Interesse Público

Processos estruturais: Ulisses ainda ouve as sereias

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

    View all posts

3 de outubro de 2024, 8h00

Na minha última intervenção nesta coluna (ADPF 743: o STF formulando políticas públicas?), analisei contexto e o conteúdo da decisão proferida pelo STF na ADPF 743, que tem por objeto principal a gestão ambiental brasileira, em especial na região da chamada Amazônia Legal.

O acórdão proferido por maioria pela Suprema Corte evocando a new trend dos processos estruturais determinava providências e estipulava prazos à União, estados e municípios.

O processamento, todavia, estava longe de sua conclusão, sucedendo-se um conjunto de outras determinações do agora relator, ministro Flavio Dino; determinações essas que sugerem maior reflexão quanto ao alcance da proposta de uma jurisdição orientada à superação de bloqueios estruturais à proteção, in casu, ao direito fundamental ao meio ambiente.

Audiências públicas para enfrentamento das queimadas: recurso retórico ou instrumento da jurisdição estruturante?

Primeiro ponto que merece destaque diz respeito ao uso de audiências públicas como suposto mecanismo informador de futuras decisões que o relator já assume como necessárias e autorizadas pelo artigo 21, II do RISTF, vocacionadas a “determinar às autoridades judiciárias e administrativas providências relativas ao andamento e à instrução dos processos de sua competência”. As referidas audiências foram convocadas sob o título de “Audiências de Conciliação”, e se verificaram nos dias 10 e 19 de setembro passado.

Procedeu-se a uma segmentação das audiências segundo a designação dos seus envolvidos – a do dia 10 envolvendo autoridades do plano federal, e a do dia 19 envolvendo agentes políticos dos Estados. Tem-se já nesse aspecto um estranhamento.

Não exauridos, na data designada para ambas as audiências, os prazos fixados pelo acórdão proferido na ADPF 743, tem-se por evidente que o objeto da interlocução não seja a análise da adequação ou suficiência das providências adotadas por força dessa mesma decisão.

Resta então como objeto potencial de ambas as audiências, a coleta de informações pertinentes ao diagnóstico mais aprofundado ao problema público de alto complexidade, que é a gestão ambiental, especialmente na área onde se tem verificado as queimadas. Verifica-se aí já uma inversão, eis que o conhecimento em si do problema público deveria ser pressuposto para a edição do acórdão proferido na ADPF 743 — e não efeito dele.

Não obstante essa percepção de que a ocasião se destine à obtenção de quadro informacional mais amplo, isso não se tem por claro no despacho convocatório da audiência de 10 de setembro de 2024, datado de 12 de agosto de 2024.

Na verdade, a indicação de quais os elementos de instrução que se deseja fossem trazidos pelas autoridades convidadas à audiência só veio no despacho de 3 de setembro de 2024, com a formulação então de nove quesitos, que se desdobravam em 21 indagações distintas.

Tem-se então 22 dias para que a corte formulasse seus quesitos — e sete dias para que as autoridades convocadas reunissem os dados. O padrão se repete em relação à audiência subsequente, envolvendo os representantes dos estados, na qual a quesitação se apresentou no dia 12 de setembro de 2024, para uma audiência convocada para o dia 19 de setembro de 2024.

Primeira crítica que a estratégia merece, é a segmentação dos interlocutores — União numa ocasião; Estados em outra — o que exclui como resultado possível da audiência, não só o contraste/contradita entre as de informações ofertadas, como também a eventual a negociação de providências e prazos orientados à superação de bloqueios institucionais que pudessem vincular os planos federal e estadual.

Numa matéria que exige sobremodo coordenação e cooperação entre entes federados titulares de competências comuns, opta-se por um modelo de construção de solução estruturante que não favorece a construção deste tipo de relacionamento, que a rigor, é determinado pela Constituição. Se algum traço de coordenação se identifica nesse procedimento, este estaria sendo supostamente exercido pelo Judiciário — o que certamente não é a determinação constitucional.

Spacca

Segundo elemento de estranhamento relacionado à estratégia do ministro Flávio Dino, diz respeito a uma segmentação, agora da própria função de monitoramento das providências de execução da decisão proferida na ADPF 743. Isso porque, como assinalado em meu texto anterior, curiosamente o acórdão determinou que o plano de ação exigido no item I do decisum, é de ser “apresentado ao Conselho Nacional de Justiça, que deverá centralizar as atividades de coordenação e supervisão das ações decorrentes da execução da presente decisão”.

Se assim é, o desenvolvimento de atividades de monitoramento das providências de execução do plano de ação é atividade que não deveria ser desenvolvida pelo relator — mas sim pela estrutura institucional a quem o colegiado deferiu essa competência (em que pese a duvidosa autorização constitucional para tanto).

A convocação das referidas audiências, transmitidas online no canal do YouTube da corte parece expressar um exercício de diálogo externo; uma prática destinada ao público, que reforce uma aparência de que se tenha no STF o comando da situação — e eventualmente, a sua solução.

Uma vez mais tem-se o vezo de uma jurisdição substitutiva, que não se preocupa exatamente com a recondução das demais estruturas de poder ao seu trilho constitucional de atuação. Também aqui parece subvertida a ideia do processo estruturante, em que o papel da corte não é substituir-se às autoridades legitimamente constituídas para a construção da solução, mas sim promover instância de diálogo e superação dos obstáculos institucionais postos à proteção ao meio ambiente.

Formulação de prioridades: o desafio permanente do campo das políticas públicas

Vale ainda compartilhar com o leitor, a impressão que se extrai da assistência às referidas audiências — nas quais dificuldades de toda ordem foram apresentadas, determinando sempre do ministro Flávio Dino vigorosa ordem de que lhe fossem apresentados novos dados, sempre em prazos curtíssimos de cinco ou dez dias.

Problemas complexos que envolvam relações transversais, especialmente se estas envolvem distintos níveis federados, apresentam várias camadas, seja nas relações de causa e efeito, seja no potencial de solução de medidas. O conhecimento aprofundado do problema revela estas múltiplas camadas e permite estabelecer o que seja prioridade, organizando a ação pública. Por vezes, o desenho dessas relações de anterioridade robustecerá o conjunto de elementos de informação que orientação ações posteriores.

A atividade de formulação de políticas públicas, portanto – que o STF chama a si com todas as letras e prerrogativas no caso da ADPF 743 – envolve estabelecer essas relações de prioridade. Essa é uma prática institucional que é estranha ao Judiciário – ao menos, estranha no plano formal da atividade jurisdicional. O exercício ordinário da jurisdição não contempla a possibilidade de que o juízo decida primeiro o pedido “A”, e só em momento futuro o pedido “B”, ressalvadas, evidentemente, as providências antecipatórias.

A fixação de prioridades quanto às providências e linhas de ação constitui o dia a dia da formulação e implementação de políticas públicas – o que evidentemente pressupõe não só o conhecimento aprofundado do problema público em enfrentamento, mas também uma prognose dos efeitos potenciais de cada qual das etapas da estratégia de solução. Isso atrai um ônus argumentativo específico; uma matriz de formulação das decisões que é estranha ao Judiciário. Por isso se via, na audiência pública direcionada aos Estados, a ordem de expedição de ofícios para que os Tribunais de Justiça informem sobre o andamento de execuções de multas ambientais – problema que é sim, relacionado ao macro tema da gestão ambiental, mas que certamente não é a prioridade quando áreas verdes ardem país agora, e a população sofre com a poluição.

Uma vez mais, os elementos do caso concreto evidenciam os riscos associados a uma visão excessivamente ampliada dos limites do Judiciário em demandas com estas características.

Processos estruturais: ainda a metáfora de Ulisses e as sereias

É conhecida a obra de Oscar Vilhena A Constituição e sua Reserva de Justiça, na qual se emprega a metáfora de Ulisses e as sereias para compreender os limites postos ao poder constituinte reformador. A mesma metáfora, a meu sentir, é de se aplicar ao tema dos processos estruturais – cuja promessa de solução de problemas públicos complexos soa como canto sedutor aos mais crédulos.

Não há dúvidas que o controle jurisdicional de políticas públicas frequentemente não encontra nos meios tradicionais do processo civil o seu caminho de solução. Todavia, é de se ter por claro que processos estruturais podem se apresentar como as sereias – encantadores em seus predicados mais evidentes, mas passíveis de gerar distorções institucionais, com um Judiciário pretensamente substitutivo da administração; ou ainda, se não pior, a descredibilização dessa mesma instituição pela incapacidade de gerar por si só, a solução almejada por todos.

Ao julgador, que como Ulisses se sinta insuperavelmente atraído pelo canto da sereia do processo estrutural, cabe amarrar-se no mastro da ação exclusivamente articuladora das instâncias envolvidas. Esse o caminho mais seguro, que permitiu ao herói entrar para a história, porque deu-se conta de suas próprias limitações.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!