Opinião

Os 40 anos da Convenção contra a Tortura

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

    View all posts

7 de outubro de 2024, 7h08

Em dezembro de 1984, a Assembleia Geral das Nações Unidas finalizou um tratado internacional que detalhava juridicamente o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. A Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ou simplesmente Convenção contra a Tortura (CAT), celebra em 2024 seus 40 anos de adoção, embora a ideia de inadmissibilidade da tortura como uma política de Estado, seja ela num conflito ou não, seja bem mais antiga.

ONU

Aplicada internacionalmente por tribunais internacionais e também no interior dos ordenamentos domésticos dos estados, os muitos méritos da convenção se multiplicam enquanto vetor valorativo de uma comunidade internacional que reconhece a proibição da tortura como uma norma peremptória, hierarquicamente superior, e portanto, dotada de status particular no panteão das grandes convenções.

O propósito do presente ensaio é refletir, passados 40 anos de sua adoção, sobre a importância da Convenção contra a Tortura na atualidade, tanto em relação ao seu uso no direito internacional quanto no Brasil. Por fim, algumas considerações sobre as possibilidades do uso da Convenção no contencioso internacional, em especial à luz do caso invocado contra a Síria, levado à Corte da Haia por Canadá e Países Baixos.

Standards da convenção e de seu comitê

A Convenção contra a Tortura é um instrumento jurídico internacional dotado de grandes implicações. Seus 40 anos de existência, interpretação e aplicação pelos Estados representaram um profundo avanço no combate a essa prática. Três elementos merecem ser sublinhados como grandes méritos da Convenção:

  • (a) sua capacidade de estabelecer um conjunto de valores e conceitos comumente partilhados pela comunidade internacional em diálogo com os sistemas jurídicos nacionais;
  • (b) a criação de um mecanismo de supervisão complexo através de seu Comitê contra a Tortura (CoAT), que permite o esclarecimento dos direitos humanos envolvidos e;
  • (c) o estabelecimento de uma pedra fundamental de um diálogo transnacional de noções protetivas que servem não apenas para coibir e punir a tortura, mas também para aperfeiçoar a proteção de direitos humanos.

Quanto ao primeiro elemento, talvez o mérito inegável da Convenção seja o de oferecer uma definição de tortura partilhada por mais de 173 Estados. Quando define em seu artigo 1º que tortura é “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa”, a Convenção traça uma definição suficientemente ampla que é caracterizada pela finalidade da tortura, qual seja “obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza”.

A definição vai além para estabelecer que tais dores e sofrimentos não prescindem do elemento público, ou seja, por ato direto ou com instigação, consentimento ou aquiescência de uma pessoa no exercício de funções públicas, por ação ou omissão.

Tal definição inspirou a redação do artigo 1º da Lei nº 9.455 de 1997 sobre o crime de tortura no Brasil, bem como a legislação de tortura em outros países. Contudo, sua virtude é ser uma definição muito específica que cobre uma miríade de situações e de intenções, muitas vezes servindo de paralelo para comparação de tal lei ao standard internacional.

Por exemplo, a Lei 9.455 não prevê expressamente atos de tortura cometidos com o objetivo de intimidar ou coagir uma pessoa, ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza. Tais situações de discrepância naturalmente podem gerar impunidade e responsabilidade internacional do Estado na aplicação da Convenção.

Spacca

Mas não somente na definição de tortura reside o mérito da convenção. Tantos outros artigos estabelecem obrigações específicas em relação à conduta de tortura. Em primeiro lugar, ela é uma convenção que impõe uma série de obrigações aos rstados no sentido de adaptar seus ordenamentos para combater e punir a tortura. Tal obrigação implica outras obrigações.

Por exemplo, nenhuma declaração que se demonstre ter sido prestada como resultado de tortura pode ser invocada como prova em qualquer processo. Em relação à jurisdição do estado, a convenção cria uma competência quase universal para punição da tortura em seus Artigos 5º e 6º para os estados parte.

Ademais, a convenção proíbe que a expulsão, devolução ou extradição de uma pessoa para outro Estado quando houver razões substanciais para crer que a mesma corre perigo de ali ser submetida a tortura. De igual importância, a convenção estabelece claramente o direito à reparação e indenização nos casos de tortura. Como se nota, a convenção vai muito além da definição, estabelecendo claras obrigações materiais e processuais para o combate à tortura por seus membros.

O segundo grande mérito da convenção é a criação de um órgão quasi-judicial de monitoramento, o Comitê contra a Tortura. Composto de dez membros, esse Comitê da ONU tem diversas funções, dentre elas a de revisar a implementação da convenção nos estados analisando a legislação nacional e as situações de fato.

O comitê também pode receber denúncias individuais de casos de violação quando as instâncias domésticas não forem suficientes para resolver e reparar o crime em questão. Como órgão de interpretação da convenção, o Comitê contra a Tortura trabalha há quase 40 anos recebendo relatórios e analisando casos individuais e oferecendo interpretações importantes sobre a aplicação da convenção e, principalmente, para sua aplicação pelos rstados-membros.

Vez que não é o único documento internacional que proíbe a tortura (pense-se, para citar apenas um exemplo, na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985), a Convenção contra a Tortura e o CAT estão no centro de um importante diálogo de órgãos internacionais que devem interpretar o significado de tortura e as múltiplas variantes de sua ocorrência.

Da Corte Europeia de Direitos Humanos à Corte Interamericana, a Convenção contra a Tortura e o CAT são frequentemente citados autoritativamente no que se refere às obrigações estatais. Essa ampla gama de práticas, de casos, de confirmações sobre seu conteúdo valorativo explicam a razão pela qual a Corte Internacional de Justiça observou em 2012 que “a proibição da tortura faz parte do direito internacional consuetudinário e se tornou uma norma peremptória (jus cogens)”.

Aplicação no Brasil

Incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 1991, a Convenção contra a Tortura goza de caráter supralegal em virtude de sua vocação de caráter protetor de direitos humanos. Ela dialoga com disposições constitucionais como o artigo 5º, III, podendo inclusive servir ao intérprete constitucional para delimitar os contornos e conteúdo desse direito fundamental.

Nas últimas observações que fez sobre o Brasil, de junho de 2023, o Comitê contra a Tortura tomou nota de uma série de avanços legislativos e de políticas públicas adotadas em nosso país relativos ao combate à tortura, também em virtude de sua participação na Convenção e no Comitê.

Contudo, subsistem alguns pontos de preocupação para o Comitê, que fez recomendações específicas ao país para sua adequação aos standards internacionais. Por exemplo, o fato de que a legislação brasileira permite a prescrição do crime de tortura, a inobservância de algumas garantias processuais em casos de tortura, o eventual uso de confissões oriundos de tortura e as constantes alegações de maus-tratos nos sistemas prisionais.

Sobre esse ponto, o Comitê observou que “continua profundamente preocupado com os relatos de superlotação na grande maioria das prisões do [Brasil] e com a taxa geral muito alta de encarceramento, inclusive em prisão preventiva, por delitos relacionados a drogas, em particular de jovens afro-brasileiros de ambos os sexos”. O Estado brasileiro respondeu a essas observações e parece, no momento atual, muito mais interessado em dialogar com o comitê e aprimorar sua observância da convenção.

No que se refere ao uso da Convenção por parte do judiciário brasileiro, em especial pelas supremas cortes, é notório o crescimento de referências à convenção em determinados casos exatamente para combater, pontualmente, algumas situações narradas no relatório do comitê. São casos tanto de extradição ou mesmo de habeas corpus concedidos quando ocorre violações da Convenção da Tortura e de outras convenções internacionais que prescrevem obrigações similares.

Nos casos de extradição, parece haver no STF uma tendência a considerar prescritos crimes de tortura para fins de extradição — o que contrariaria a convenção. Nos casos de tortura, nota-se, que muitas vezes os julgadores acabam utilizando o artigo 5º, III com mais frequência do que a convenção em si.

Esta acaba emergindo nos votos muitas vezes como um argumento adicional com o intuito de confirmar a interpretação do julgador do artigo 5º — e isso não é um problema, necessariamente. Se as obrigações internacionais que o Estado possui estão sendo respeitadas, importa pouco a fonte do argumento utilizada pelo administrador da justiça e, por consequência, do órgão estatal que aplica ou deveria aplicar a convenção.

Caso Canadá e Países Baixos v. Síria

Estados usam de forma cada vez mais frequente convenções internacionais para exigir o cumprimento de determinadas obrigações por outros Estados perante tribunais internacionais. Tal política do uso estratégico de instrumentos de direitos humanos não é nova no cenário internacional.

Em 2012, a Corte Internacional de Justiça foi acessada pela Bélgica para exigir do Senegal o cumprimento de suas obrigações de extradição ou punição no âmbito da Convenção da Tortura em relação ao ex-presidente do Senegal Hissène Habré por atos de tortura cometidos durante seu governo. A decisão foi fundamental para a condução do julgamento de Habré no próprio Senegal por tortura e crimes sexuais, pelos quais foi condenado.

Em junho de 2023, Canadá e Países Baixos conjuntamente, com base na Convenção de Tortura, foram à Corte Internacional de Justiça exigir a condenação da Síria por uma série de violações da Convenção, especialmente sob o governo de Bashar Al-Assad. Em sua decisão em medidas cautelares de novembro de 2023, a Corte entendeu que existia um risco de danos irreparáveis aos direitos protegidos pela Convenção, ordenando a Síria que se abstivesse de qualquer violação da Convenção. O futuro desse processo, bem como a discussão das provas trazidas à Corte, provará se a Convenção foi ou não violada e, em caso positivo, quais reparações serão devidas.

O uso estratégico de instrumentos de direitos humanos na Corte Internacional de Justiça em tempos recentes demonstra uma nova dimensão da importância da Convenção contra a Tortura, que é seu uso por Estados que possuem compromissos com o respeito da convenção exigir que outros membros também a respeitem. Obviamente problemas podem emergir nesses atos, mas demonstra sobretudo uma nova dimensão da importância da convenção nas relações internacionais.

Para uma convenção de 40 anos, é difícil afirmar que tenha envelhecido mal. O que causa consternação é que, mesmo depois de 40 anos de sua adoção, a convenção possa continuar sendo violada por práticas consideradas como crimes internacionais. Reafirmar e compreender a importância da Convenção, de seus órgãos, e de seus efeitos nos ordenamentos internos é o mínimo que se pode fazer quando um instrumento do gênero chega a tal idade.

Autores

  • é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais, organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!