano, deve funcionar como um parâmetro a ser seguido, de forma a manter a integridade do entendimento do tribunal sobre determinado assunto. Isto é, o precedente deve estar de acordo com a lei,  que é a principal fonte do Direito naquele país, sob pena de torná-la letra morta e subverter todo um ordenamento jurídico.

Neste ponto, é importante ter em mente o seguinte: quando falamos de fonte do Direito, estamos falando da sua origem, de onde o Direito procede em determinada sociedade. Esta fonte é que servirá como o espelho da Justiça.

Recapitulando: no Civil Law, a lei é a principal fonte do Direito. Portanto, pertence a ela a presunção de Justiça.

Seguindo esta linha de raciocínio, o problema começa quando a interpretação da norma jurídica pelos Juízes ocupa os espaços destinados à lei — ou já ocupados por ela —, desrespeitando os critérios hermenêuticos pré-estabelecidos e, frequentemente, adotando uma visão consequencialista.

Nas palavras do professor Lenio Streck:

O problema é saltar de Séca à Meca. E intercalar posições tomadas ad hoc. Em uma democracia é desejável que se cumpram os limites semântico-hermenêuticos de um texto legal. Não posso invocar a literalidade quando me interessa; e tampouco devo ignorar os limites esses quando desgosto subjetivamente daquilo que também podemos chamar de significado convencional. O ponto: há que se ter coerência no tipo de abordagem interpretativa que define a concepção de direito que tem o intérprete. (grifo nosso)

Em suma, ao adotar o ativismo judicial como regra, usurpam para si a condição de paladinos da Justiça.

Isto, associado ao caráter imperativo da norma jurídica — cujo cumprimento é de rigor — pode trazer um desequilíbrio à relação entre os Poderes, criando atritos institucionais e fragilizando a democracia. Ora, o que acontece se dois macacos quiserem o mesmo galho?

Em termos mais claros, à medida que a decisão judicial ganha status de norma jurídica (tal como a lei), o magistrado toma para si os poderes que a lei traz consigo.

Nessa toada, relembra Modestino (apud Bobbio, 2003, p. 106), “legis virtus haec est imperare, vetare, permittere, punire [a essência da lei é esta: ordenar, vetar, permitir, punir]”.

Conforme lembrou muito providencialmente o professor Streck em artigo publicado nesta ConJur, “na democracia, voluntarismos e ativismos não contribuem para o bom e salutar funcionamento das instituições”.

Ao conferirmos ao magistrado essa autoridade como resultado da aplicação da lei ao caso concreto, temos de ter atenção à balança de poder que mantém a nação no eixo, sempre atentos à lição de Maquiavel no sentido de que “O poder é o pivô sobre o qual tudo gira. Quem tem o poder sempre tem razão; o mais fraco sempre está errado”.

O célebre Juiz da Suprema Corte norte-americana, John Marshal, no julgamento Osborn v. Bank of the United States, em 1824, em uma ferrenha crítica ao ativismo judicial, afirmou que “O Poder Judiciário nunca pode ser exercido com o propósito de dar efetividade à vontade do magistrado; (mas) sempre com a finalidade de realizar a vontade da legislatura, ou, em outras palavras, a vontade da lei”. (Guedes, 2012)

Se o juiz ou o tribunal, mediante a interpretação da norma legal, promove uma aplicação contra legem, ele está, indubitavelmente, avocando para si a função de ser o reflexo da Justiça, mesmo que inserido dentro de um sistema que atribui à Lei essa função.

A metonímia não pode passar desapercebida aqui: a Lei não nasce sozinha, ela é concebida nos plenários das Casas Legislativas, pelos representantes do povo, do qual emana todo o poder em um regime democrático (artigo 1º, parágrafo único, da CRFB).

Daí o questionamento do professor Streck: “pode uma lei legitimamente produzida pelo parlamento e que não seja inconstitucional não ser aplicada pelo Judiciário?”.

De um lado, temos representantes democraticamente eleitos pelo voto popular, exercendo a função legislativa de criar, alterar e extinguir leis. De outro, temos juízes de carreira, aprovados em concursos públicos, e tribunais cujos integrantes foram nomeados politicamente, sem qualquer participação popular. Em outras palavras, os Juízes carecem de legitimidade democrática.

Certa vez, em uma rara, mas consciente, afirmação da posição da sua classe perante a sociedade, o juiz Antonin Scalia, da Suprema Corte Americana, afirmou que “os juízes não têm ideia de qual é a vontade do povo. Nós trabalhamos em palácios de mármore”.

Veja, este artigo não tem o intuito de condenar pura e cegamento o ativismo judicial. Não há dúvidas de que é um mecanismo de extrema utilidade para garantir direitos fundamentais ante as — cada vez mais — aceleradas transformações sociais, algo impossível para o Legislativo ante a rigidez do Processo de criação de uma lei.

O problema reside na sua utilização desmedida, quando invade as atribuições do legislador positivo e assume feições políticas. Já em 2001, o ministro Celso de Mello, no julgamento da ADI 1.063/MC, alertou:

“ (…) a ação direta de inconstitucionalidade não pode ser utilizada com o objetivo de transformar o STF, indevidamente, em legislador positivo, eis que o poder de inovar o sistema normativo constitui função típica da instituição parlamentar.”

 

Portanto, o que se conclui é que a receita para o desastre é o emprego deste instituto sem antes ter uma cultura madura de precedentes, algo que o Brasil, nem de longe, possui.

Vale registrar episódio recentíssimo que agravou a crise institucional entre os Poderes da República: após o Supremo Tribunal Federal suspender o pagamento das emendas parlamentares mediante decisão monocrática do Min. Flavio Dino, o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), desarquivou alguns projetos de lei e emenda à Constituição que têm por objetivo limitar a atuação do Supremo Tribunal Federal, mediante justificativa de usurpação de competência do Legislativo.

Um destes projetos – ainda em tramitação na Câmara – é o PL n.º 4.754/2016, que inclui entre os crimes de responsabilidade para ministros do STF, a usurpação pelo Supremo das competências dos demais poderes. O Relator do Projeto, o Dep. Alfredo Gaspar (União-AL), ao justificar a necessidade de aprovação da lei, disse:

 

“O ativismo judicial manifestado pelo Poder Judiciário em período recente de nossa história tem levado o Supremo Tribunal Federal (STF) a ultrapassar os limites de suas atribuições constitucionais.”

 

Nesse ensejo, sem juízo de valor sobre as proposições legislativas em apreço, endosso as palavras do Desembargador Federal aposentado, o Exmo. Vladimir Passos Freitas, segundo o qual “ (…) o ativismo judicial pode e deve ser praticado. Porém, com maturidade, comedimento, em decisão bem refletida, fundamentada e que possa ser executada (…)”

Dito isto, a conclusão sumária sobre o tema é de que o ativismo judicial é um instrumento valioso na era em que vivemos, possibilitando a concretização de direitos fundamentais e sociais que foram abandonados pelo legislador; porém, é imprescindível que essa atuação seja comedida, tanto nos limites constitucionais quanto sociais, sempre evitando ruídos nas relações entre os Poderes, respeitando a vontade do legislador e, especialmente, buscando fortalecer o anêmico diálogo institucional no País.

 

REFERÊNCIAS:

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