Ações corrosivas

Empresário é campeão de audiências às quais ele não comparece

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4 de outubro de 2024, 16h42

O Superior Tribunal de Justiça vai examinar o 226º processo na corte que envolve o litigante profissional Luiz Eduardo Auricchio Bottura. Trata-se de um agravo interno contra decisão desfavorável em embargos que ele apresentou para contestar o desprovimento a recurso especial apresentado por ele, julgado pela 4ª Turma do tribunal.

O advogado e litigante profissional Luiz Eduardo Bottura

Esse emaranhado de apelações não é um caso isolado. Uma rápida consulta ao banco de dados do Jusbrasil mostra 2,2 mil processos em que Bottura está envolvido. A maior parte como autor. Um exemplo peculiar que mostra as brechas do sistema e como é possível usar a Justiça com objetivos diferentes da sua finalidade.

Quando o então desembargador paulista Arruda Campos, há 65 anos, publicou a primeira edição da sua obra A Justiça a Serviço do Crime (Saraiva), o autor, certamente, não fazia ideia do que estava por vir. Apesar dos filtros para conter as chamadas “demandas predatórias”, a fissura parece crescer de forma galopante.

O catálogo de técnicas que Bottura usa para manietar seus alvos é inesgotável. O empresário, para escapar da lei penal e não ser localizado, indica endereços inexistentes no Brasil, em Portugal e na Itália. Também informa endereços errados de suas vítimas para provocar falsas revelias.

Embora envolvido em milhares de processos, Bottura, até onde se sabe, jamais compareceu a uma única audiência dos processos em que está envolvido.

Cômico e trágico

O caso envolve um script digno da Netflix. Bottura produziu uma escritura pública, que depois se soube ser falsa, e a registrou no Tabelionato de Notas e Protesto de Letras e Títulos de São Sebastião (SP). No documento, em que as fictícias partes confessam dívida de R$ 104 milhões, fez constar uma cláusula arbitral para que, em eventual discussão sobre sua falsidade, a Justiça estatal não apreciasse a demanda.

E elegeu a Câmara de Comércio Brasil Canadá (CCBC) para discussão do documento falso, local em que já possui uma demanda arbitral desde o ano de 2007, com queixas de corrupção e anulação da sentença pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que confirmou a existência de vícios no curso do processo arbitral (Processo 1122840-98.2014.8.26.0100, 1ª Câmara de Direito Empresarial do TJ-SP).

O próprio cartório em que a escritura foi lavrada refutou a sua autenticidade. O TJ-SP suspendeu o documento forjado. Mas, seguindo o seu código processual particular, Bottura foi ao STJ argumentar que o seu caso não poderia ser apreciado pela Justiça, mas pela sua câmara arbitral. A encruzilhada conhecida pelo nome de “competência-competência”.

Na primeira investida, o ministro do STJ Raul Araújo, em decisão monocrática, rejeitou o recurso especial interposto pela defesa de Bottura. Ato contínuo, ele embarga e aos embargos não é dado provimento. Estrategista de escol, Bottura apresenta agravo interno contra a decisão. É esse o caso (2022/0327650-9), que vai a julgamento perante na 4ª Turma do tribunal, da qual fazem parte Otávio Noronha, Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi.

Bottura já foi condenado cerca de 300 vezes por litigância de má-fé. Já processou um presidente do TJ-SP, o presidente da Apamagis, todos os advogados das partes que o processaram e até o secretário de Segurança de Mato Grosso do Sul quando ele foi preso e seu nome e foto apareceram no site do governo.

Catch me if you can

Sempre inspirado, encontrou um jeito de escapar do TJ-MS, que vinha desmantelando suas táticas: ele processou praticamente todos os desembargadores do estado — que a partir de então tiveram de se dar por impedidos de julgá-lo.

O incansável empresário entope o sistema judiciário de processos e representações. Aciona também o CNJ, o CNMP, o STJ e o STF. Responde por dezenas de acusações por falsificar documentos. Em delegacias, já conseguiu a cumplicidade de escrivães e delegados, que hoje são investigados.

Termômetro do sistema

Não há dúvida de que Bottura presta grande serviço à máquina judiciária brasileira. Como uma espécie de termômetro da vulnerabilidade do sistema, ele, praticamente, escreveu um manual das brechas do formalismo judiciário.

O almanaque de Bottura tem passagens cinematográficas, como na ação penal em curso na 24ª Vara Criminal de São Paulo. Nela, o empresário é acusado junto com os escrivães de polícia Ullisses Raymundo e Neilor Nogueira. Eles foram denunciados pela prática dos crimes de uso de documento falso e falsidade ideológica.

Depois de uma luta para citá-lo nos endereços que informou, em Portugal e na Itália, nos quais não foi encontrado, houve sua citação por edital e início de audiência de instrução e julgamento, em 19 de junho de 2024. Muitos recursos depois, ele conseguiu com que o ato não ocorresse e fosse remarcado para novembro deste ano.

Organização criminosa

Na 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores do Foro Central Criminal de São Paulo, Bottura, sua família e advogados respondem por ação penal movida pelo Ministério Público pela prática do delito de constituir organização criminosa com a participação de funcionário público (artigo 2º, caput, e §4º, inciso II, da Lei 12.850/2013). Eduardo Bottura aparece ainda como líder do grupo (artigo 2º, §3º, da mesma Lei 12.850).

O Ministério Público requereu a decretação de sua prisão preventiva, para a garantia da ordem pública e de aplicação da lei penal, “evitando a reiteração delitiva e resguardando a segurança da sociedade, pois, o réu não cessou suas atividades na referida organização criminosa, ainda que em local incerto e não sabido”.

O juiz, porém, negou o pedido do MP por entender que Bottura havia constituído defesa no processo e indicado endereços em Portugal.

Inconformado com a decisão judicial, o MP apresentou recurso em sentido estrito.

Em outro caso, Bottura, sua mulher e a advogada respondem “pela prática de delitos associação criminosa, inserção de dados falsos em sistema de informações, falsificação de documento público, usurpação de função pública, prevaricação, violação de sigilo funcional e inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente alguém ou agravar-lhe a responsabilidade”.

Os fatos ocorreram nos anos de 2020 e 2021, por atuações de distritos policiais de São Paulo (23º e 99ª DP), devido à instauração indevida de inquérito policial contra um escritório de advocacia, a Associação de Vítimas de Eduardo Bottura e Cleinaldo Simões. Produzira-se um relatório com assinatura falsa do delegado Marcelo Augusto Gondim Monteiro.

Chama o ladrão

No caso do escrivão de polícia Roberto Elias, ainda, houve a agravante de ter cometido os crimes com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão (artigo 61, inciso II, “g”), e para Bottura a agravante de quem promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes (artigo 62, inciso I).

Com o oferecimento da denúncia, o MP requereu a decretação da prisão preventiva de Bottura e dos demais denunciados, para a garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal.

Subsidiariamente, requereu a aplicação de medidas cautelares diversas, como o comparecimento periódico em juízo, a proibição de se ausentarem da comarca, a suspensão do exercício da profissão da advogada Cibele e do escrivão Roberto Elias, a fixação de fiança para os denunciados, a fim de evitar que obstem o andamento da ação penal, e a proibição de manter contato com os demais.

No Inquérito Policial 0020231-05.2017.8.26.0050, Bottura foi denunciado pela prática dos delitos de tentativa de estelionato (artigo 171, caput, c.c. 14, inciso II, do Código Penal), falsificação de documento público (artigo 297, Código Penal), duas falsificações de documento particular (artigo 298, Código Penal) e fraude processual (artigo 347, Código Penal), que vitimaram Carlos Eduardo Naegele, como representante do Jornal Midiamax, e a advogada Larissa da Fonseca.

A denúncia aguarda recebimento judicial.

Bottura foi condenado, em 2023, pela 16ª Câmara Criminal do TJ-SP, à pena de dois anos e quatro meses de reclusão, em regime inicial aberto, como incurso no artigo 129, §1º, incisos I e III, e §10 do Código Penal (lesão corporal grave, pela incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 dias e debilidade da função psíquica, com causa de aumento por ter sido cometida no âmbito da violência doméstica e familiar contra a sua então mulher), nos moldes da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).

Embora condenado, ele tenta, até o momento, usando de embargos de declarações intempestivos, atrasar o início do cumprimento de sua pena.

Ocultação deliberada

Atualmente, Bottura responde por ações penais, já foi condenado por lesão psicológica e denunciado em novas ações, algumas com pedido de prisão feito pelo MP, para se furtar à aplicação da lei penal. Sempre dificultadas pelo truque de indicar endereços inexistentes.

A indicação de endereços inexistentes faz com que sejam expedidas cartas rogatórias que nunca serão cumpridas por se tratar de locais coletivos, como resorts ou escritórios virtuais. O mesmo acontece com seus advogados, usualmente sem endereços fixos.

Menos conhecido pelas redações, ainda como majestade anônima, Bottura estrelou algumas notícias peculiares.

Em 2007, o jornal O Globo revelou um “novo golpe na internet””. A vítima, a pretexto de fazer um teste gratuito em seu computador, clicava em um link que a direcionava a preencher dados pessoais e de pagamento.

Pouco tempo depois, recebia em seu endereço “CDs com antivírus e boletos para pagamento, no valor aproximado de R$ 200,00, com a advertência de que, caso não pagasse, iria parar em cadastros de proteção ao crédito”. As vítimas, então, optavam pelos pagamentos, para evitar problemas.

Trapaças a granel

Em abril de 2011, Bottura entrou com ação indenizatória contra o Jornal Midiamax, sob número 0130430-51.2011.8.26.0100. No curso do processo, constatou-se fraude na citação da parte requerida, o que resultou, em 20 de junho de 2013, na sua condenação do jornal ao pagamento de indenização no valor de R$ 80 mil, ante a revelia.

Além de fraude no aviso de recebimento destinado ao jornal, também se constatou fraude em petição posterior, atribuída a advogada diversa, bem como em procuração concedendo poderes a ela.

Esses fatos foram apurados pelo Inquérito Policial 0020231-05.2017.8.26.0050 e resultaram na denúncia de Bottura pela prática dos delitos de tentativa de estelionato (artigo 171, caput, c.c. 14, inciso II, do Código Penal), falsificação de documento público (artigo 297, Código Penal), duas falsificações de documento particular (artigo 298, Código Penal) e fraude processual (artigo 347, Código Penal).

Além das fraudes relacionadas à citação e representação do veículo, houve tentativa de fraude à execução, principalmente por se ter juntado duas cessões de crédito oriundo da condenação de duas advogadas em datas diferentes, com a suposta finalidade de pagar os honorários advocatícios, que possuem natureza alimentar e, portanto, teriam preferência sobre as inúmeras penhoras dos credores de Bottura já feitas. Esses fatos estão sob apuração no Inquérito Policial 1525226-40.2024.8.26.0050.

Aventuras em Anaurilândia

Em 11 de maio de 2015, o Ministério Público do Mato Grosso do Sul denunciou Bottura, a juíza de Direito Margarida Elizabeth Weiler, o delegado de polícia Juvenal Laurentino Martins e o advogado Eduardo Garcia da Silveira Neto pela prática dos delitos de falsidade ideológica, corrupção ativa, violação de sigilo funcional, interceptação de comunicações de informática e telemática com objetivos não autorizados em lei, quebra de sigilo bancário fora das hipóteses autorizadas em lei e associação criminosa.

O grupo, constatou-se, montou um esquema para fabricar decisões para favorecer Bottura, com a assinatura da juíza. Pela conduta, a juíza Margarida foi aposentada compulsoriamente.

Mas ele escapou, como sempre. Com os tumultos artificiais que criou, a Justiça acabou reconhecendo a prescrição da pretensão punitiva estatal, ante ao lapso temporal entre a data dos fatos e os dias atuais, haja vista a existência de discussão acerca do recebimento da denúncia.

Jogada frustrada

Nas atuações em Mato Grosso do Sul, Bottura atacou a maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça local. A ministra Carmen Lúcia, do STF, em decisão de 2013, no Ag. Reg. na Petição nº 4.993, rejeitou uma das exceções de suspeição por ele promovidas contra desembargador do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, registrando:

“(…) No presente caso, não há razão de direito a justificar a remessa do processo principal, porque não configurada a suspeição de mais da metade dos Desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (…). Na presente exceção de suspeição, o Excipiente alega que o Desembargador Fernando Mauro Moreira Marinho seria seu credor, o que o tornaria suspeito para atuar como juiz em ações de seu interesse. Luiz Eduardo Bottura renunciou à queixa-crime que havia ajuizado contra o Desembargador Fernando Mauro Moreira Marinho no Superior Tribunal de Justiça (…) não assiste razão ao Excipiente, condenado ao pagamento de honorários ao advogado do Desembargador Excepto e não a ele, que, por óbvio, não se tornou seu credor (…) 11. Assim, ausentes elementos objetivos aptos a demonstrar o comprometimento da imparcialidade do Excepto e não sendo suspeitos mais da metade dos Desembargadores do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, não se configura a hipótese do art. 102, inc. I, alínea n, da Constituição da República a justificar o julgamento do Habeas Corpus n. 2010.010135-8 por este Supremo Tribunal Federal. 12. Pelo exposto, rejeito a presente exceção de suspeição.”

[STF — Ag.Reg. Na petição 4.993 — Relatora: Min. CARMEN LÚCIA — Segunda Turma — Agte.: Luiz Eduardo Auricchio Bottura — Adv.: Artur Abumansur de Carvalho — Agdo: Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul — j: 12/11/2013]

Tal mãe, tal filho

Em 2021, Bottura conseguiu de Maria Matuzenetz uma “doação” de R$ 7 milhões. Em conjunto com sua mãe, a psicóloga Maria Alice Auricchio Bottura, que atendia a vítima havia mais de 18 anos, atuou para que ela transferisse valores referentes à herança de seu marido a contas de empresas estrangeiras, ligadas aos autores dos fatos. A vítima perdeu cerca de R$ 7 milhões. O fato foi noticiado nesta revista eletrônica.

No bojo de inquérito policial que apura tentativa de intimidação a perito do Instituto de Criminalística de São Paulo, foram deferidas medidas cautelares em favor do servidor público. Bottura e a advogada Cibele Berenice Amorim foram proibidos de manter contato ou de manifestar opiniões sobre o perito, considerado perseguido por apresentar laudos periciais contrários aos interesses dos dois.

Ações entre amigos

Após anos de práticas como as relatadas acima, em 2023, Bottura foi denunciado pelo delito de organização criminosa e por sua liderança, junto com sua mulher, Raquel Fernanda de Oliveira; seus pais, Maria Alice e Luiz Célio Bottura; seus advogados, Vannias Dias da Silva, Cibele Berenice de Amorim, Daniel Calazans e Artur Abumansur de Carvalho.

A acusação descreve diversas práticas do grupo e conclui que “o modo de atuação da facção criminosa envolvia a massiva instauração de ações judiciais e extrajudiciais, agindo com auxílio e participação de amigos, parentes, advogados e agentes públicos”.

E continua afirmando que “a facção criminosa ora denunciada se utiliza de manobras espúrias tem como instrumento de atuação o próprio Poder Judiciário, através da manipulação de agentes públicos, tais como juízes de direito, para que consigam seus objetivos criminosos, com atuação de servidores públicos, que constituem peças fundamentais para o êxito criminoso, atestando veracidade a documentos falsos, entre outras condutas delituosas”.

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