Precisamos falar sobre as modulações (e seus critérios)
7 de outubro de 2024, 17h13
Um tema que tem intrigado os expectadores das decisões vinculantes dos tribunais superiores em matéria tributária, e guiado o comportamento de muitos contribuintes, é a modulação de efeitos de decisões, concretizada em julgamentos de processos representativos de controvérsias (repercussões gerais e ações constitucionais no STF; recursos repetitivos no STJ).
Embora a modulação estivesse presente no sistema judicial brasileiro desde o século passado, ela ficava restrita às ações julgadas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, o que reduzia a sua adoção e o debate sobre os seus critérios.
A modulação, no contexto das ações de controle concentrado, pode ser concretizada em benefício da segurança jurídica ou de excepcional interesse social: o STF pode restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e decidir que ela tenha eficácia somente a partir do trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado pela corte. Esse é o desenho normativo da modulação dos efeitos das decisões nas ações constitucionais.
Com o novo Código de Processo Civil de 2015, a modulação foi ampliada para as hipóteses de alteração de jurisprudência firme dos tribunais superiores ou de precedente vinculante em casos repetitivos.
Especialmente nos casos tributários, a modulação vem sendo amplamente utilizada pelos tribunais superiores, com diferentes parâmetros que impossibilitam que os contribuintes — e o próprio Estado — tenham previsibilidade dos critérios autorizadores da modulação, assim como dos marcos temporais utilizados.
Há dois aspectos que circundam o debate sobre as modulações que entendemos crucial avaliar. Um dos aspectos reside em verificar quais as circunstâncias que autorizam o julgador a modular os efeitos das decisões judiciais que, por particularidades processuais, reverberam para além das partes envolvidas no processo julgado. E, por certo, verificar se tais critérios estão presentes nos casos em que os tribunais superiores modularam os efeitos das decisões judiciais.
Não menos relevante, é necessário verificar também os recortes temporais que vêm sendo adotados para a modulação quando esta é aplicável, pois tais recortes, ao final, decretarão quem poderá recuperar tributos indevidamente pagos, ou escapar da cobrança de tributos indevidos.
Esse primeiro estudo sobre o tema se debruçará na análise dos critérios temporais que vêm sendo utilizados em decisões de modulação — e, num segundo momento, enfrentaremos o debate sobre os critérios autorizadores da própria modulação.
Recortes temporais adotados
A modulação, quando há julgamento pela inviabilidade da exigência fiscal, vem sendo utilizada para fazer um recorte temporal para efeito da decretação de irregularidade tributária, trazendo dois marcos. O primeiro deles é a partir de qual momento a exigência será afastada em caráter geral, ou seja, para todos os contribuintes.
Os critérios considerados para tal marco temporal variam substancialmente: há situações, por exemplo, em que o recorte adotado pelo STF foi a alteração do plano plurianual orçamentário (STF, RE 714.139/SC, que discutia a limitação das alíquotas do ICMS para operações de bens e serviços essenciais).
Nesse caso, o tribunal validou a exigência inconstitucional de ICMS após a data do julgamento, de modo a acomodar o orçamento plurianual dos Estados. Com isso, preservou o que já estava programado e permitiu que as novas diretrizes acomodassem os efeitos arrecadatórios do julgamento.
Em outras ocasiões, o mesmo STF considerou a data do julgamento de mérito (STF, RE 574.706, a tese do século), ou mesmo a data da publicação da ata de julgamento (por exemplo, critério adotado no RE 1.063.187/SC pelo STF), para decretar o momento a partir do qual a inconstitucionalidade produziria efeitos gerais.
Esse recorte temporal para afastamento da norma tida por inconstitucional é no mínimo curioso, sobretudo se considerarmos a notória demora dos tribunais judiciários a definir os leading cases, o que acaba perpetuando e validando cobranças irregulares por anos — ou mesmo décadas.
Note-se — o que abordaremos na sequência desse estudo — que a modulação vem sendo utilizada para os casos em que as exigências fiscais são consideradas irregulares, ou seja, para guiar situações em que os contribuintes pagaram tributos indevidamente.
Tal sistemática pode incentivar o legislador a prever exigências fiscais descabidas, o que Ricardo Lobo Torres chama de “inconstitucionalidade útil”, [1] pois, ainda que haja afastamento da cobrança pelo judiciário, é preservada a arrecadação — até mesmo a perpetrada após decisão judicial consignando a irregularidade da exigência fiscal.
Necessários ajustes fiscais podem vir por normas sabidamente irregulares, com vistas a permitir um imediato efeito arrecadatório, pois as expectativas de que essa norma seja expurgada do ordenamento não afasta a estabilidade de relevante parcela do produto da arrecadação.
No entanto, na perspectiva do poder público, permitir que todos os contribuintes, irrestritamente, sejam legitimados a reaver valores indevidamente pagos em decorrência de decisão judicial que extirpe norma do sistema, seria temerário e penoso ao orçamento e, consequentemente, ao Estado (afinal, a arrecadação tributária é fundamental ao funcionamento e sustento da máquina estatal).
Assim, limitar temporalmente os efeitos do reconhecimento da inviabilidade da arrecadação, embora questionável na perspectiva da validação da lei irregular, é fundamental se considerada a necessária segurança jurídica orçamentária.
Afinal, a tributação deve atender aos patamares hoje expressos na Constituição, que determina que o sistema tributário deve prezar pela transparência, simplicidade e cooperação, e os tribunais superiores, enquanto agentes máximos na interpretação das normas tributárias, devem observar tais diretrizes. [2] Mas a validade desse aspecto como propulsor da modulação é algo que analisaremos em outra oportunidade.
Nesse contexto, seria deveras salutar que houvesse um critério minimamente definido e determinado para fins de recortes temporais na modulação dos efeitos de decisões judiciais vinculantes, de modo a imprimir segurança ao sistema – afinal, esse é justamente o propósito da modulação.
Situações preservadas: loteria ou segurança?
Além de limitar temporalmente o momento a partir do qual a exigência fiscal será afastada pela decisão judicial que deslegitima a exigência tributária de maneira geral, a modulação traz ressalva à regra para contribuintes que se encontrem em situações particulares.
No entanto, também aqui os critérios são diversificados e consideram aspectos que, literalmente, podem inserir os contribuintes numa loteria.
Nesse aspecto, contribuintes que ajuizaram suas ações individuais para questionar a cobrança objeto da decisão vinculante serão preservados da regra geral a partir da data do ajuizamento das suas ações.
Em alguns casos, foram ressalvados da regra geral aqueles que até a data de publicação da ata de julgamento (STF, ADC 49) já haviam iniciado a discussão individual. Diversamente, esse recorte pode se dar de modo a considerar ações iniciadas até a data do início do julgamento do caso representativo de controvérsia (STF, Tema 962, RE 1.063.187, caso em que a modulação foi definida em 29/4/2022, tendo preservado ações iniciadas antes de 17/9/2021).
Sem sombra de dúvidas, esse recorte acaba por incentivar o ajuizamento de ações individuais, assoberbando ainda mais o Judiciário e criando uma corrida generalizada aos distribuidores quando da movimentação dos leading cases. Afinal, quem não tiver ação própria iniciada até a data a ser considerada pelos tribunais será impedido de recuperar tributos que forem reputados indevidamente pagos.
O STJ, nesse aspecto, lançou uma modulação que traz ainda mais insegurança e, indubitavelmente, viola a simplicidade e a cooperação que norteiam o sistema tributário brasileiro: somente farão jus à recuperação de valores indevidamente pagos os contribuintes que possuíam decisão judicial favorável na data de recorte adotada. Essa postura foi adotada tanto no julgamento da legalidade do Tust/Tusd na base do ICMS (Tema 986) quanto na discussão sobre a limitação de 20 salários mínimos para contribuição previdenciária arrecadada por terceiros (Tema 1.079).
Ora, não bastasse o próprio judiciário incentivar o ajuizamento de ações individuais, a recuperação de tributos indevidamente pagos dependerá da existência de decisão favorável na data considerada como marco temporal.
O que ainda está por vir
Está claro que o ajuizamento de medidas judiciais pelos contribuintes vem sendo incentivado pelos recortes e critérios de modulação de efeitos realizados pelos tribunais superiores. Afinal, aqueles que não discutem a matéria em ação própria ajuizada com certa antecedência, ou mesmo aqueles que as tenham iniciado mas não foram agraciados pela loteria judicial com uma decisão favorável, serão tolhidos de reaver tributos reconhecida e irregularmente arrecadados.
Nos debates entre ministros de tribunais superiores, fica clara a intenção de preservar o direito daqueles que optaram por resguardar seus direitos com o manejo de ações individuais frente àqueles que sequer buscaram tutela jurisdicional, sobretudo pela inafastabilidade da jurisdição constitucionalmente garantida.
Essa postura, sem dúvidas, incentiva a judicialização. Mas, assim como para segurança do orçamento é importante que haja um recorte temporal dos efeitos da decisão que expurga a exigência fiscal, para a segurança dos contribuintes é importante que o sistema preserve os direitos daqueles que ativamente iniciaram suas medidas individuais.
Nesse aspecto, vale mencionar o aparte da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional realizado em sessão de julgamento do Pleno do STF, havida no dia 12/6/2024. O procurador que sustentou na tribuna, durante os debates sobre a modulação da decisão proferida no caso, sugeriu que o recorte de ressalva dos efeitos gerais da modulação considerasse apenas contribuintes que tivessem ajuizado suas medidas anteriormente à afetação do tema, pois o reconhecimento de que haveria um julgamento representativo pelo STF incentivaria de maneira relevante novos ajuizamentos. O STF deliberava, na ocasião, sobre a modulação do caso que tratava do terço constitucional de férias (RE 1.072.485, Tema 985).
A afetação de uma discussão pelos tribunais superiores, na prática, indica que (i) haverá um caso vinculante aos demais a ser analisado pelo tribunal superior e, inevitavelmente, (ii) que poderá haver modulação dos efeitos da decisão judicial a ser proferida. E justamente ao assim indicar, incentiva mais e mais indivíduos a buscar tutela jurisdicional.
A proposta da PGFN parece desconsiderar que, ao modular os efeitos da decisão que reconhece a irregularidade da exigência tributária, o tribunal superior valida temporalmente a arrecadação inconstitucional. E nesse contexto, preservar de maneira razoável os contribuintes que iniciaram suas discussões sem que houvesse mais um elemento surpresa nessa equação é uma contrapartida importante para a validação da arrecadação inconstitucional ou ilegal.
Afinal, a afetação de um tema pode ocorrer sem que haja prévia divulgação ou mesmo expectativa, o que criaria uma nova loteria na já penosa rotina dos contribuintes brasileiros. Teríamos a loteria do distribuidor forense e a loteria da afetação.
Segurança jurídica e critérios para a modulação de efeitos
Não parece haver margem para questionar o fato de que a segurança jurídica é um princípio da atividade financeira do Estado. O princípio da segurança jurídica não protege apenas o contribuinte contra cobranças indevidas, ele demanda um ambiente de previsibilidade e estabilidade orçamentária.[3]
Em se tratando de modulação de efeitos de decisões tributárias, mormente nas situações em que se expurga a validade da existência fiscal e as pressões orçamentárias por receitas são inegáveis, é importante que não se perca de vista que, por mais que a arrecadação tributária seja relevante para a sociedade, ela não pode ser realizada mediante o sacrifício da legalidade e da capacidade contributiva.
Para tanto, critérios objetivos são necessários e recomendáveis. Se vai haver limitação temporal dos efeitos da decisão que expurga a norma jurídica instituidora do tributo, que ela siga um parâmetro conhecido. Seja a data do julgamento, a data da publicação da ata de julgamento ou da publicação do acórdão.
Também no tocante às situações em que preservado o direito do contribuinte que litigava pela inviabilidade da exigência fiscal, o recorte temporal para preservar os direitos daqueles que possuíam suas disputas administrativas e/ou judiciais deve ser conhecido e seguir um parâmetro previsível.
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[1] TORRES, Ricardo Lobo. O Consequencialismo e a Modulação dos Efeitos das Decisões do Supremo Tribunal Federal. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 24, 2010, p. 456.
[2] Sobre o tema, ver: GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Vetores do Sistema Tributário Nacional após a EC n. 132. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 56, 2024, p. 752-780.
[3] Cf. ROCHA, Sergio André. Tributação, finanças públicas e desenvolvimento (Ensaios). Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023. p. 166-171.
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