Opinião

Crime de fraude com utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros

Autores

  • Rodrigo Amaral

    é advogado criminalista sócio do DRA Advogados doutorando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com período de pesquisa na Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Direito Penal pela UERJ.

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  • José Danilo Tavares Lobato

    é pós-doutor doutor e mestre em Direito professor associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro professor visitante do programa de mestrado e doutorado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e defensor público do estado do Rio de Janeiro.

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6 de outubro de 2024, 15h24

Com o advento da Lei 14.478/2022 [1], surge o artigo 171-A do Código Penal que tipifica algo assemelhado ao crime de estelionato, mas que tem como objeto “ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros”. Por envolver as chamadas criptomoedas (ativos virtuais), a figura já chegou a ser chamada de “cripto estelionato” [2].

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No entanto, essa rubrica parece-nos um pouco exagerada, tanto assim que há aqueles que corretamente repetem os termos do próprio tipo penal para nomear o crime do artigo 171-A, do CP. Assim, sem qualquer necessidade de grande inovação, pode-se chamar o delito de “fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros” como faz Souza [3].

No entanto, apesar de nossa não aderência à terminologia “cripto estelionato”, é inegável a semelhança e a proximidade do dispositivo do artigo 171-A com o do tradicional crime de estelionato previsto no artigo 171.

Desse modo, é intuitivo supor que as duas figuras tenham uma relação de especialidade, na qual a figura do artigo 171-A, do CP teria precedência em um concurso aparente de normas [4], posto que o artigo 171, do CP seria dotado de um plus frente ao tipo penal base. Entretanto, essa é só uma primeira impressão que muitos podem ter. A partir de uma leitura atenta dos tipos penais, o leitor perceberá que a questão é um tanto quanto tormentosa; algumas das fronteiras de ambos os crimes estão esmaecidas.

O crime de estelionato, inserto no artigo 171, CP, consiste na conduta de “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Aqui, a vítima é enganada, sendo conduzida a realizar o ato voluntário de disposição que resulta na vantagem ilícita [5].

O verbo “obter” indica um crime de resultado [6], pois o agente tem de efetivamente conseguir a vantagem ilícita para que o crime esteja consumado, o que somente ocorre após a realização da fraude. Trata-se de crime material, sem a menor chance de dúvidas.

Por outro lado, a estrutura do artigo 171-A, CP é diferente, já que tipifica a conduta de “organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”.

Esses verbos, per se, não presumem a afetação do bem jurídico. Organizar, gerir ou distribuir carteiras e intermediar operações são condutas que não presumem a afetação do bem jurídico, de modo que já há posições no sentido de que a figura configuraria um delito formal [7].

Figura tradicional do estelionato

A questão, todavia, não é tão simples. Isso porque o tipo complementa a exigência de prejuízo alheio em sua redação. Aqui, a partir da literalidade do dispositivo, há duas formas possíveis de interpretar a questão:

(i) pode-se conceber esse prejuízo alheio no sentido de requisito objetivo do tipo penal, o que aproxima muito à figura do tradicional estelionato, sendo um delito de lesão e de resultado [8];
(ii) pode-se defender que se trataria, na realidade, somente do conteúdo do elemento subjetivo especial do delito [9], ou seja, o fim de obtenção de vantagem ilícita, o que pressuporia um prejuízo a outrem, de modo que, a partir dessa perspectiva, haveria, de fato, um delito formal.

As boas razões estão, por diversos fatores, com a primeira opção. Além da posição sistemática, que somente sugere tratar-se de uma espécie de estelionato ou algo assemelhado, uma verificação da proporcionalidade da reprimenda penal indica um crime de lesão.

Seria, no mínimo, um contrassenso, que entre dois delitos com o mesmo bem jurídico e semelhantes elementos de injusto, o que possui pena mais grave fosse justamente o que não exigiria a afetação do bem jurídico. Um delito assemelhado ao artigo 171-A, CP, que é a fraude eletrônica, forma qualificada do estelionato contida no artigo 171, §2º-A, CP, tem, coincidentemente ou não, a mesma pena do tipo penal do artigo 171-A, CP. Portanto, a partir de uma concepção sistemática, não seria razoável que o artigo 171-A, CP dispusesse do resultado danoso ao bem jurídico para a sua consumação.

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Além disso, há um outro fator relevante. Seria difícil conceber a obtenção de vantagem ilícita sem que ela causasse prejuízo a outrem, sobretudo dentro do contexto do tipo penal em comento. Desse modo, seria quase que uma superfluidade se o termo “em prejuízo alheio” fosse entendido como elemento do especial fim de agir. Muito mais razoável é supor que, na realidade, esse prejuízo é, de fato, um elemento objetivo, um resultado exigido pelo tipo penal, o que torna imperativo concebê-lo como um crime de lesão e de resultado.

Isso, todavia, não encerra a questão sobre a relação entre os artigos 171 e 171-A, CP. Apesar de ambos os tipos exigirem um resultado danoso ao bem jurídico, eles parecem diferir, em razão de seus diferentes verbos, quanto ao momento do início da execução.

Em tese, por exemplo, ao organizar carteiras que envolvam ativos virtuais com o fim de obter vantagem ilícita, o agente já está, no mínimo, no âmbito da tentativa do artigo 171-A, CP. Por outro lado, se este tipo não existisse, ter-se-ia somente o artigo 171, CP e essa organização de carteiras seria, ao que tudo indica, mero ato preparatório em relação ao delito. No caso, no artigo 171-A não existe aquela famosa dupla causalidade, na qual, antes da presença da primeira — constituída pela fraude enquanto causa e o engano como resultado —, só há que se falar em atos preparatórios [10].

Relação entre artigos não é de especialidade

Com isso, já há uma resposta: não, a relação entre os artigos 171 e 171-A, CP não é de especialidade. Há especialidade, a rigor, quando todos os elementos constitutivos de um tipo penal também estão presentes no outro para o qual tais elementos ainda não são suficientes para a sua configuração, pois este possui, no mínimo, mais um elemento constitutivo [11]. Em outras palavras: para haver especialidade, o tipo penal específico tem de estar in totum englobado pelo tipo geral; toda vez que ocorrer um tipo especial, um tipo geral teria também de ser subsumível ao caso.

E isso, aqui, não ocorre. Nem todos os fatos subsumíveis ao artigo 171-A, CP constituiriam também a conduta punível do artigo 171, CP. E isso pelo fator já dito linhas acima: o artigo 171-A, CP representa, de certa maneira, uma antecipação da esfera do punível em relação ao artigo 171, CP. Há fatos que já estão no âmbito da tentativa à luz do artigo 171-A, CP e que constituiriam meros atos preparatórios em relação ao estelionato clássico.

Isso não significa, no entanto, que não haja um concurso aparente de normas. Pelo contrário, os tipos penais em comento possuem, a rigor, o mesmo fundamento de desvalor: crimes contra o mesmo bem jurídico (patrimônio), realizados por meios de injusto idênticos (fraude) e resultados iguais (prejuízo patrimonial); até mesmo o especial fim de agir é o mesmo nas duas figuras (obtenção de vantagem ilícita).

Há uma concordância total de desvalores que torna imperativo o princípio da absorção [12], que rege o concurso aparente de normas. A questão, aqui, é somente identificar qual é o critério de absorção específico que rege a relação jurídica.

Entre os critérios da consunção e da subsidiariedade, que são os dois que, ao lado da especialidade, parecem gozar de certo consenso [13], aqui, a relação entre os tipos escrutinados parece adequar-se mais à ideia de subsidiariedade [14]. Conceitua-se a relação de subsidiariedade como sendo a situação em que uma norma penal somente é aplicável de forma auxiliar no caso concreto, na impossibilidade de aplicação de outra disposição mais grave [15][16].

In casu, o estelionato clássico será subsidiário à fraude do artigo 171-A, CP, sendo aplicável sempre nas circunstâncias em que esta última não for possível [17]. Por não estar expressa em lei, essa relação de subsidiariedade é, por óbvio, implícita.

É certo que mais questões acerca do artigo 171-A poderiam ser levantadas, como, por exemplo, a opção do legislador quanto à sua topografia, seu bem jurídico e o conceito de ativos virtuais [18]. No entanto, por se entender que tais debates levariam o leitor a se afastar de um primeiro debate dogmático mais “pé no chão” e, desse modo, adentrar em uma análise mais abstrata e mais difícil em termos de consensos, optou-se, neste estudo, por esse recorte mais restrito, deixando, contudo, a promessa da ampliação desse debate para um próximo escrito.

Considerações finais

À guisa de conclusão, há dois pontos que merecem especial atenção:

1- O artigo 171-A, CP, por alguns chamado de “cripto estelionato” e, por outros, de “fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros”, é crime de lesão e de resultado, ou seja, crime material.

2- Apesar de os artigos 171 e 171-A, CP possuírem diversas semelhanças, a relação entre os tipos não é de especialidade. Entretanto, também não é o caso de cogitar concurso formal entre os dois dispositivos. Há verdadeiro concurso aparente de normas, pelo critério da subsidiariedade, na modalidade implícita.

 


[1] Cf. https://www.camara.leg.br/noticias/931195-entra-em-vigor-lei-que-regulamenta-setor-de-criptomoedas-no-brasil/

[2] COSTA, Adriano Sousa et al. Cripto estelionato: os impactos legais da Lei nº 14.478/2022. Consultor Jurídico, disponível aqui.

[3] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte especial. Vol. 3. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 237 e ss.

[4] Sobre o tema, cf. HORTA, Frederico. Do concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

[5] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Arts. 155 a 183. In: REALE JÚNIOR, Miguel (coord). Código penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 542.

[6] Cf. ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Direito penal: parte geral. Tomo I: fundamentos – a estrutura da teoria do crime. São Paulo: Marcial Pons, 2024, p. 542, que, é verdade, mencionam o estelionato do Código Penal alemão; este, contudo, possui similar estrutura ao art. 171, CP, de modo que as considerações ali presentes são aqui aplicáveis.

[7] Assim, expressamente, SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte especial. Vol. 3. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 238.

[8] Ao contrário do que um leitor menos treinado possa pensar, delitos de lesão não são sinônimos de delitos de resultado, apesar de ser bastante comum que delitos de resultado sejam também de lesão e vice-versa. Delitos de lesão são aqueles em que a sua consumação pressupõe a afetação efetiva do bem jurídico. Os chamados delitos de resultado são aqueles em que há uma distância espaço-temporal entre conduta e resultado. Cf., por todos, ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Direito penal: parte geral. Tomo I: fundamentos – a estrutura da teoria do crime. São Paulo: Marcial Pons, 2024, p. 542 e ss.

[9] Denominado, por alguns setores da doutrina, de dolo específico ou especial.

[10] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 10ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2019, p. 1371.

[11] HORTA, Frederico. Do concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 88 e 115.

[12] Cf. GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Concurso de delitos: uma primeira tentativa de reorientação. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 131-158, 2022, p. 142 e ss.

[13] GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Concurso de delitos: uma primeira tentativa de reorientação. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 131-158, 2022, p. 154.

[14] Cf. HORTA, Frederico. Do concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 90-91.

[15] Assim, expressamente, ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, tomo II. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, José Manuel Paredes Castañón, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Navarra: Thomson Reuters, 2014, p. 1003: “Concurre subsidiariedad cuando sólo se debe castigar por un tipo si no interviene otro tipo que prevé una penalidad más grave”.

[16] É bastante comum verificar, aqui no Brasil, explicações equivocadas sobre o conceito de subsidiariedade em matéria de concurso aparente de normas. Muitas vezes, confundem-se as ideias de especialidade e subsidiariedade, como se a última fosse o que, na realidade, é a primeira. É na ideia de especialidade que o tipo especial está logicamente inserido, in totum, no tipo geral. Aqui, sim, há uma relação de dois círculos, em que o círculo menor (tipo especial) está totalmente dentro do círculo maior (tipo geral). Nos casos de subsidiariedade, um tipo será subsidiário a outro somente naquela área em que há uma interseção entre ambos. Aqui, a relação não é como na da especialidade. Muito claro é o seguinte excerto da lição de Roxin sobre o tema: “Lex primaria derogat legi subsidiariae: a lei prioritária (primária) prevalece (revoga) sobre a lei subsidiária; a lei subsidiária retrocede em face da lei primária. Sob o ponto de vista lógico, isso geralmente representa um caso de interferência (interseção). Por exemplo, o uso fraudulento ou abusivo de máquinas automáticas (§ 265 a) em algumas situações é simultaneamente um furto (no caso de máquinas de venda automática de artigos), mas não em outras (no caso de máquinas automáticas de prestação de serviços)”. Tradução de ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, tomo II. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, José Manuel Paredes Castañón, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Navarra: Thomson Reuters, 2014, p. 1003-1004: “Lex primaria derogat legi subsidiariae: la ley prioritaria (primaria) precede (deroga) a la ley subsidiaria; la ley subsidiaria retrocede tras la ley primaria. Desde puntos de vista lógicos representa por regla general un supuesto de interferencia (intersección). Por ejemplo, el uso fraudulento o abusivo de máquinas automáticas (§ 265 a) en una parte de los supuestos es simultáneamente un hurto (en caso de máquinas expendedoras de artículos), pero en otra parte (en el caso de máquinas automáticas de prestación) no”.

[17] Cf. SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte especial. Vol. 3. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 240, que, apesar de não falar expressamente da regra da subsidiariedade, acaba aplicando-a materialmente quando afirma hipótese de aplicação subsidiária do estelionato, em caso no qual ele entende não estarem preenchidos todos os requisitos típicos do art. 171-A, CP.

[18] Para uma análise conceitual das criptomoedas, cf.: SANTIN, Janice; LOBATO, José Danilo Tavares. Criptomoedas e Direito Penal: Um Estudo sobre as Perspectivas Criminais do Uso de Moedas Criptográficas. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v.78, ano XIX, jul-set, 2020. p.159 e ss.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio do DRA Advogados, doutorando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período de pesquisa na Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Direito Penal pela UERJ.

  • é defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, professor adjunto de Direito Penal e Direito Público da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, pós-doutor em Direito Penal pela Universidade de Munique, doutor em Direito pela UGF, Mestre em Direito – Ciências Penais pela UCAM e Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRJ

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