Opinião

Relativização da impenhorabilidade do bem de família: imóvel avaliado em alto valor

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6 de outubro de 2024, 6h07

O artigo em questão aborda problemática atual no contexto jurídico brasileiro, disciplinada pelo Código de Processo Civil, tendo como foco principal averiguar a possibilidade de flexibilizar a proteção da impenhorabilidade, inicialmente conferida ao bem de família nos processos de execução, em específico, nos casos que o imóvel for avaliado em alto valor.

Erika Wittlieb/Pixabay

No que diz respeito à finalidade da propriedade, inclui-se também sua função como sendo a moradia da família do proprietário, devendo esta ser protegida mediante comprovação dos critérios, que geralmente se resumem à demonstração de que o bem é utilizado como moradia do ente familiar, em conformidade com os princípios dos direitos fundamentais constitucionais.

O denominado bem de família se trata do imóvel que é utilizado para moradia de um ente familiar, tendo este uma proteção exclusiva e prevista em lei específica, com igualmente é mencionado no Código Civil e na própria Constituição.

A proteção ao bem de família ocorre para que, uma vez designado e comprovado como tal, o imóvel não possa mais ser vendido sem o consentimento dos membros da família ou de seus representantes legais. Consequentemente, isso também impede que o imóvel seja alvo de penhora em processos de execução de dívidas do proprietário.

Fundamentalmente, a interpretação hermenêutica da Lei 8.009/1990, que estabelece o bem de família, é privar a família do devedor de um mínimo necessário para sua existência, quando este passa a ser executado. Isso quer dizer que não importa a quantidade de dívidas contraídas pelo devedor, caso só tenha um imóvel e utilize este como moradia, será resguardado de futuras execuções.

A própria Lei nº 8.009/1990 informa exceções à impenhorabilidade, objetivando evitar fraudes contra credores ou tentativa de desvio dos bens, sob a alegação falsa de se tratarem como bem de família. Em seu artigo 3º [1], lista as exceções nas quais não será aplicável a alegação de impenhorabilidade, mesmo que o bem em questão seja eventualmente considerado como bem de família.

É importante ressaltar que as exceções previstas no referido artigo têm sido objeto de diversas controvérsias e debates no âmbito judicial. Isso ocorre porque, ao lidar com uma proteção constitucional concedida à moradia e à família, como é o caso da impenhorabilidade dos bens de família, surgem questionamentos sobre: como criar exceções a essa proteção?

Além disso, o artigo 4º [2] da mesma lei é fundamental nesse contexto, pois já estabelece que o proprietário insolvente que adquire o imóvel por má-fé, ou seja, aquele que transfere seu patrimônio para um único bem de alto valor com o objetivo de se beneficiar da impenhorabilidade, igualmente não poderá usufruir da proteção.

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A responsabilidade patrimonial no processo de execução é caracterizada pela sujeição do patrimônio do sujeito às medidas constritivas. Para tanto, há a identificação de quais os bens do devedor estarão sujeitos à garantia e responderão pela dívida em aberto.

Assim, o Judiciário apresenta uma maneira jurídica de se obter a satisfação de uma obrigação: a penhora e expropriação de tantos bens quanto bastem para a quitação da dívida (artigo 831 do Código de Processo Civil [3]), como da garantir a segurança jurídica e efetividade das relações negociais civis.

O referido entendimento doutrinário apenas ressalta a importância da execução judicial, motivo pelo qual o ordenamento jurídico brasileiro regulariza alguns princípios, inclusive constitucionais, para a disposição da prática e satisfação do processo civil em fase de execução, como os princípios da economia processual, da duração razoável do processo, da eficiência e eficácia jurídica do processo.

Esses princípios estão interligados, visando assegurar a efetividade da tutela jurisdicional, especialmente no processo de execução, em que a garantia dos direitos reconhecidos anteriormente é fundamental. Consequentemente, se torna essencial adotar medidas proporcionais e legais para alcançar a eficácia da execução, garantindo todos os princípios constitucionais.

Da teoria do sopesamento dos princípios

Conforme anteriormente disposto, existem os princípios constitucionais que protegem o direito fundamental ao mínimo existencial da pessoa humana, assim como os princípios que orientam os processos judiciais para garantia da sua efetivação e segurança jurídica.

Cumpre destacar os conflitos que podem surgir entre as garantias fundamentais. Assim, buscando compreender como resolver essas questões, temos a da Teoria do Sopesamento dos Princípios por Robert Alexy.

A análise desses conflitos muitas vezes é realizada pelo Poder Judiciário, através de um Juízo de adequação normativa, visando equilibrar esses direitos conflitantes para evitar insegurança jurídica e promover uma solução justa.

Conforme entendimento do referido doutrinador, os conflitos entre princípios são resolvidos através do sopesamento, que ocorre quando a restrição de um princípio é comparada à de outro coexistente.

O sopesamento dos princípios requer uma avaliação detalhada das circunstâncias fáticas e jurídicas para determinar qual princípio deve ter maior peso na resolução da questão, isso porque ambos os princípios permanecem válidos.

Diante disso, os tribunais brasileiros frequentemente recorrem ao sopesamento dos princípios, também denominada ponderação jurídico-constitucional, quando se deparam com a existência de princípios em conflito.

Essa teoria, amplamente observada pela jurisprudência e entendimento do Supremo Tribunal Federal, é aplicada para alcançar decisões mais equitativas e justas em casos práticos.

Penhora parcial do bem de família avaliado em alto valor

É evidente o conflito dos princípios do mínimo existencial e da eficácia do processo de execução, devendo se aplicar o sopesamento dos princípios, objetivando que seja possível a satisfação de uma obrigação.

Um exemplo disso é a tese sobre a possibilidade da penhora parcial do bem de família, para garantir o cumprimento da obrigação, nos casos em que o imóvel for avaliado em alto valor e, desde que, reste valor remanescente suficiente para assegurar a digna subsistência do devedor.

Vamos imaginar que neste caso, que todas as medidas típicas constritivas restaram infrutíferas, não sendo localizado bens ou valores para suprir a dívida, mesmo após anos diligenciando, conclui-se que a execução estaria fadada ao fracasso. Neste caso, deveria o credor abandonar o seu direito e desistir do processo, visto a ausência total de efetividade?

É evidente que o credor possui o direito fundamental de receber sua tutela processual executiva, porém, fica prejudicado, diante da falta de bens disponíveis para saldar a dívida pelos métodos convencionais, surge então a possibilidade de recorrer a meios atípicos.

Diante desse impasse, resta a possibilidade de relativizar a impenhorabilidade dos bens protegidos por tal instituto, mesmo que de forma parcial, buscando equilibrar os princípios do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana, visando satisfazer uma dívida já frustrada.

Além disso, é importante notar que muitos casos práticos, o devedor adquire uma dívida que não pretende pagar e, para evitar a penhora de seus bens, realiza desvios fraudulentos. Essa prática é evidente em situações em que o devedor vende todos os seus bens disponíveis e utiliza os recursos para adquirir um imóvel de alto valor, que é então declarado como seu bem de família e moradia.

Assim, na hipótese de relativização da impenhorabilidade do bem de família, a penhora sobre o referido imóvel seria parcial, o que significa que apenas uma parte dele seria destinada ao pagamento da obrigação, enquanto o restante, em uma proporção razoável, seria devolvido ao devedor, garantindo sua subsistência. Ou seja, essa devolução parcial garantiria que o devedor tivesse recursos suficientes para adquirir outro imóvel para sua moradia.

Nesse contexto, a dignidade do devedor não estará comprometida, pois ao realizar uma penhora parcial desse bem, além de quitar pelo menos uma parte da dívida em questão, ainda restará um saldo que permitirá ao devedor adquirir outro imóvel, garantindo o mínimo necessário para a subsistência da pessoa e, especialmente, favorecendo ambas as partes da lide, assim, a utilização do sopesamento dos princípios desta forma acolherá ambas as partes.

A respeito do assunto, cumpre destacar a efetiva decisão proferida em caso real, discutido nos autos do recurso de Agravo de Instrumento de nº 2075933-13.2021.8.26.0000, em que o Agravante/Exequente daquela demanda é a Instituição financeira Itaú Unibanco S/A., sendo que a parte contrária é o agravado/devedor Antonio José de Almeida Carneiro, recurso este que tramitou na 16ª Câmara Cível de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo [4].

Neste caso, houve o deferimento da penhora de percentual do imóvel que a princípio era o único imóvel do devedor e consideração bem de família, objetivando satisfação da ação, ainda que parcial, que, com o valor remanescente, foi garantido integralmente o direito a moradia do devedor, com dignidade. Assim, vejamos a ementa do acordão do mencionado recurso em questão:

“Ementa: ‘AGRAVO DE INSTRUMENTO. BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DE VALOR VULTOSO. PENHORA. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL. RESERVA DE PARTE DO VALOR AO DEVEDOR. NECESSIDADE. VALOR QUE DEVE SER GRAVADO COM CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE. PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO E DA DIGNIDADE HUMANA DO DEVEDOR.  1.- A interpretação sistemática e teológica do art. 1º da Lei nº. 8.009/90, mediante ponderação dos princípios constitucionais que informam a impenhorabilidade do bem de família e garantem o direito de ação com duração razoável do processo, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, permite a penhora de imóvel de valor vultoso (R$ 24.000.000,00), ainda que destinado à moradia do devedor.  2.- A penhora de bem de família de valor vultoso, no entanto, exige que se reserve ao devedor valor condizente com sua situação social, visando a possibilitar-lhe a aquisição de outro imóvel para morar com dignidade.  3.- A reserva de parte do produto da alienação do imóvel penhorado deve ser gravada com cláusula de impenhorabilidade, visando a dar cumprimento ao disposto no art. 1º. da Lei nº. 8.009/90, conforme sua interpretação conforme à Constituição Federal. 4.- Decisão reformada. Agravo parcialmente provido.” (Agravo de Instrumento nº: 2075933-13.2021.8.26.0000. Agravante: ITAÚ UNIBANCO S/A. Agravado: ANTONIO JOSÉ DE ALMEIDA CARNEIRO e OUTRA. Comarca: São Paulo 16ª Câmara – Publicado em 5/7/2021)

No referido julgamento recursal, o i. desembargador Mauro Conti Machado, decidiu pela possibilidade da penhora incidir de forma parcial sobre o percentual de 90% do imóvel avaliado em R$ 24 milhões, ainda que comprovado que destinado à moradia do casal de devedores, consequentemente, somente o percentual de 10% foi decretado como impenhorável (bem de família), garantindo uma quantia mais que necessária para a aquisição de outro bem imóvel para moradia do ente familiar, proporcionando a dignidade da pessoa humana e a preservação do mínimo existencial.

Essa questão é relevante nos dias de hoje porque o campo jurídico não se limita apenas ao que está explicitamente definido na lei, mas também é influenciado por princípios jurídicos, interpretações doutrinárias e decisões judiciais.

Por conseguinte, para que seja realizada a penhora parcial sobre o imóvel, a porcentagem deve ser analisada individualmente, realizando o sopesamento dos princípios e garantindo a preservação dos direitos à dignidade da pessoa humana, visto que o valor remanescente permitirá a aquisição de uma moradia digna para a família do devedor, enquanto o credor, simultaneamente, terá seu crédito recuperado, ainda que de forma parcial, assegurando, a efetividade da tutela executiva e o acesso à justiça, conforme proteções constitucionais.

 


[1] Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (ss. lista)

[2] Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.

[3] Art. 831, do Código de Processo Civil – A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios.

[4] TJSP – CONSULTA 2º GRAU – PROCESSO Nº 2075933-13.2021.8.26.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO https://esaj.tjsp.jus.br/cposg/show.do?processo.codigo=RI006COUA0000

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