Opinião

Transcendência do exame abstrato nas ações de nulidade de registro de marca

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4 de outubro de 2024, 20h53

Decisão proferida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro lançou luz sobre o relevante tema, pouco explorado na doutrina especializada, da tutela contra atos de concorrência desleal em sede de ação de nulidade de registro de marca.

Tradicionalmente, atos de concorrência desleal constituem causa de pedir de ações de infração de marca, nas quais titulares de registro marcários lesados pela indevida reprodução ou imitação de seus sinais distintivos buscam a tutela do Estado contra os seus infratores.

Nessas ações, que tramitam perante a Justiça estadual, por força de orientação firmada com força vinculante pelo Superior Tribunal de Justiça [1], o titular da marca pretende, em regra, a condenação do infrator à abstenção de exploração do sinal distintivo, bem como ao pagamento de indenização pelos prejuízos decorrentes da conduta.

O problema surge quando o infrator é também titular de registro marcário. Há aqui duas situações possíveis.

Na primeira delas, o infrator, embora seja detentor de registro de marca, faz uso do símbolo em formato ou configuração visual diferente daquele que está registrado junto ao INPI. Isto é, a forma de exploração concreta — no mundo real — do sinal difere do formato submetido ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial no processo administrativo de análise e concessão do privilégio marcário. Nesse caso, a despeito da existência de registro em favor do réu, a reprodução ou imitação indevida da marca do autor configura a prática de infração e ato de concorrência desleal.

Situação diversa ocorre quando o infrator, que é também detentor de registro de marca, faz uso do símbolo tal como autorizado no certificado de registro emitido pelo INPI. Nesse caso, não demonstrando o autor da ação de infração o desvirtuamento da exploração marcária por parte do réu ou outras práticas de concorrência desleal (imitação de trade dress, por exemplo), fica inviabilizado o reconhecimento da infração, porquanto legitimada a conduta do demandado pela existência do registro concedido pelo INPI. Nesse caso, somente a desconstituição do registro, por meio de ação de nulidade, é capaz de impedir a continuidade da infração.

Essa última situação é, infelizmente, mais frequente do que seria recomendado e resulta, em grande medida, do fato de que o INPI, nos processos administrativos de registro de marca, procede ao exame meramente abstrato das marcas que lhe são submetidas, à luz, unicamente, das condições de registrabilidade previstas na Lei n° 9.279/96 (LPI), desconsiderando quaisquer circunstâncias fáticas e/ou mercadológicas subjacentes ao pedido de registro, que possam sugerir, indicar, ou mesmo confirmar a existência de colidência marcária ou obstáculo ao registro com base no instituto da concorrência desleal.

Papel do INPI: exame abstrato das condições de registrabilidade marcária

A repressão à concorrência desleal encontra-se prevista no inciso V do artigo 2º da Lei nº 9.279, de 14/5/1996 e no artigo 10 Bis, Convenção da União de Paris (CUP).

Spacca

Apesar disso, o exame de registrabilidade das marcas depositadas perante o INPI não é feito à luz da tutela contra atos de concorrência desleal. O entendimento em vigor, fruto do Parecer Proc/Dirad n° 20/08, de 25 de agosto de 2008, é o de que o simples depósito de pedido de registro de marca não configura crime de concorrência desleal, não sendo possível indeferir um pedido de registro de marca com base no artigo 2°, inciso V, da LPI. Assim, nos termos do parecer, a repressão à concorrência desleal somente se dá de forma indireta, por meio do correto enquadramento dos pedidos de registro às hipóteses de irregistrabilidade previstas na LPI, notadamente artigos 124, 125 e 126.

Isso porque, “o INPI teria sido constituído para a análise de questões técnicas, e que nenhuma lei teria dado poderes ao INPI para atuar diretamente na repressão à concorrência desleal” (OLIVEIRA, Marco Antonio Mendonça de. O exame de marcas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial com base na repressão à concorrência desleal. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação) [2].

Caso DC Comics: papel do Judiciário na superação do exame abstrato

A DC Comics obteve, na década de 80, o registro, perante o INPI, para marcas mistas alusivas aos personagens “Superman”, “Batman” e “Mulher-Maravilha”, no segmento de roupas, fantasias, acessórios e calçados.

Apesar disso, a editora norte-americana tomou conhecimento de que uma empresa do interior do Paraná fabricava e comercializava, em larga escala, fantasias que reproduziam os elementos característicos e distintivos dos aludidos personagens, objeto dos registros concedidos pelo INPI.

Assim, foi instaurado procedimento criminal, do qual resultou a apreensão de milhares de fantasias, posteriormente submetidas a exame pericial, que confirmou a contrafação.

Ocorre que o infrator, mesmo depois da medida criminal, depositou, perante o INPI, pedidos de registro para as marcas mistas “Raio-Sombrio”, “Capitão-Estelar” e “Mulher-Estrela”, no mesmo segmento de roupas, fantasias, acessórios e calçados, valendo-se da mesma cartela e disposição de cores usadas nas roupas dos célebres personagens da DC Comics.

O INPI, alheio às circunstâncias de fato subjacentes àqueles pedidos de registro, procedendo ao exame meramente abstrato dos símbolos, não viu óbice à sua concessão.

Tomaz Silva/Agência Brasil

Contra o ato administrativo, a DC Comics ajuizou, perante a Justiça Federal do Rio de Janeiro, ação de nulidade, que teve seus pedidos julgados procedentes para declarar nulos os registros marcários concedidos ao infrator, além de condená-lo à abstenção de seu uso. Na fundamentação da sentença, o exmo. juiz federal Guilherme Correa de Araújo argumentou que o ato administrativo de concessão dos registros impugnados se baseou no chamado “exame abstrato”, pelo qual o INPI aprecia as marcas conforme depositadas, à luz, unicamente, das condições de registrabilidade previstas da LPI; porém defendeu ser “imperioso ir além do simples exame abstrato”, porque “seria altamente incoerente que o Poder Judiciário, de um lado, reconhecesse a violação das marcas e apenasse o contrafator com pena criminal, e, de outro, admitisse a validade de marcas registradas claramente na tentativa de legitimar a usurpação de marca alheia”, verbis:

“De fato, vê-se que as marcas anulandas são fortemente inspiradas nas marcas da parte autora, sendo certo que o só fato destas não serem dotadas de cores – o que se dá possivelmente em razão do padrão de depósito da época dos registros (décadas de 1970 e 1980) – não infirma a conclusão de ter havido aproveitamento parasitário, compreendido como obtenção de proveito a partir da criação alheia. Ademais, seria altamente incoerente que o Poder Judiciário, de um lado, reconhecesse a violação das marcas e apenasse o contrafator com pena criminal, e, de outro, admitisse a validade de marcas registradas claramente na tentativa de legitimar a usurpação de marca alheia. Ao contrário do afirmado pelo réu, não se está reconhecendo à parte autora o monopólio de uso, como marca, de signos descritivos de super heróis, até porque a autora tem concorrentes de peso neste próprio nicho. Apenas aqui se conclui que as marcas anulandas foram registradas com o propósito de legitimar o aproveitamento das marcas da autora, em violação às regras da concorrência desleal.” (Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Exmo. Juiz Federal Guilherme Correa de Araújo, 31ª Vara Federal, Proc. n° 5087826-09.2020.4.02.5101, Out/2023. Grifos nossos)

Das razões de decidir, observa-se que o magistrado não afastou a existência de diferenças formais e visuais entre as marcas da DC Comics e as do infrator; pelo contrário, ele afirma comungar com o entendimento manifestado no parecer do INPI quanto a esse aspecto. Não obstante, o juízo consignou, expressamente, que tais diferenças não seriam capaz de ilidir o fato de que as marcas anulandas são “fortemente inspiradas” nas marcas da DC Comics, com o inequívoco propósito de legitimar o seu aproveitamento parasitário, não sendo possível admitir o seu registro à luz das regras que coíbem a concorrência desleal.

A sentença, portanto, sem negar as limitações atuais da atribuição do INPI na análise marcária, afirmou, categoricamente, caber ao Judiciário papel maior no exame da legalidade dos privilégios concedidos pela Autarquia Federal, do qual não deve escapar o juízo sobre fatos subjacentes ao pedido de registro, que sejam claramente indicadores da prática ilícita da concorrência desleal.

 


[1] As questões acerca do trade dress (conjunto-imagem) dos produtos, concorrência desleal, e outras demandas afins, por não envolver registro no INPI e cuidando de ação judicial entre particulares, é inequivocamente de competência da justiça estadual, já que não afeta interesse institucional da autarquia federal. No entanto, compete à Justiça Federal, em ação de nulidade de registro de marca, com a participação do INPI, impor ao titular a abstenção do uso, inclusive no tocante à tutela provisória. – Tema 950; REsp 1.527.232/SP

[2] Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/academia/arquivo/arquivos- biblioteca/dissertacao-mestrado-marco-antonio-de-oliveira-1.pdf)

 

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