Opinião

Arrendamento rural: controvérsias jurídicas na visão do STJ

Autor

  • Mathias Menna Barreto Monclaro

    é advogado especialista em Processo Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacellar e em Gestão de Negócios na Fundação Dom Cabral LLM em Direito Corporativo pela Universidade Positivo e ex-membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR.

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3 de outubro de 2024, 18h28

No contexto do agronegócio brasileiro, o arrendamento e a parceria rural são institutos fundamentais, regulados pelo Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) e pelo Decreto 59.566/66. Esses contratos desempenham papel essencial na exploração econômica, permitindo que produtores utilizem áreas de terceiros para fins agrícolas ou pecuários.

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Contudo, apesar de ambos terem finalidades semelhantes, suas estruturas jurídicas apresentam importantes distinções que geram debates recorrentes na doutrina e jurisprudência, especialmente no que tange aos prazos, às obrigações das partes e à aplicação de normas de proteção ao arrendatário.

O arrendamento rural caracteriza-se pelo pagamento de um valor estipulado a título de aluguel da terra, permitindo ao arrendatário o uso do imóvel para a exploração de atividades rurais. Em contraste, a parceria rural envolve uma divisão de riscos e resultados, onde o parceiro-outorgado contribui com trabalho e, eventualmente, capital, compartilhando com o proprietário os lucros ou prejuízos da produção.

Essa distinção essencial influencia diretamente a interpretação das obrigações contratuais e os direitos das partes.

Prazos e renovações nos contratos de arrendamento rural

Uma das questões mais relevantes no arrendamento rural é a fixação dos prazos contratuais. Conforme previsto no Decreto 59.566/66, os prazos mínimos visam a garantir a estabilidade e viabilidade econômica da atividade agrícola.

Eles variam de três a sete anos, dependendo da atividade desenvolvida, sendo que o menor prazo se aplica à exploração de lavouras temporárias ou pecuária de pequeno porte, enquanto o maior prazo se destina à exploração florestal.

Spacca

Em diversos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, como no REsp 1.336.293/RS, a 3ª Turma destacou a importância de ajustar os prazos contratuais às particularidades da atividade exercida.

No referido caso, decidiu-se que a criação de gado bovino deveria ser considerada atividade de médio ou grande porte, exigindo prazos contratuais adequados ao ciclo produtivo, como criação, engorda e abate, reafirmando a necessidade de interpretar os contratos agrários conforme a natureza da atividade explorada.

Um dos temas relevantes atinentes a tal temática é a vedação à celebração de arrendamentos com prazos inferiores aos mínimos previstos em lei, tendo o STJ pacificado a questão nos Recursos Especiais 1.455.709/SP e 1.568933/MS, registrando que “os prazos mínimos de vigência para os contratos agrários constituem norma cogente e de observância obrigatória, não podendo ser derrogado por convenção das partes contratantes”.

Além dos prazos, a renovação automática dos contratos de arrendamento é outro ponto crucial. O Estatuto da Terra exige que o arrendador notifique o arrendatário com antecedência mínima de seis meses caso pretenda modificar as condições contratuais ou retomar o imóvel.

Na ausência dessa notificação, o contrato é prorrogado automaticamente nas mesmas condições, conforme estabelecido no artigo 95 do Estatuto. A jurisprudência tem reafirmado essa regra, como no REsp 1.786844/MT, da 4ª Turma, relatado pelo ministro Salomão, protegendo o arrendatário e garantindo a continuidade da exploração rural, nos seguintes termos:

O Estatuto da Terra prevê a necessidade de notificação do arrendatário seis meses antes do término do prazo ajustado para a extinção do contrato de arrendamento rural, sob pena de renovação automática.”

Tal posicionamento também se mostra remansos na 3ª Turma, como se vê do REsp nº 1277085/AL, relatado pelo ministro Cueva.

Pagamento em produtos agrícolas e sua validade jurídica

Outra controvérsia recorrente envolve a utilização de produtos agrícolas como forma de pagamento nos contratos de arrendamento. A legislação agrária brasileira estabelece que tais contratos não podem prever pagamento em mercadorias, sob pena de nulidade dessa cláusula.

No entanto, isso não impede que o credor busque a cobrança judicial das dívidas decorrentes do contrato, como decidiu o STJ no REsp 1.266.975/MG, da 3ª Turma. Nesse caso, o tribunal entendeu que, mesmo que a cláusula seja nula, o valor devido pode ser apurado por arbitramento, em liquidação de sentença, o que possibilita a continuidade das relações contratuais sem ferir a legislação.

De mesma sorte, a 4ª Turma julgou, em agosto de 2022, o Agravo Interno no Recurso Especial nº 1546289/MT, relatado pelo ministro Salomão, quando reiterou seu posicionamento, no sentindo de que:

(…)Segundo deflui dos arts. 95, XI, ‘a’, da lei n. 4.504/1964 (Estatuto da Terra), e 18, parágrafo único, do Decreto n. 59.566/1966, é defeso ajustar como preço do arrendamento quantidade fixa de frutos ou produtos, ou o seu equivalente em dinheiro, sendo nula a cláusula contratual que encarta tal previsão.”

Direito de preferência e justiça social

Ainda que o direito de preferência não seja o foco principal nas discussões sobre arrendamento rural, ele desempenha um papel relevante no equilíbrio das relações agrárias. Previsto no Estatuto da Terra, esse direito garante ao arrendatário a prioridade na compra do imóvel em caso de alienação. O objetivo é evitar que o arrendatário seja forçado a deixar a terra onde investiu e produziu, além de preservar a função social da propriedade, incentivando a desconcentração fundiária.

A jurisprudência do STJ tem destacado que o direito de preferência deve ser interpretado de acordo com o princípio da justiça social, como no REsp 1.447.082/TO, da 3ª Turma, onde o tribunal afirmou que a proteção deve ser direcionada ao pequeno agricultor familiar, em detrimento de grandes grupos empresariais que possam usar essa prerrogativa de maneira indevida.

Em complemento ao supracitado caso concreto, o STJ, recentemente (em 4/9/2024), reiterou essa posição em acórdão da 4ª Turma, no bojo do Agravo Interno no Recurso Especial 1.622.205/PR, de relatoria do ministro João Otávio de Noronha, assegurando o direito ao arrendatário exercer a preferência, desde que pague o valor da transferência efetivada a terceiros, constante do registro público, desde que corrigida monetariamente.

Assim, o direito de preferência visa garantir a permanência do homem do campo na terra, promovendo o acesso à propriedade e a justiça agrária.

Continuidade dos contratos em caso de falecimento

Outra questão frequentemente debatida nos contratos agrários é a continuidade do contrato em caso de falecimento de uma das partes. O STJ tem decidido que a morte do arrendador ou parceiro-outorgante não extingue automaticamente o contrato, permitindo que os herdeiros assumam o direito de retomada do imóvel ao término do contrato, desde que cumpram as formalidades legais.

Essa interpretação, consolidada em casos como o REsp 1.459.668/MG, reforça a segurança jurídica e a continuidade da exploração rural, evitando restrições que possam prejudicar as atividades econômicas desenvolvidas na propriedade.

Aliás, no bojo do Recurso Especial 1.758.946/SP, definiu a 3ª Turma, em voto do ministro Belizze, que:

A morte da arrendadora/usufrutuária (causa de extinção do usufruto, nos termos do art. 1.410, I, do CC) durante a vigência do contrato de arrendamento rural, sem a respectiva restituição ou reivindicação possessória pelo proprietário, tornando precária e injusta a posse exercida pelos sucessores daquela, não constitui óbice ao exercício dos direitos provenientes do contrato de arrendamento rural, no interregno da efetiva posse, pelo espólio da usufrutuária perante o terceiro arrendatário, porquanto diversas e autônomas as relações jurídicas de direito material de usufruto e de arrendamento.”

Benfeitorias e indenizações

As benfeitorias realizadas pelo arrendatário ou parceiro durante a vigência do contrato também são objeto de litígios frequentes. A legislação agrária assegura o direito à indenização por benfeitorias úteis e necessárias, salvo acordo em contrário entre as partes. No entanto, o STJ já decidiu que cláusulas que renunciem previamente ao direito de indenização por benfeitorias necessárias são nulas.

No REsp 1.182.967/RS, o STJ reconheceu que as partes podem acordar formas alternativas de compensação, como a extensão do prazo contratual, para equilibrar os investimentos realizados no imóvel.

Considerações finais

As controvérsias em torno do arrendamento rural e da parceria rural demonstram a complexidade das relações jurídicas agrárias e a importância de uma interpretação adequada da legislação para garantir a continuidade e o desenvolvimento do agronegócio.

A jurisprudência do STJ tem buscado conciliar os interesses das partes envolvidas, sempre com foco na função social da terra e na proteção do pequeno produtor. À medida que a legislação e a jurisprudência evoluem, novos desafios surgem, mas o objetivo central permanece: garantir que o uso da terra atenda não apenas aos interesses econômicos, mas também à justiça social e à sustentabilidade.

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