Prática Trabalhista

Novas regras do CNJ para redução de reclamações trabalhistas: fato ou fake?

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

    View all posts
  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

    View all posts

3 de outubro de 2024, 11h14

Nesta semana teve imensa repercussão na imprensa a aprovação do Ato Normativo no bojo do Processo nº 0005870-16.2024.2.00.0000 [1] pelo Plenário do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o qual trouxe, doravante, novas diretrizes com o intuito de reduzir a litigiosidade de ações trabalhistas no país. Em linhas gerais, reformulou-se o procedimento de acordo entre o empregado e o empregador que dá ampla quitação ao contrato de trabalho, vedando que, futuramente, seja ajuizada uma ação trabalhista.

Spacca

Segundo a visão do presidente do CNJ e do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Luís Roberto Barroso, que apresentou a proposta normativa, aqui no Brasil existe uma litigiosidade demasiada que, na concepção de Sua Excelência, obstaculiza a formalização de postos de trabalho e investimentos [2].

Nesse sentido, o assunto já despertou diversos questionamentos jurídicos, a saber: existem regras a serem observadas para a realização deste procedimento de transação? O CNJ, de fato, possui efetiva competência para estabelecer tais regras normativas? E, mais, em observância ao contido neste ato normativo, na prática haverá uma real redução da litigiosidade?

Por óbvio, considerando a polêmica do assunto, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, nesta ConJur [3], razão pela qual agradecemos o contato.

Retrospecto trabalhista

De início, é importante ressaltar que quando da aprovação da Lei 13.467/2017, também conhecida como Lei da Reforma Trabalhista, um os fundamentos para a sua legitimação foi justamente a promessa de novos postos de trabalho. Contudo, em sentido contrário, após sete anos de sua criação, o que se verificou foi que a taxa de desemprego permaneceu alta.

Aliás, com o título “Sete anos depois, reforma trabalhista é reconhecida como precarizante”, este foi o artigo escrito aqui pelo Procurador Regional do Ministério Público do Trabalho aposentado  Raimundo Simão de Melo [4]:

“Como sabido, houve mesmo período conturbado depois da reforma trabalhista de 2017, com o desemprego nas alturas, a consolidação da precarização do trabalho, inclusive com aumento dos “empregos intermitentes” e a economia, que permaneceu em recessão. Os sindicatos, sem custeio para suas atividades, enfraqueceram-se de vez nas negociações coletivas, inclusive diante do negociado sobre o legislado, cujo objetivo não foi adicionar melhores condições de trabalho, como sempre ocorreu, mas, retirar e diminuir direitos conquistados ao longo dos anos.

O desemprego passou de 11,2% em maio de 2016 para 13,1% em abril de 2018, chegando a 11,7% no trimestre fechado em outubro de 2018, atingindo 12,8 milhões de brasileiros desempregados em dezembro de 2018.”

Novas regras

Segundo as novas regras do CNJ, para que os acordos extrajudiciais entre as partes tenham o efeito de quitação ampla, algumas exigências deverão ser observadas, dentre elas:

Spacca

(i) previsão expressa do efeito de quitação ampla, geral e irrevogável no acordo homologado;
(ii) assistência das partes por advogado(s) devidamente constituído(s) ou sindicato, vedada a constituição de advogado comum;
(iii) assistência pelos pais, curadores ou tutores legais, em se tratando de trabalhador(a) menor de 16 anos ou incapaz; e
(iv) a inocorrência de quaisquer dos vícios de vontade ou defeitos dos negócios jurídicos de que cuidam os arts. 138 a 184 do Código Civil, que não poderão ser presumidos ante a mera hipossuficiência do trabalhador.

Entrementes, os artigos 138 a 184 do Código Civil citados na resolução do CNJ tratam de erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo, lesão, fraude contra credores e invalidade do negócio jurídico. Logo, ao que se pode notar, é possível, doravante, que haja uma ampla interpretação sistemática destes dispositivos legais pelo Judiciário que irá homologar o acordo.

Além disso, o ato normativo dispõe também que tal quitação não abrange:
(i) pretensões relacionadas a sequelas acidentárias ou doenças ocupacionais que sejam ignoradas ou que não estejam referidas especificamente no ajuste entre as partes ao tempo da celebração do negócio jurídico;
(ii) pretensões relacionadas a fatos e/ou direitos em relação aos quais os titulares não tinham condições de conhecimento ao tempo da celebração do negócio jurídico;
(iii) pretensões de partes não representadas ou substituídas no acordo; e
(iv) demais títulos e valores expressa e especificadamente ressalvados.

Nesse sentido, essas condições estabelecidas pelo referido Ato Normativo do CNJ terão a eficácia liberatória limitada aos títulos e valores constantes no referido instrumento, exceto os casos de nulidades.

Acontece que, de um lado, para que estes acordos sejam homologados extrajudicialmente, os interessados precisam provocar os órgãos judiciários, sendo vedada a homologação parcial da transação. Lado outro, as atuais regras só serão aplicadas aos acordos que ultrapassem o valor de 40 salários-mínimos durante os primeiros seis meses de vigência da resolução.

Claro está, portanto, que o(a) juiz(íza) do trabalho continuará incumbido de analisar a validade e a legalidade do acordo entabulado entre as partes.

Procedimento de jurisdição voluntária

Frise-se que, ao que parece, não se trata de uma novidade, tendo em vista a Lei nº 13.467/2017 inseriu os artigos 855-B a 855-E na CLT, os quais versam acerca do procedimento de jurisdição voluntária para a homologação de acordo extrajudicial. A propósito, esta temática já foi abordada em outra oportunidade nesta coluna, de sorte que fica aqui a dica de sua leitura [5].

Outrossim, vale dizer que as novas regras, ao que parecem, são mais complexas que as próprias normativas já existentes na CLT e que versam sobre o procedimento de jurisdição voluntária, razão pela qual fica a dúvida acerca da eventual usurpação da competência pelo CNJ ao criar diretrizes sem prévia previsão legislativa, em total afronta ao princípio da legalidade.

Quitação ampla e restrita à luz do TST

É sabido que o Tribunal Superior do Trabalho já foi provocado a emitir juízo de valor acerca de cláusula com quitação ampla, geral e irrestrita do contrato de trabalho, de modo que o entendimento caminhou para a validação do ajuste entre as partes. Em seu voto, a ministra relatora ponderou [6]:

“A jurisprudência desta Corte Superior vem se firmando no sentido de que, em processo de jurisdição voluntária, compete ao magistrado verificar se estão presentes os requisitos previstos nos artigos 855-B a 855-E da CLT para a homologação da avença, como o início por petição conjunta, a representação das partes por advogado, se a s partes estão representadas por advogados diversos , bem como se estão presentes os pressupostos de validade do negócio jurídico, conforme estabelecido no artigo 104 do Código Civil.

Dessa forma, não havendo notícia de fraude, coação, ou qualquer outro defeito apto a macular o negócio jurídico realizado entre as partes, deve ser respeitada a vontade das partes e reconhecida a quitação do acordo nos termos em que pactuada, inclusive com cláusula de quitação ampla, geral e irrestrita do contrato de trabalho, se houver, sob pena de ofensa à legalidade e ao ato jurídico perfeito”.

Conclusão

À vista disso, ao se falar sobre acordo entre empregado e empregador, verifica-se que o entendimento do TST é no sentido de que estabelecidas as diretrizes de validade do negócio jurídico, com base no artigo 104 do Código Civil [7], sem a existência de fraude, coação ou vício de consentimento, poderá ser concedida a quitação ampla e geral do contrato de trabalho.

Em arremate, impende destacar que nos termos do artigo 22, I, da CRFB [8], a competência para legislar sobre direito do trabalho é privativa da União, de sorte que estas novas regras poderão judicializadas quanto ao fato de terem sido estabelecidas por meio de uma resolução administrativa do CNJ.

Mais a mais, considerando a promessa não alcançada pela Lei 13.467/2017, qual seja, o aumento de empregos e postos de trabalhos, não se sabe, ao certo, se tais regras irão diminuir o número de ações trabalhistas, ou, ao invés disso, se fomentarão ainda mais a judicialização, seja pelo nascimento da resolução com claro vício de constitucionalidade, seja pelas minucias que poderão levar este acordo a ser anulado pelo Poder Judiciário.

Portanto, fica a reflexão para você leitor, afinal, a Resolução do CNJ para combater a litigiosidade trabalhista é realmente “fato” ou “fake”?

______________________________

[1] https://www.cnj.jus.br/justica-do-trabalho-podera-homologar-acordos-extrajudiciais-sem-ajuizamento-de-acao/

[2] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/cnj-aprova-novas-regras-para-reduzir-reclamacoes-trabalhistas-na-justica/. Acesso em 1.10.2024.

[3] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[4] Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-set-27/sete-anos-depois-reforma-trabalhista-e-reconhecida-como-precarizante/. Acesso em 01.10.2024.

[5] Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-abr-21/pratica-trabalhista-consequencias-invalidade-acordos-simulados-justica-trabalho/. Acesso em 01.10.2024.

[6] RR-1000727-96.2023.5.02.0084, 8ª Turma, Relatora Ministra Delaide Alves Miranda Arantes, DEJT 20/08/2024.

[7] CC, Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei.

[8] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.

Autores

  • é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista, sócio fundador de Calcini Advogados, com atuação estratégica e especializada nos tribunais (TRTs, TST e STF), docente da pós-graduação em Direito do Trabalho do Insper, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do comitê técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é advogado de Calcini Advogados. Graduação em Direito pela Universidade Braz Cubas. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito. Especialista em Direito Contratual pela PUC-SP. Especialista em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha). Especialista em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC - IUS Gentium Coninbrigae), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Pós-graduando em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Pesquisador do Núcleo de pesquisa e extensão: "O Trabalho Além do Direito do Trabalho" do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da USP, coordenado pelo professor Guilherme Guimarães Feliciano.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!