Opinião

PL 226/24: suposto antídoto à impunidade e seus sintomas no processo penal

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7 de outubro de 2024, 20h37

No último dia 14 de agosto, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei 226/2024 [1], que visa estabelecer novos critérios à decretação de prisões preventivas. E isto porque, há uma — equivocada — presunção de que a legislação vigente está a permitir que, quando da audiência de custódia de presos em flagrante, juízes relaxem prisões ou liberem “criminosos”, havendo, por conseguinte, controvérsias quanto à aferição da periculosidade destes indivíduos.

Luiz Silveira/Agência CNJ

Além disso, dentre as alterações propostas, também causa espécie e se traz à lume a seguinte ponderação: se antes as prisões preventivas se protraíam no tempo de maneira ilegal, como se bem sabe, agora a redação em análise confere legitimidade para que as prisões preventivas perdurem sem prazo final, novidade que, inegavelmente, traz prejuízos às defesas de acusados que aguardam encarcerados, por anos, o moroso julgamento de seus processos.

Atualmente, o Código de Processo Penal estabelece, enquanto requisitos rígidos, seja a prisão preventiva decretada quando houver indícios suficientes de autoria e materialidade do crime, possibilidade de fuga do réu ou investigado, ou ainda que este venha a perturbar a ordem pública, atrapalhar a investigação ou dificultar execução de eventual pena. Também é passível de decretação quando se verificar que outras medidas cautelares menos gravosas forem insuficientes.

Este o cenário, abre-se um breve parênteses para se colocar que o excesso de prazo da prisão preventiva não é incomum. Aliás, ao revés, é hipótese bastante corriqueira e que dialoga com a realidade do sistema carcerário brasileiro, ao que resta caracterizado, no linguajar criminal, o famigerado “constrangimento ilegal”.

Tal constrangimento é aferível mediante critérios de adequação e razoabilidade no exame da ocorrência, devendo-se observar a garantia da duração razoável do processo, prevista no art. 5º, LXXVIII, da Constituição [2]. Ainda assim, perante os Tribunais Superiores, essa noção de “tempo suficiente” oscila, havendo casos em que 1 ano e 5 meses fora considerado tempo hábil a configurar o constrangimento [3] — em que pese a gravidade do delito —, bem como outros em que 1 ano e 4 meses o afastaram [4].

Isto é, sem contar uma série de outras barreiras técnicas que, muitas vezes, impedem a apreciação do pleito por estes tribunais. A título meramente exemplificativo, é de ressaltar um caso que tramitou no STF, de 9 anos de prisão preventiva, que não fora examinada em razão de mera supressão de instância [5].

Ou seja: os parâmetros são ainda incertos, sendo fonte nutritiva para um grave cenário de insegurança jurídica.

De toda sorte, com o advento da Lei 13.964/19, intitulado “Pacote Anticrime”, em uma tentativa de remediar os excessos identificados em tantos casos, passou-se então a exigir a revisão, a cada 90 dias, da necessidade de manutenção de prisão preventiva decretada, sob pena de tornar a prisão ilegal, nos exatos termos do art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal.

Daí exsurge mais uma indagação: diante da possibilidade de perdurar a mencionada medida cautelar sem prazo final, como seria tratada essa garantia imposta pelo Pacote Anticrime? Em rota de colisão — vez que tais leis possuem a mesma estatura infraconstitucional — parece-nos ter havido um descuido na propositura do PL 226/2024.

Pois bem. Retomando ao cerne da questão — leia-se, os critérios à decretação da prisão preventiva — a legislação vigente exige que o crime seja doloso e punível com pena privativa de liberdade superior a quatro anos, ou, ainda, tratar-se de hipótese de reincidência, ter sido praticado no âmbito de violência doméstica contra a mulher, idoso, criança ou pessoa com deficiência ou, também, quando houver dúvida sobre a identidade civil do suspeito.

Bem por isso, a decisão que castra a liberdade — de quem quer que seja — deve ser minuciosamente motivada e fundamentada[6]. Ou, melhor dizendo, a decretação da prisão preventiva deve ser totalmente necessária, proporcional e adequada à situação concreta, sob pena de nulidade, já que nossa legislação enxerga a liberdade como regra, sendo a prisão uma exceção. É tudo o que preceituam os artigos 311 a 316 do respectivo códex.

Agora, adentrando às recomendações para a conversão (imediata) da prisão em flagrante para preventiva, o texto sob análise entende que devem ser observados pelo juiz da causa, os seguintes critérios:

i) o modus operandi do crime, inclusive no tocante ao uso reiterado de violência ou grave ameaça à pessoa, ou quanto à premeditação do agente para a prática delituosa;
ii) a participação em organização criminosa;
iii) a natureza, quantidade e variedade de drogas, armas ou munições apreendidas; e
iv) o fundado receio de reiteração delitiva, a considerar a existência de outras investigações em curso — o que, aliás, configura manifesta afronta à vedação à decretação com alicerce na mera gravidade do crime em abstrato e presunções genéricas, bem como à presunção de inocência, qualquer que seja ela.

Com efeito, aflige o uso da audiência de custódia fora de seu escopo de criação e os seus efeitos deletérios, tal qual vem ocorrendo. Até porque, este ato processual fora cogitado e implementado como uma medida de proteção dos direitos humanos dos presos, em adequação aos tratados internacionais, e especificamente para analisar a legalidade da prisão em flagrante.

A nosso ver, a novatio legis pretende oferecer um atributo ao juiz da custódia como se fosse juiz da causa, tendo em vista que, apenas com os elementos trazidos pelo flagrante, na absoluta maioria das vezes, não é possível analisar e denotar, no fato concreto, todas as diretrizes trazidas pelo PL (como, por exemplo, se o custodiado é membro de organização criminosa).

Isto posto, tão logo se vê que as consequências de tais inovações podem ser verdadeiramente nefastas, sobretudo em razão da possibilidade de a prisão preventiva ser efetivada em prazo indefinido, conforme já exposto alhures. Por isso é que se diz: seria cômico se não fosse trágico, na medida em que hoje o Brasil é um dos países que apresenta maior número de população carcerária[7], ao que se estima que a maior parte está sob prisão preventiva (sem condenação ou trânsito em julgado).

Contudo, há mais. Nessa rota de externar preocupações, é salutar que o senador Sérgio Moro, responsável por relatar o projeto, decidiu acolher a sugestão [8] e incluiu um dispositivo que permitirá a coleta de material biológico de presos em flagrante para a criação de um “banco de perfis genéticos[9].

Neste caso, o Ministério Público e a autoridade policial poderão solicitar à Justiça a coleta do material, durante as audiências de custódia, para presos em flagrante por crimes praticados com violência ou grave ameaça, crimes sexuais e participação em organização criminosa.

Segundo Moro — na capciosa tentativa de justificar o injustificável —, o dispositivo encontra respaldo na opinião de que “a identificação genética tem grande potencial para redução da reiteração delitiva, já que alguém que, preso em flagrante, tenha o perfil genético extraído pelo Estado terá naturais receios de cometer novas infrações penais já que será mais facilmente identificado a partir de vestígios deixados no local do crime”.

Assim, a partir de tal vértice de análise, emerge nítida uma conclusão axiomática: toda ruptura é uma continuidade. Explica-se, a seguir.

Já dizia o criminólogo e médico psiquiatra Cesare Lombroso [10] que na sociedade haviam criminosos natos (atávicos). Em apertada síntese, noutros termos é dizer: a partir do estudo das características morfológicas — isto é, da medida exacerbada do crânio e mandíbulas volumosas, assimetria facial, ausência de pelos corporais e parâmetros de insensibilidade à dores, entre outras características — restava claro o estigma da criminalidade e o perfil do homem delinquente, aquele que é um “subtipo” humano distinto dos demais. Pasmem-se, este era o ano de 1876.

Aos defensores dessa dogmática, a pena, enquanto resposta punitiva estatal, não bastava. A capacidade humana desses indivíduos estava fadada ao insucesso, pois eram criminosos desde o seu nascimento. A única saída, portanto, era segregá-los e excluí-los daquela sociedade.

Já no século seguinte, um certo sujeito decidiu que havia uma raça pura — intocável, quase como um produto divino —, e aqueles que eram restos, obscenos e descartáveis. A sua conduta, enquanto líder, como se bem sabe, fora responsável pelo extermínio de aproximadamente 6 milhões de pessoas, e suas sequelas, a propósito, são ainda tão vívidas.

Em nosso entendimento, ambos os posicionamentos acima referendados são tão démodés, para se dizer o mínimo, mas, por vezes, é necessário dizer o óbvio.

Como se bem sabe, existe em nosso ordenamento jurídico o princípio do nemo tenetur se detegere, traduzido no direito de não produzir prova contra si mesmo, cuja previsão encontra guarida no art. 155 do CPP.

Tal princípio, enquanto direito fundamental, “objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem contra métodos proibidos de interrogatório, sugestões e dissimulações[11]. Trata-se, pois, de uma garantia à liberdade do indivíduo, oponível ao Estado.

Estabelecida tal premissa, verifica-se que essa forma de colheita proposta pelo PL 226/24 fere de morte o referido princípio, haja vista que estar-se-á antecedendo uma produção probatória que sequer cabível, afora a mancha sobre a áurea destes indivíduos que se colocará, ad eternum.

E, já aos ‘finalmentes’, note-se que cá estamos, mais um século à frente, com uma série de questionamentos cujas respostas ainda nos parecem tão remotas e inatingíveis: até quando há de se permitir o sopesamento de valores quando da defesa de direitos e garantias fundamentais? E o abandono da legalidade à luz do critério da conveniência? Há efetividade no primado do in dubio pro reo ou é ele mera fachada para, quem sabe, acalmarem-se os nervos? Por que caminhamos em direção a um esvaziamento de leis ou, alternativamente, a leis que retrocedem direitos?

Uma coisa, no entanto, é certa: vivemos em um momento em que a antinomia entre normas morais e normas jurídicas alavanca quereres agonísticos e desumanos, os quais põe em xeque os princípios norteadores do estado democrático social brasileiro e aqueles consagrados pela Constituição de 1988.

Afinal, os próprios livros da história pátria revelam que não foram poucos os episódios em que membros dos três poderes fomentaram discussões perturbadoras da democracia e foram coadjuvantes quando da violação de direitos, “não só por proferirem decisões contrárias às regras e aos princípios democráticos como também por omissões[12], conforme brilhantemente exposto por Juarez Tavares e Rubens Casara.

À vista disso, impõe-se a vedação ao retrocesso, responsável por condenar atos que tendem a retroceder ou revogar direitos sociais já conquistados pela legislação ou jurisprudência, especialmente no campo dos direitos fundamentais. Daí porque nos cabe tecer severas críticas ao PL 226/2024, ante o perigo de se transformar, através da própria novatio legis, a prisão preventiva como prisão pena, recordando, oportunamente, que a segregação cautelar é, e sempre será, a ultima ratio.

De toda sorte, o desfecho do quanto exposto pende de resultado, pois o PL 226/2024 será discutido no plenário principal do Senado. E, assim sendo, de acordo com o ditado popular brasileiro: aguardemos as cenas dos próximos capítulos, esperando que o desfecho não desordene a nossa já bagunçada aplicação e eficácia jurídica. Ou, ainda pior, que não seja a causa de outros tantos novos erros judiciários, que já tanto assolam a nossa sociedade.

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[1] Texto inicial disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161996;

A matéria fora originalmente proposta por Flávio Dino, atual ministro do Supremo Tribunal Federal, durante o período em que exercia o mandato de senador;

[2] Disposição acrescida pela Emenda Constitucional n. 45 /2004;

[3] STJ, AgRg no RHC nº 134.846, Min. Rel. Olindo Menezes (Des. Convocado do TRF1), Sexta Turma, j. em 15/06/2021;

[4] STF, HC nº 235.334 SP, Min. Rel. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 26/02/2024;

[5] STF, AgR HC nº 155.848, Min(a). Rel(a). Carmén Lúcia, Segunda Turma, DJe 25/11/2019;

[6] Neste sentido: “Desse modo, atesto que, de um modo geral, a prisão preventiva deve indicar, de forma expressa, os seguintes fundamentos para a sua decretação, nos termos do art. 312 do CPP: i) garantia da ordem pública; ii) garantia da ordem econômica; iii) garantia da aplicação da lei penal; e iv) conveniência da instrução criminal. Na linha da jurisprudência deste Tribunal, porém, não basta a mera explicitação textual dos requisitos previstos, sendo necessário que a alegação abstrata ceda à demonstração concreta e firme de que tais condições realizam-se na espécie. Dessarte, a tarefa de interpretação constitucional para a análise de uma excepcional situação jurídica de constrição da liberdade dos cidadãos exige que a alusão a esses aspectos esteja lastreada em elementos concretos, devidamente explicitados” (Trecho do voto proferido no julgamento do HC 106.546 / SP – Min. Gilmar Mendes);

[7] Para mais informações, consulte: https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-lanca-levantamento-de-informacoes-penitenciarias-referentes-ao-segundo-semestre-de-2023; https://www.politize.com.br/populacao-carceraria-brasileira/;

[8] Dentre elas, também anuiu à recomendação do Procurador Geral da República, Paulo Gonet, de se flexibilizarem os critérios elencados pelo texto legal, sendo, pois, alternativos ao invés de cumulativos, o que implica que basta que o detido se enquadre em um dos aspectos estabelecidos para que sua prisão preventiva seja decretada;

[9] Registre-se, oportunamente, que o senador Fabiano Contarato (PT-ES) emitiu posicionamento contrário à tal previsão, entendendo ser hipótese gravíssima e que dá margem a uma série de arbitrariedades e ilegalidades que afrontam a Carta Magna;

[10] Teoria também encabeçada e professada por Enrico Ferri e Raffaele Garófalo;

[11] QUEJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. – 2. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 77;

[12] Prova e Verdade / Juarez Tavares; Rubens Casara. 1. ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020;

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