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A agnotologia jurídica: a produção da ignorância no Direito

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3 de outubro de 2024, 8h00

1. Os mercadores da dúvida e da desinformação: de como tudo isso não é por acaso

A famosa historiadora da ciência Naomi Oreskes analisa, em entrevista concedida a Marcelo Leite, na Folha de S.Paulo, a produção da ignorância e da desinformação como componentes importantes para a crise climática. Há forte grau de negacionismo nessa “evolução” da ignorância, como, aliás, vimos na última pandemia.

Para Naomi, as mídias sociais turbina(ra)m a produção estrutural de ignorância acerca do aquecimento global e da negação da ciência.

Naomi Oreskes publicou com Erik M. Conway, em 2010, um livro que foi um verdadeiro petardo contra a tese de que não existe aquecimento global e de que não há influência humana nele: Merchants of Doubt (mercadores de dúvida) é o título.

A questão central está no subtítulo: “Como um punhado de cientistas obscureceu a verdade sobre questões que vão da fumaça de tabaco ao aquecimento global“. O livro é um marco em novo estudo, a agnotologia, que se define como a investigação de sistemas de produção e manutenção estruturais da ignorância. Agnotologia é o resultado das palavras gregas agnosis (ignorância) e logia (estudo).

2. A agnotologia no Direito

É aqui que entra o Direito. Com o propósito de desenvolver uma genealogia do senso comum teórico dos juristas, e, assim, examinando o estado da arte do ensino jurídico e das práticas jurídicas (que descrevi no recente Ensino Jurídico e(m) Crise – Ensaio contra a simplificação do Direito, ed. Contracorrente), sempre invocando, é claro, o “princípio da caridade epistêmica” (Blackburn e Davidson), podemos nos indagar:

De que modo um conjunto de professores e operadores jurídicos, orgânicos ou não, obscurece, há décadas, a verdade sobre questões que vão desde (i) o próprio conceito de verdade, quando preferem lidar com uma fraude epistemológica como “verdade real”, que qualquer estudante de filosofia facilmente desmascara, (ii) da equivocada leitura de Kelsen, que é “ensinado” como o autor que “inventou a aplicação da letra fria da lei”, (iii) da errônea conceituação do positivismo, “ensinado” como sendo o antigo textualismo, (iv) do uso errôneo da ponderação – numa leitura absolutamente equivocada de Alexy, causando graves danos a direitos e garantias, (v) da leitura de Ferrajoli-sem-ler-Ferrajoli como sendo um textualista, quando é ele quem construiu sua teoria justamente contra o paleo-juspositivismo-textualista, (vi) da confusão que a dogmática jurídica faz ao misturar o que é não-misturável, como o livre convencimento (filosofia da consciência) com verdade adequacionista, trazendo uma confusão no campo da compreensão do direito e da prova; (vii) da transformação do Direito em uma mera instrumentalidade, sem controles epistemológicos; (viii) do inusitado conceito de que o direito é indeterminado, com o que se abriu a caixa de pandora da jurisprudencialização do Direito – o realismo jurídico, por meio do qual os Tribunais Superiores foram transformados em Cortes de Precedentes, produzindo regras gerais e abstratas, catapultando o Judiciário à condição de legislador, fatores que, reproduzidos sistematicamente por um ensino jurídico deficitário, transformaram a própria doutrina em um apêndice da tese de que o Direito é o que o poder (judiciário) diz que é.

E a lista é longa, a qual poderiam se acrescentados a fragilização da coisa julgada sob o olhar complacente da comunidade jurídica, a substituição gradual da mão humana pela inteligência artificial, a jurisprudência defensiva que aperta seu torniquete dia a dia, as sustentações orais gravadas-que-ninguém-assiste, o aumento crescente do monocratismo, a terceirização de atos, o distanciamento da magistratura das partes e dos causídicos, a humilhação cotidiana dos advogados e assim por diante.

Spacca

A pergunta que se impõe: não se trataria, aqui, de investigar as razões pelas quais essa produção de ensinamento equívoco e práticas destituídas de cientificidade vêm assumindo um poder praticamente incontrolável? Basta ver o modo como são decididos os embargos de declaração e despachados os recursos nos tribunais (mormente nos superiores), como se a antiga regra de que tribunais decidem colegiadamente tenha sido derrogada pelo novo modo monocrático de decidir. Espantoso que isso não cause controvérsias.

Não teríamos de discutir esses temas todos? Ou devemos seguir “trabalhando de dia para comer de noite”, como diz um adágio popular para mostrar quando vai se levando a vida como dá, empurrando com a barriga?

Dizendo de outro modo (ou investigando de outra maneira) – e aqui se abre espaço para agnotologia jurídica:

até que o ponto esse estado da arte da produção jurídica no Brasil não é fruto de uma intencionalidade sistêmica de um certo establishment jurídico ou é simplesmente produto de uma mediocridade bruta e crua?

Façamos uma reflexão: por trás disso tudo não pode haver, de fato, um sistema de “produção e manutenção estrutural da ignorância”, ignorância entendida, é claro, no sentido de ignorare, desconhecimento e desinformação?

Por exemplo, por qual razão se ignora as leis e a CF de forma flagrante e isso não causa reação na comunidade jurídica? Indignamo-nos no varejo e nos omitimos no atacado? Mas não nos damos conta disso.

Afinal, por qual razão juízes, promotores e tribunais usam conceitos equivocados como ponderação, questão facilmente demonstrável, e, apesar de isso causar alterações no âmbito da aplicação do Direito, mormente no plano das liberdades públicas (quantas pessoas são condenadas com a máxima “ponderando o direito à liberdade e o interesse público”, absurdo que jamais foi dito por Alexy?), isso é ignorado ou até referendado pela dogmática jurídica dominante?

Para agravar, as faculdades – e são muitas – e até a academia (também são muitas) igualmente ensinam erroneamente conceitos como ponderação – o que mostra que o problema é estrutural, como diz a professora Naomi. De que adianta fazer teses denunciando o mau uso de teorias ou teses como a “ponderação”, se as práticas ignoram a ciência solenemente?

Do mesmo modo, até mesmo em discursos pretensamente mais sofisticados, é possível perceber que a dogmática jurídica cai em armadilhas como o criterialismo, pelo qual se constroem discursos que, a pretexto de dar significação ao Direito, substitui-o, valendo os conceitos criteriais mais do que o próprio Direito. Ora, parece evidente e facilmente demonstrável que isso é um problema epistemológico – ou de ausência de epistemologia –, outro conceito maltratado pela dogmática jurídica.

Por que se continua a dizer nas salas de aula (e não só nelas) que o positivismo é uma forma de assegurar certeza nas decisões (segurança – sic), quando é facilmente demonstrável que o positivismo é uma tese empirista-descritivista que não se preocupa com a decisão? Será mesmo que os juristas que falam de Kelsen não se deram ao trabalho de lê-lo? Bastaria um pouco de textualismo, nesse caso, para percebermos a sua tese da discricionariedade. Está lá no breve capítulo 8 de sua TPD, de maneira hialina, que a decisão é um ato de vontade. E, como sabemos, in claris cessat interpretatio (contém ironia). Por qual razão não se busca os conceitos corretos cunhados na tradição desse fenômeno da teoria do direito? Isso é fruto de descuido ou é fruto de “um longo trabalho”?

O manejo dos conceitos, em tempos de simplificação da linguagem (basta ver o projeto do CNJ), torna (ou quer tornar) o mundo em uma imediatez, naquilo que Hegel, na sua Fenomenologia do Espírito, criticava chamando de “certeza sensível”: uma apreciação ingênua do e sobre o mundo. Na hermenêutica chamamos a isso de “dimensão da curiosidade”, “do falatório e da queda junto ao presente”, o que faz com que nos ocupemos daquilo que é habitual. Falta, pois, epistemologia no direito. O lidador mediano do direito possui “certezas sensíveis”.

A professora Naomi é otimista (a meu ver) e diz que a ciência pode ser o remédio para isso. Mas, pergunto, onde está a ciência? Não teria ela sido esquecida-escondida? Não há, aqui, espaço, portanto, para os estudos da agnotologia jurídica? É disso que pretendo tratar aqui e em outros espaços.

E a lista é interminável, como demonstro em diversos artigos e livros, destacando o ponto que hoje parece ser o mais grave: por qual razão se insiste na tese de que é possível “construir” precedentes pro futuro, se o erro dessa tese é facilmente demonstrável em face de uma tradição que se estabeleceu no restante do mundo?

3. As redes sociais e a (re)produção da desinformação jurídica: os problemas da falta de epistemologia

Parece evidente que as redes sociais colaboram para esse estado de coisas. Mas o Direito é um caso especial de construção interna da crise. Isto é, a produção da desinformação é endógena, reproduzida por uma linguagem simplificada e pela cultura de resumos e atalhos de sentido. Trata-se do império do simples.

A professora Naomi diz que a solução para o enfrentamento desse império da desinformação (ou da produção da ignorância) é fazer – e usar – ciência. E eu acrescento: é possível exigir evidências científicas dos argumentos usados em decisões e trabalhos jurídicos (ver aqui).

O problema é que no Direito isso se torna um problema. Onde está (e qual é) o espaço da ciência no Direito? As teorias céticas que dizem que o Direito é indeterminado, por serem pragmatistas, não dão espaço para a ciência, entendida como um discurso rigoroso que pode ser testado, epistemologicamente construído, no sentido da perquirição de suas condições de possibilidade (o que aliás se chama de epistemologia). Isto é, não se pode esperar de posturas realistas algo mais do que teorias políticas de poder. Isso se aplica à dogmática refém do criterialismo – reprodutora dos enunciados jurisprudenciais.

Portanto, antes de tudo, há que se compreender o conceito de epistemologia. Esse é o espaço daquilo que se pode denominar de “discurso científico do Direito”. Precisamos saber que epistemologia é fundamentalmente discurso de segundo nível; a busca pelas condições de possibilidade do conhecimento. Trata-se, portanto, de uma disciplina crítica, como fica claro em filósofos que vão de Kant a Bachelard, de Kelsen a Susan Haack. Como sabemos, no entanto, temos dificuldade em reconhecer no Direito a importância da tradição teórica. Parece às vezes que os conceitos têm grau zero de sentido. E que este pode ser atribuído via enunciados. Assim, não precisamos mais estudar “a parte difícil e chata” da coisa.

Qual será o estatuto epistemológico do Direito, se examinarmos, por exemplo, decisões judiciais destituídas do mínimo grau de racionalidade, proferidas ad hoc? O que é isto – a epistemologia? Fazer essa pergunta já é muito mais epistemologia do que fazer um repositório de métodos de consideração de prova, por exemplo, e chamar a isso de “epistemologia”. Por outro lado, está na moda falar, por exemplo, em epistemologia da prova ou do processo para se defender, ao fim e ao cabo, uma espécie de realismo ingênuo entre intelecto e mundo, palavras e coisas (ou a imediatez de que falava Hegel). Ignora-se, assim, a dimensão eminentemente crítica desta disciplina. Faz sentido apostarmos na antiga verdade como adequação (verdade correspondencial), ignorando o giro copernicano de Kant, a virada linguística etc.? Como fazer ciência jurídica sem responder a esses questionamentos mínimos?

Tudo para dizer que a falta de epistemologia, a simplificação da linguagem (esse flagelo que veio com as redes sociais) e o advento fagocitatório da inteligência artificial colocam o Direito “contra as cordas”, nocauteando a dimensão teórica de seus desacordos e, assim, as possibilidades emancipatórias dos conceitos que estruturam o Estado Democrático de Direito. Veja-se: o estágio atual do Estado Democrático de Direito não foi alcançado sem o Direito. Só o foi por causa do Direito. Por que então maltratá-lo?

E, mais ou menos tão grave quanto, se o paradigma ou postura ou discurso dominante é o realismo jurídico, agravado pelo entusiasmo acrítico para com a técnica [1], já não há Direito. Há apenas o que dele se diz, perdendo-se inclusive a relação “texto-norma”. Descola-se o sentido do texto, com a construção de Direito ex post facto.

4. O Direito é apenas um instrumento de poder? Os céticos têm razão, afinal?

O resultado dessa fragilização antiepistemológica é a transformação do Direito em uma instrumentalidade, uma mera ferramenta a serviço do poder e de discursos estratégicos. Coaches podem manipular Direito, a partir de glosas nas redes sociais feitas sobre decisões judiciais. Afinal, ferramentas são coisas “postas à nossa disposição”. Aqui há a sutileza do dis-positivo, aquilo que Heidegger denunciou como o suprassumo da era da técnica, o Gestell (o dispositivo). Apertar o botão, essa é a tarefa do “lidador do Direito” que surge nessa novo Zeitgeist, espírito do tempo em que tudo é disponível, líquido, dúctil, maleável. O que deveria ser o “que dá o formato” às relações sociais, o Direito, acaba virando o produto formatado.

Claro que nisso tudo também deve ser considerado o desejo, inconsciente, de reencantamento do mundo. Se a modernidade desencantou o mundo, agora, nestes tempos de fragmentação e de instantaneidades, parece que se busca um reencantamento, em uma espécie de retorno às cartografias da pré-modernidade. O desejo da volta do mito do dado.

Por isso a ênfase nas respostas antes das perguntas. É o império dos conceitos pré-prontos, das súmulas, dos enunciados, dos workshops para construir conceituações prévias, as teses emanadas dos tribunais, enfim, tudo aquilo que, lato senso, é chamado de “cultura de precedentes”, que gera muitos livros e textos, mas que pouco explicam.

Como falar em ciência jurídica no Brasil, então? Difícil. Ou impossível. Onde estão os intelectuais? Em uma alegoria com a medicina, imaginemos uma pandemia ou uma guerra, com muitos doentes e feridos, necessitando de cirurgias. Os hospitais estão repletos de enfermeiros e médicos generalistas, coaches de medicina, influencer e esteticistas. Mas poucos cirurgiões. Muito poucos.

Um exemplo de como há pouca esperança me foi trazido por um advogado. Contou-me ele que em São Paulo, em uma grande cidade do interior, um juiz chega a ter dezenas de assessores. Nem sequer todos os assessores têm acesso ao magistrado… então há uma divisão em grupos, cada qual com um “assessor chefe” imediato (apenas estes podem se reportar diretamente). E ele complementa: “quem nós estamos enganando? Atribui-se a Bismarck a frase: “As salsichas e as leis, é melhor não saber como são feitas”. Imagine se soubessem lá fora como as decisões judiciais são “fabricadas”. Parece que a esperança é pouca, não?

5. Assim, a professora Naomi não teria razão ao dizer que há uma desinformação estrutural, produzida com claros objetivos de causar desconhecimentos (ignorância)? Que tal discutir isso no Direito?

O que acham da afirmação da professora Naomi? Assim como há uma espécie de indústria da desinformação nas discussões sobre vacinas e aquecimento global – e isso parece incontestável –, há sérios indicativos de que esse fenômeno se repete em vários ramos do conhecimento. E o Direito não escapa disso. Ou, de que modo explicamos a proliferação da cultura manualesca-simplificada-simplificadora, a indústria dos cursinhos e os concursos decoreba? De que modo o meio-ambiente jurídico convive com isso? Não estamos nos devendo essas respostas?

Por isso, penso que há enorme espaço para esse novo ramo do conhecimento: a jus agnotologia. Ou agnotologia jurídica.

6. O leitor achou difícil e/ou chato o texto? Pode ter razão. Difícil, sim. Direito é assim mesmo. Agnotologia é para isso.

O leitor achou complicado o texto? Difícil? Tem razão. Está recheado de coisas difíceis (ou chatas, dirão muitos) Mas isso apenas dá razão àqueles tantos (entre outros, nomino Marcelo Cattoni e Leonel Severo Rocha, como homenagem a todos os demais cientistas do Direito que se preocupam com o estudo da teoria do direito e da epistemologia), que, como eu, dizem que o Direito é um fenômeno complexo e que não aceitam simplificações e atalhos significativos.

A simplificação (e o incentivo a que se simplifique cada vez mais!) e a transformação do Direito em uma mera ferramenta (de poder) mostram que alguma coisa ocorreu. E não foi geração espontânea. Jabuti não nasce em árvore. Talvez, como no caso do aquecimento global, cujos resultados estão aí, talvez também tenha ocorrido algo na área jurídica como a fabricação da ignorância. 

Portanto, proponho a seguinte hipótese: a crise que denuncio pode ser, em algum grau, relevante, uma questão intencional, ou que sirva a algum propósito? Existe alguma parametricidade entre a propaganda do tabaco e a cultura antivacina e fenômenos como a simplificação e a jurisprudencialização do direito?

Nesse sentido, há uma série considerável de fatores já explorados por mim ao longo do tempo para tornar esse fenômeno do “incentivo à desinformação” visível e compreensível. O que a jus agnotologia pode fazer é propor a existência de um novo adversário intelectual.

Não conheço nenhuma pesquisa que tenha aproximado, até agora, o domínio da agnotologia (aqui chamada de jus agnotologia) da ciência do direito.

Penso que a hipótese de que haja uma produção estrutural e sistêmica de ignorância pode ser promissora e deve ser investigada com seriedade. Eis o pontapé inicial.

 


[1] Cfe Streck, L.L. e Jung, Luã. Hermenêutica e Inteligência Artificial: Por uma Alternativa Paradigmática ao Imaginário Técnico-Jurídico. Revista de Direito Público.  

v. 21 n. 110 (2024): Seção de Artigos Originais/

 

 

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