Supremo valida possibilidade de prisão por porte de arma branca
5 de outubro de 2024, 13h48
O artigo 19 da Lei das Contravenções Penais permanece válido e é aplicável ao porte de arma branca. Esse entendimento é do Supremo Tribunal Federal, que julgou o tema no Plenário Virtual, em análise encerrada nesta sexta-feira (4/10).
Armas brancas são definidas como objetos que podem ser usados para ataque ou defesa, embora esta não seja sua finalidade principal. Um exemplo é a faca.
Segundo o artigo 19 da LCP, é passível de prisão e multa a conduta de “trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença”. De acordo com o dispositivo, será punido quem não comunicar ou entregar a arma ou munição às autoridades, “quando a lei o determina”.
Inicialmente, a regra valia para quaisquer armas. Mais tarde, o Estatuto do Desarmamento estabeleceu penas específicas para o porte de armas de fogo. Assim, o artigo 19 da LCP ficou restrito às demais armas.
Caso concreto
O caso julgado é o de um homem detido com uma faca de cozinha em frente a uma padaria. O Ministério Público de São Paulo alegou que ele ia com frequência até o estabelecimento para pedir dinheiro e ficava revoltado e agressivo quando não lhe davam.
Após a abordagem da Polícia Militar, o homem foi condenado em primeira instância ao pagamento de 15 dias-multa, com base no artigo 19 da LCP. A Turma Criminal do Colégio Recursal de Marília (SP) manteve a decisão.
A Defensoria Pública de São Paulo, que representa o réu, acionou o STF e apontou a falta de regulamentação exigida pelo próprio artigo 19 da LCP para sua aplicação. Por isso, argumentou que o homem não poderia ser penalizado pelo porte de arma branca.
Divergência vence
Prevaleceu a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele manteve tanto a repercussão geral quanto a condenação no caso concreto e propôs a tese de que o artigo 19 permanece válido e aplicável ao porte de arma branca.
Alexandre foi seguido pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, André Mendonça, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. O relator, ministro Edson Fachin, ficou vencido.
Para Alexandre, a “potencialidade lesiva” da arma deve ser avaliada com base nas circunstâncias do caso, levando em conta, entre outras coisas, “o elemento subjetivo do agente”.
O magistrado interpretou que a licença da autoridade competente, prevista no artigo em questão, valia apenas para o porte de armas de fogo — já que, de início, também eram reguladas pela LCP. Ele explicou que outros tipos de armas são de posse “absolutamente proibida” ou “de uso livre”.
Assim, tal exigência “prescinde de regulamentação estatal” no caso das armas brancas. Como não existe órgão responsável por autorizar o porte dessas armas, a conduta, na sua visão, continua proibida.
No caso do homem detido em frente à padaria, o ministro notou que, de acordo como o laudo pericial, a faca tinha quase 30 centímetros de comprimento e “poderia ter sido eficazmente utilizada como instrumento perfurocortante”.
Dino acompanhou Alexandre, mas fez alguns acréscimos. Para ele, deve ser verificado, em cada caso, se a arma branca é um instrumento de trabalho, “coerente com o ofício do suposto agente do ilícito”. Também deve ser levado em conta que o porte de arma branca é “obviamente ilícito” em alguns locais, como igrejas e escolas.
Foi fixada a seguinte tese:
O artigo 19 da Lei de Contravenções penais permanece válido e é aplicável ao porte de arma branca, cuja potencialidade lesiva deve ser aferida com base nas circunstâncias do caso concreto, tendo em conta, inclusive, o elemento subjetivo do agente.
Voto do relator
Fachin propôs cancelar o tema de repercussão geral após descobrir que o governo federal tem movimentações para regulamentar o porte de arma branca.
No caso concreto, ele reconheceu a impossibilidade de aplicação do artigo 19 da LCP até que haja regulamentação. Por isso, absolveu o recorrente.
Fachin lembrou o inciso XXXIX da Constituição, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Esse é o chamado princípio da legalidade.
Na visão do magistrado, “uma norma só pode ser considerada uma lei quando traça com precisão a conduta que quer disciplinar, a fim de que o cidadão possa por ela se orientar”. De acordo com ele, “normas genéricas e imprecisas favorecem indesejadas arbitrariedades” do Judiciário.
Para o relator, a redação do artigo 19 da LCP não foi clara e trouxe dúvidas. De acordo com Fachin, o texto do artigo não pode ser concretizado sem a regulamentação, devido à sua “abertura semântica”.
Ele ressaltou que é necessária uma complementação, para definir o conceito de arma, explicar no que consiste a autorização da autoridade e estabelecer a competência para tal autorização.
Segundo o ministro, a redação atual pode remeter ao uso de armas brancas “nas mais diversas finalidades”: desde facas ou outros instrumentos cortantes usados na pesca, na caça, na criação de animais e no cultivo de plantas, até um soco inglês, geralmente usado para agredir pessoas, mas também carregado por seguranças de casas noturnas.
Em resumo, são “incalculáveis os objetos do cotidiano” que podem ser usados como armas, “pela potencialidade de atentarem contra a integridade física”.
Enquanto não há definição, é possível apenas “o exame individualizado da conduta, mediante alto grau de subjetivização”. Para Fachin, o Estado não pode “exigir algo sem que institua as condições para que as exigências sejam atendidas”.
Ele ainda destacou que a regulamentação da contravenção penal só pode ser feita pela União, que, conforme a Constituição, tem competência exclusiva para legislar sobre Direito Penal e Processual Penal.
No último ano, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) informou o relator que elaborou uma proposta de minuta de decreto para regulamentar o artigo 19 da LCP. O texto foi encaminhado para a Casa Civil, e lá tramita desde então.
Tendo em vista essa proposta e o fato de que o STF ainda não analisou o mérito do tema, Fachin propôs retirar o caso da sistemática da repercussão geral e analisou apenas o caso concreto.
Na interpretação do ministro, a narrativa do MP-SP “não é suficiente para promover a imputação contravencional” ao recorrente. Segundo ele, mesmo se fosse possível dizer que a faca tinha potencial para ser usada como arma, essa leitura dos fatos “alça um nível de insegurança quiçá arbitrário e excessivo, o que é inaceitável para os padrões da legalidade e taxatividade penal”.
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ARE 901.623
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