Opinião

Decisão do STF sobre ANPP impacta milhares de processos em tramitação

Autor

  • Renato Lopes Rocha

    é advogado do GMPR Advogados pós-graduado em Direito Administrativo pelo Instituto Goiano de Direito Administrativo (Idag) e Faculdade de Ensino Superior do Centro do Paraná pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás (Esmeg) com extensão universitária em Direito para a Saúde pela Universidade de São Paulo (USP).

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3 de outubro de 2024, 19h27

A Lei 13.964/2019, conhecida como “pacote anticrime”, introduziu ao Código de Processo Penal (CPP) o instituto do acordo de não persecução penal (ANPP), por meio do artigo 28-A.

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A inovação introduzida no ordenamento jurídico brasileiro privilegia a Justiça Criminal e, certamente, impacta de forma positiva o sistema de Justiça Penal, dado que mitiga o princípio da indisponibilidade da ação penal nos casos de crimes de médio potencial ofensivo, quando atendidos os requisitos legais.

Ademais, o acordo previsto pela legislação processual não só contribui para o desafogamento do Poder Judiciário e para a economia processual, como também é um mecanismo negocial, que garante a recomposição do dano provocado à vítima e à sociedade.

Desde o início da vigência da Lei nº 13.964/2019, em 23/1/2020, o Supremo Tribunal Federal recebeu centenas de processos (recurso extraordinários, habeas corpus e recursos ordinários em habeas corpus) por meio dos quais os jurisdicionados requereram a aplicação do artigo 28-A do CPP. Argumentou-se, em síntese, que devido à natureza mista da norma em comento (material-processual),  sua incidência ocorreria de forma retroativa, em obediência à garantia prevista no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal.

HC 185.913/DF e limites da retroatividade do ANPP

Diante da envergadura da matéria e da multiplicidade de demandas, o eminente ministro Gilmar Mendes afetou o tema ao Plenário do STF, nos autos do Habeas Corpus nº 185.913/DF, oportunidade em que a corte responderia às seguintes questões-problema:

a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no artigo 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?

b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo?’

Não restava dúvida de que somente o julgamento definitivo do Habeas Corpus nº 185.913/DF, no âmbito do Plenário do STF, conseguiria conferir segurança jurídica e pacificação social.

Existia, contudo, um impasse: o referido habeas corpus, desde 28/10/2020, foi incluído e retirado da pauta de julgamento em diversas ocasiões, sem falar da notória divergência existente nos entendimentos manifestados pelas duas Turmas do STF.

Spacca

Na tarde do dia 18/9/2024, finalmente, o Plenário do STF julgou o Habeas Corpus nº 185.913/DF e definiu os limites da retroatividade dos acordos de não persecução penal, com a fixação das seguintes teses de julgamento:

1. Compete ao membro do Ministério Público oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e para celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno;

2. É cabível a celebração de acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado;

3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo;

4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso.

O STF acolheu o entendimento no sentido de que a expressão “lei penal”, contida no artigo 5º, inciso XL, da Constituição deve ser interpretada como gênero.

Dessa forma, a expressão engloba tanto as leis penais em sentido estrito quanto as leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado (por exemplo, aquelas relativas ao direito de queixa ou de representação, à prescrição ou decadência, as causas de extinção de punibilidade) ou que interferem diretamente no estado de liberdade do indivíduo (por exemplo, admissão de fiança e a alteração das hipóteses de cabimento de prisão cautelar).

Todas essas são normas, que quando beneficiarem o réu, devem retroagir, nos termos do dispositivo constitucional em comento.

Ao acordo de não persecução penal, por conseguinte, deve ser aplicada idêntica interpretação, pois o caráter híbrido da norma (material-processual) é evidente.

Embora tenha sido inserido no Código de Processo Penal, consiste em uma medida despenalizadora, com aptidão para atingir a própria pretensão punitiva estatal. Consoante explicita a lei, o cumprimento integral do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar maus antecedentes ou reincidência.

Confissão, trânsito em julgado e exemplos de aplicação das teses

Outrossim, o STF, no mesmo julgamento, fixou outras duas importantes teses, que, certamente, impactarão diretamente milhares de processos em tramitação.

Além de reconhecer a aplicação retroativa no ANPP, isto é, aos casos em andamento quando da entrada em vigência da Lei n. 13.964/2019, o STF decidiu que (1) não há necessidade de que o réu tenha apresentado confissão até aquele momento; (2) não haver sido reconhecido o trânsito em julgado do processo.

As referidas teses possuem, seguramente, potencial para alterar a história de inúmeros processos em tramitação nas diversas instâncias do Poder Judiciário brasileiro.

Com o objetivo de facilitar a compreensão do tema, citarei dois exemplos em que poderão ser aplicadas as teses fixadas pelo STF no julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF.

Primeiro exemplo: Infração penal, com pena mínima inferior a 4 anos, praticada em 2014.

Em abril de 2020, foi proferida a sentença penal condenatória em primeiro grau.

O tribunal manteve a condenação. Atualmente, o processo se encontra no STJ.

Imagine que um determinado cidadão responda a uma ação por infração penal praticada no ano de 2014. A pena mínima fixada para o delito era inferior a 4 anos, consoante exigido pelo artigo 28-A, caput, do CPP.

O processo seguiu o seu trâmite regular e, em abril de 2020, antes de Juízo proferir a sentença, a defesa postulou a aplicação do ANPP, retroativamente, por se tratar de uma norma penal mais benéfica [1].

O juízo não acolheu a tese de aplicação retroativa do ANPP e, na sequência, julgou procedente o pedido para condenar o acusado pela prática do crime.

O acusado interpôs o recurso perante o tribunal [2], mas não obteve êxito, ou seja, a condenação foi mantida.

Na sequência, foi interposto um recurso especial. Este recurso foi admitido e se encontra, atualmente, concluso para a análise do ministro relator no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Não existe dúvida, portanto, que ainda não ocorreu o trânsito em julgado.

Constata-se, assim, que estão preenchidos os requisitos exigidos pelo STF para a aplicação retroativa do ANPP: primeiro, porque o processo estava em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964/2019; segundo, por não ter sido reconhecido o trânsito em julgado.

Segundo exemplo: Infrações penais praticadas em 2016.

A pena mínima somada dos delitos alcançou 10 anos, já que cometidos em concurso material (art. 69 do CP).

Sentença penal condenatória (em 2019): pena fixada em 10 anos de reclusão.

O tribunal, ao reconhecer a existência de continuidade delitiva (artigo 71 do CP), deu provimento ao recurso e fixou a pena em 3 anos e 9 meses de reclusão, negou, contudo, a incidência do ANPP (em 2020).

O STJ negou provimento ao recurso especial (em 2022).

Atualmente, o processo se encontra no STF.

Um cidadão responde a uma ação penal por infrações penais praticadas no ano de 2016.

A pena mínima fixada para os delitos alcançou o total de dez anos, porquanto a acusação, ao ofertar a denúncia ou a queixa, sustentou que os crimes foram praticados em concurso material, nos termos do artigo 69 do Código Penal.

O processo seguiu o seu trâmite regular e, em novembro de 2019, o juízo julgou procedente os pedidos da acusação e condenou o acusado pelas infrações penais, em concurso material, motivo pelo qual fixou a pena em dez anos de reclusão, em regime inicial fechado.

O acusado interpôs o recurso cabível ao tribunal e, em março de 2020, apresentou as razões recursais, com os seguintes fundamentos.

Primeiro, os crimes, embora tenham ocorridos, não foram praticados em concurso material (artigo 69 do CP), mas sim em continuidade delitiva (artigo do 71 do CP), motivo pelo qual o recurso deve ser provido para fixar a pena em 3 anos e 9 meses de reclusão.

Segundo, caso o recurso seja provido, o acusado requer a aplicação do ANPP, já que a Lei nº 13.964/19, ao entrar em vigor no dia 23/1/2020, deve ser aplicada de forma retroativa, por se tratar de norma penal mais benéfica.

Ademais, com o provimento do recurso e a redução da pena pelo tribunal [3], está preenchido o requisito objetivo exigido pelo artigo 28-A, caput, do CPP, já que as infrações penais praticadas, em continuidade delitiva, possuem “pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”.

O tribunal deu provimento ao recurso interposto para reconhecer a existência de continuidade delitiva entre as infrações penais, por conseguinte, reduziu a pena de 10 anos para 3 anos e 9 meses.

Deixou, contudo, de reconhecer a aplicação do ANPP retroativamente, por entender que a sentença foi proferida antes do início da vigência da Lei n. 13.964/19 (em 23/1/2020), que introduziu o ANPP no ordenamento jurídico.

O acusado interpôs o recurso especial.

O Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2022, negou provimento ao recurso, após salientar que ambas as Turmas criminais (quinta e sexta) possuem entendimento consolidado no sentido de que “o acordo de não persecução penal – ANPP, instituído pela Lei n. 13.964/2019, não tem aplicação retroativa às persecuções criminais já iniciadas quando da sua entrada em vigor, nas quais já tenha ocorrido o recebimento da denúncia”.

Em seguida, o acusado interpôs um recurso extraordinário, com a alegação de que os Acórdão do Tribunal e do STJ violaram o artigo 5º, XL, da Constituição Federal de 1988 (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”).

O recurso extraordinário foi admitido e, no momento, se encontra concluso para a análise do ministro relator no STF.

Constata-se, assim, que também estão preenchidos os requisitos exigidos pelo STF para a aplicação retroativa do ANPP: primeiro, porque o processo estava em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964/2019; segundo, por ainda não ter sido foi reconhecido o trânsito em julgado.

Como proceder

Cidadãos que enfrentem processos penais em situações similares àquelas apresentadas nos exemplos acima, deverão indagar: quais são as providências que devo adotar?

A primeira providência e, a mais relevante, é a análise pormenorizada do processo penal em andamento, com o objetivo de averiguar se estão preenchidos os requisitos exigidos pelo STF para a aplicação retroativa do ANPP.

Conquanto que o caso concreto em discussão se adeque aos parâmetros fixados na decisão do STF, o interessado poderá requerer, fundamentadamente, ao tribunal no qual se encontre o processo que reconheça a incidência retroativa do ANPP.

O tribunal, por sua vez, ao verificar a compatibilidade do caso com as teses do julgamento do STF no Habeas Corpus nº 185.913/DF, deverá determinar a conversão da ação penal em diligência, com a finalidade de oportunizar ao Ministério Público a propositura do ANPP, nos termos do artigo 28-A do CPP.

Ademais, o ministro Gilmar Mendes, no dia 20/09/2024, ao prolatar uma nova decisão no Habeas Corpus nº 185.913/DF, asseverou a eficácia vinculante das teses fixadas no julgamento:

“A decisão proferida nestes autos projeta efeitos em relação a todos os juízos e tribunais, na forma do art. 927, V, do CPC. Em caso de afronta, cabe habeas corpus perante o Juízo competente e, caso ele seja indeferido, a defesa pode alçar o assunto ao Tribunal mediante o recurso cabível.”

Em conclusão, impõe-se a qualquer cidadão que responda a um processo penal, o dever de avaliar se as recentes teses de julgamento fixadas pelo STF impactam a sua situação processual ou não.

 


[1] Necessário lembrar a Lei nº 13.964/19, que instituiu o ANPP, iniciou sua vigência em janeiro de 2020.

[2] Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.

[3] STJ: AgRg no HC n. 879.014/PR, relator ministro Jesuíno Rissato, desembargador convocado do TJDFT, 6ª Turma, DJe de 25/4/2024; AgRg no REsp n. 2.098.985/SC, ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 26/2/2024, DJe 28/2/2024.

Autores

  • é advogado do GMPR Advogados, pós-graduado em Direito Administrativo pelo Instituto Goiano de Direito Administrativo (Idag) e Faculdade de Ensino Superior do Centro do Paraná, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás (Esmeg), com extensão universitária em Direito para a Saúde pela Universidade de São Paulo (USP).

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