Opinião

TR como índice de correção monetária de depósitos referentes a medidas assecuratórias

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5 de outubro de 2024, 17h26

No livro O Processo, o genial autor tcheco Franz Kafka narra a história de Josef K., um homem pacato que, certo dia, acorda e descobre estar sendo processado por um crime que nem sequer sabe qual é. O atemporal romance do início do século 20 retrata com maestria as incertezas e angústias decorrentes de uma atuação autoritária e inconstitucional do Estado e o impacto dessa atuação na vida de cidadãos comuns.

Gesrey/Freepik

Ao trazer as reflexões de O Processo para a realidade brasileira do século 21, podemos pensar a respeito da situação de uma pessoa que descobre estar sendo investigada por um crime que não cometeu. Suponhamos que a investigação envolva uma alegada fraude em licitação promovida pela União, que teria causado um suposto dano ao erário de R$ 100 mil.

Visando a futura reparação desse dano e alegando existirem indícios de autoria, o Ministério Público requer o “bloqueio” de bens do investigado, pedido que é deferido pelo Poder Judiciário em juízo de cognição sumária. Assim que bloqueado, o valor é imediatamente transferido para uma conta judicial e lá permanece por anos, aguardando a conclusão da investigação, cuja demora é justificada pela “complexidade” do caso.

Ao final, o Ministério Público conclui pela ausência de provas contra o investigado, decide não oferecer denúncia e concorda com a restituição do valor constrito. No entanto, ao receber o montante, o investigado percebe que o valor devolvido é cerca de 20% menor do que o que fora originalmente bloqueado, devido à inflação acumulada no período. Além de todas as consequências pessoais e sociais decorrentes do fato de ser alvo de uma investigação criminal, ao final da apuração, o cidadão se surpreende ao perceber que “pagou” para ser investigado por um crime do qual sempre alegou inocência.

Por mais absurda que essa hipotética situação possa parecer, não é incomum na prática forense brasileira. Isso porque o artigo 11, §1º, da Lei 9.289/96 [1], prevê que “os depósitos efetuados em dinheiro observarão as mesmas regras das cadernetas de poupança, no que se refere à remuneração básica e ao prazo”. A “remuneração básica” da caderneta de poupança é a Taxa Referencial (TR), nos termos do artigo 7º da Lei 8.660/1993, que extinguiu a TRD anteriormente prevista na Lei 8.177/1991.

É amplamente sabido, porém, que a TR não reflete a perda do poder aquisitivo da moeda provocada pela inflação. Entre 2017 e 2022, por exemplo, a TR ficou zerada, enquanto a inflação acumulada no período foi de 28,86%, de acordo com o IPCA-E da Fundação Getúlio Vargas. Em nosso exemplo, a diferença no valor a ser restituído ao investigado, caso a investigação ocorresse durante esse período, seria de aproximadamente R$ 30 mil.

Apesar de a TR não refletir a inflação, o artigo 11, §1º, da Lei 9.289/1996 continua sendo invocado para justificar sua utilização como índice de remuneração de depósitos judiciais realizados na Justiça Federal, inclusive os provenientes da decretação de medidas assecuratórias no processo penal, possibilitando um indevido perdimento parcial de bens (confisco).

Spacca

Nem sempre foi assim. No âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), a jurisprudência caminhava no sentido de reconhecer que “a atualização com base exclusivamente na TR importaria em oblíqua sanção aos recorrentes após conclusão do caso penal neste tribunal[2]. A 4ª Seção daquela Corte Regional, dedicada à matéria criminal, chegou a pacificar o entendimento de que seria cabível a remuneração dos valores depositados junto à Caixa Econômica Federal com base na Selic, nos termos da Lei 12.099/2009, que determinava o repasse dos valores à conta única do Tesouro Nacional [3].

Incidência foi ratificada pelo STJ

No entanto, a partir do segundo semestre de 2022, o STJ proferiu diversas decisões reafirmando sua jurisprudência sobre a incidência da TR para atualização monetária, afastando a utilização da Selic, sob o argumento de que possui caráter remuneratório, incompatível com a correção monetária. Um exemplo é o julgamento do AREsp 2.268.651/SP (DJe 23/6/2023).

Desde então, o TRF-4 alterou seu entendimento e passou a reputar válida a atualização pela TR dos depósitos decorrentes da decretação de medidas assecuratórias, inclusive sob a afirmação de que o artigo 3º da Lei 12.099/2009, que tratava dos depósitos de tributos e contribuições federais, não seria aplicável aos valores decorrentes de depósitos judiciais efetuados por decretação de juízo criminal.

A utilização da TR como índice de remuneração de valores provenientes da decretação de medidas assecuratórias viola claramente os direitos constitucionais à propriedade e ao devido processo legal, previstos no artigo 5 º, XXII e LIV, da Constituição, pois permite que um cidadão seja indevidamente privado de seus bens à revelia do devido processo legal.

STF vê inconstitucionalidade

Nessa linha, em mais de uma ocasião o STF sinalizou a impossibilidade de utilização da TR como índice de correção monetária. Isso ocorreu, por exemplo, no julgamento conjunto das ADC 58 e 59 e das ADI 5.867 e 6.021, em que o Pleno declarou a inconstitucionalidade da expressão “Taxa Referencial” contida em dispositivos da CLT que tratam dos depósitos realizados na Justiça do Trabalho. O entendimento foi reafirmado pelo STF, no julgamento do RE 1.269.353/DF, já sob a sistemática da repercussão geral.

Recentemente, no último dia 16 de setembro, foi promulgada a Lei 14.973/2024, que em seu Capítulo VI, Seção I, dá novo tratamento aos depósitos judiciais e extrajudiciais realizados no interesse da administração pública federal, corroborando o entendimento do STF quanto à impossibilidade de utilização da TR como índice de correção monetária.

Com efeito, em seu artigo 35, caput e §2º, a nova lei determina que os depósitos deverão ser realizados perante a Caixa Econômica Federal, a quem compete o depósito direto do valor na Conta Única do Tesouro Nacional. Quando levantados pelo titular, os valores depositados deverão ser acrescidos de “correção monetária por índice oficial que reflita a inflação”, o que afasta por completo a incidência da TR (artigo 37, II,). O dispositivo expressamente se aplica aos depósitos realizados em feitos criminais de competência da Justiça Federal, nos termos o artigo 35, §5º, da mesma Lei.

É preciso definir o índice oficial

Embora a nova legislação represente um claro e importante avanço na preservação do patrimônio do investigado durante o curso da investigação criminal, não deixa de causar alguma preocupação o depósito automático dos valores na Conta Única do Tesouro Nacional, principalmente porque não houve revogação expressa do artigo 11, §1º, da Lei 9.289/1996, ao contrário do que ocorreu com as Leis 9.703/1998 e 12.099/2009, que tratavam dos depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos e contribuições federais.

A ausência de expressa revogação do artigo 11, §1º, da Lei 9.289/1996 pode gerar dúvidas e questionamentos, principalmente enquanto não houver definição de qual será o índice oficial a ser efetivamente empregado para correção dos depósitos judiciais realizados nos feitos criminais de competência da Justiça Federal.

Por isso é importante que essa definição aconteça o quanto antes. A nova lei determina que deverá ocorrer por ato do ministro de Estado e da Fazenda (artigo 38, III) e que, enquanto o ato não for editado, permanecem em vigor as regulamentações já editadas que tratam de depósitos judiciais realizados no interesse da União.

Em conclusão, a Lei 14.973/2024 reforça a necessidade de se declarar inconstitucional o artigo 11, §1º, da Lei 9.289/1996, não apenas para impedir decisões judiciais que acarretem indevido confisco de bens, absolutamente incabível nas hipóteses de decretação de medidas assecuratórias, mas, principalmente, como forma de concretização dos direitos fundamentais à propriedade e ao devido processo legal, evitando uma atuação arbitrária do Estado, como aquela ilustrada por Kafka.

 


[1] “Dispõe sobre as custas devidas à União, na Justiça Federal de primeiro e segundo graus e dá outras providências”.

[2] Apelação Criminal 5030499-10.2022.4.04.7000 (julgado em 25/10/2022).

[3] MS (Seção) 5050026-30.2021.4.04.0000 (juntado aos autos em 24/03/2022).

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