Opinião

Irrecorribilidade da absolvição fundada no quesito genérico

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1 de outubro de 2024, 6h08

“Em todas as questões que têm uma parte moral e que são de uma natureza complicada, o julgamento por um júri é indispensável.” (Benjamim Constant) [1]

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Sala do Tribunal do Júri vazia

O Tribunal do Júri nunca foi tão escrutinizado na história brasileira quanto nos últimos anos. Fala-se em aboli-lo, quer-se impedi-lo de absolver por determinada tese defensiva, sempre querem achar alguma maneira de desmerecer ou desacreditar esta singular instituição, talvez a melhor forma de se administrar a justiça.

Nunca houve instituição tão caluniada e, ao mesmo tempo, tão pouco estudada e compreendida. Essa superficial compreensão que se tem da instituição impede que se perceba as maiores virtudes que nela se encontram, e, dentre estas virtudes, duas que estão intimamente ligadas ao tema deste artigo e que são inseparáveis do júri: o poder de julgar moralmente e o poder de clemência.

A compreensão correta do Tribunal do Júri exige um olhar correto sobre o modo pelo qual os jurados julgam. “O júri julga moralmente”, pondera Constant, “o juiz, materialmente.” [2] Por essa razão que o sistema de julgamento do júri não pode ser senão o da íntima convicção.

Íntima convicção

O sistema da íntima convicção é o núcleo do Tribunal do Júri, e, como alertou Bonnet, o dia que esta íntima convicção dos jurados for suprimida (que é o que buscam certos juristas tecnocratas ao pretenderem impor uma absurda motivação das decisões pelos jurados), já não existirá mais o júri [3].

A decisão dos jurados não poderia, portanto, estar fundada naquilo que um juiz togado igualmente poderia fazer; fosse assim, não se recorreria aos jurados. Portanto, uma razão mais alta reclama a intervenção dos jurados, e essa razão é que justifica o quesito genérico: poder julgar moralmente. E o que é julgar moralmente?

É apreciar os motivos da conduta, não para dosar a pena, mas para ver nessa motivação alguma forma mais elevada de justiça que escapa tanto ao legislador quanto ao juiz.

Se um homem mata o estuprador que vem aterrorizando uma pequena cidade, vitimando filhas e esposas dos cidadãos, o juiz, julgando materialmente, teria de condenar este homem, podendo, no máximo, utilizar este relevante valor social da conduta como uma causa de diminuição de pena (CP, artigo 121, §1º).

Os jurados, por outro lado, podem se apoderar deste valor social da conduta para, se a justiça do caso concreto assim reclamar, absolver desde logo este homem. Julgar moralmente é julgar pelas consequências do fato para todos os envolvidos, é julgar com compaixão, com misericórdia, é saber ver no infortúnio do criminoso uma hipótese de comiseração, ainda que incompreendida em princípio por aqueles que clamam pela punição.

De fato, o que seria da justiça se os homicídios fossem julgados em definitivo por juízes togados? Não haveria um único juiz que poderia perdoar o acusado — pois tal prerrogativa é do soberano — ou absolvê-lo por algum motivo de relevante valor social ou moral, e assim não haveria um único homicídio que poderia ser julgado moralmente, que, aliás, é a única e verdadeira forma de se julgar tal crime, pois o juízo sobre “matar alguém” nunca pode ser apenas um juízo material e cego sobre a conduta de tirar a vida de outrem.

Por isso Carnelutti alertou com muita razão que a introdução do juiz leigo no processo penal não tem outra função senão a de liberar a justiça das amarras da lei, permitindo, nas palavras do maestro italiano, a introdução do “filão da equidade” no juízo penal. Vale a pena transcrever o pensamento na íntegra do grande processualista italiano:

Agora bem, se o juízo de direito requer a preparação jurídica de quem deve pronunciá-lo, a mesma preparação não só é desnecessária como é inoportuna; o jurista, pelos costumes adquiridos no estudo e no exercício do direito, adquire uma mentalidade pouco idônea para o ofício diverso.

Assim ocorre que ao lado dos técnicos do direito haja leigos para compor o colégio judicial penal; leigos diz-se no sentido de que não se lhes exige a qualidade de magistrados nem de outra cultura específica. Esta nota puramente negativa quanto à preparação técnica exclui que a razão de sua participação no juízo possa ser outra coisa que a de liberá-lo, mais ou menos, da estrita observância das normas jurídicas, isto é, de introduzir nele, em maior ou menor medida, o filão da equidade. [4]

Ao lado deste poder de julgar moralmente está o poder ainda mais sublime que é o poder de clemência, e isto está na origem do Tribunal do Júri. Faustin Hélie assevera que os jurados romanos não eram investidos apenas do poder judiciário, mas também do poder de soberania, e, assim, ao lado do poder de fazer justiça eles tinham também “la puissance de faire grâce.” [5]

O júri tem, dentro da administração da justiça, esta função clemencial em germe precisamente para poder ser usada quando os jurados sentirem que a condenação, ainda que justa do ponto de vista probatório-processual, seria injusta num sentido mais elevado. Sêneca nos ensina que “é a clemência que faz desviar a punição pouco antes da execução que poderia ter sido estabelecida por merecimento.” [6]

Prerrogativa soberana

A graça é uma prerrogativa soberana que existe para saber temperar a justiça que, sem ela, seria nada mais do que uma cega e ininterrupta emissão — e execução — de sentenças condenatórias. Os jurados são os únicos juízes que podem exercer útil e legitimamente o poder de clemência sem perturbar o sagrado princípio da separação de poderes. Constant explica a clemência por este ângulo, argumentando que ela é o meio eficaz de tornar a aplicação da lei justa ao caso concreto:

Uma deficiência inseparável das leis gerais é que tais leis não podem ser aplicadas com igual justiça a diversas ações de tipos diferentes. Quanto mais geral a lei, mais ela se afasta das ações específicas sobre as quais, apesar disso, é chamada a se pronunciar. Uma lei só pode ser perfeitamente justa para uma dada circunstância. Tão logo aplicada a duas circunstâncias ligeiramente diferentes, ela se torna ais ou menos injusta para uma das duas. Os fatos são infinitamente matizados. As leis não podem acompanhá-los em suas alterações. O direito de exercer a clemência ou de abrandar uma pena é necessário para compensar a inflexibilidade da lei. Tal direito nada mais é que a faculdade de levar em consideração as circunstâncias da ação para se decidir se a lei é aplicável a ela. [7]

O júri, como se nota, concentra em si esses dois poderes soberanos que são inseparáveis da sua natureza, e por isso a soberania de seus veredictos. Assim é que, permitir a recorribilidade de uma decisão a qual os jurados são chamados a pronunciar, vale dizer, decisão fundada na equidade, na clemência, na justiça para além do código, seria retirar a maior serventia que o júri presta à justiça, qual seja, a de ser um tribunal com o poder de absolver de uma forma que um juiz togado, pela estrita obediência que este tem à lei, jamais poderia fazer.

E é para isto que serve o quesito genérico: na sistemática do Código de Processo Penal brasileiro, o quesito genérico é o quesito que permite com que os jurados possam exercer esses dois poderes fundamentais do júri. Não é difícil entender que, se este quesito não existisse, tal prerrogativa do júri esvaneceria.

Imaginemos, realmente, que os jurados devessem responder apenas os quesitos dos incisos I e II do artigo 483, e, se respondidos positivamente por mais de 3 jurados, a votação tivesse de ser encerrada. O que teríamos então? Uma mera confirmação material da decisão de pronúncia… O que a lei quer é justamente que, se reconhecida a materialidade e a autoria pelos jurados, possam eles ir além da análise material do caso para julgá-lo moralmente ou, se for o caso, de aplicar a graça soberana.

Por essas razões é que a decisão absolutória fundada no quesito genérico jamais poderia ser acusada de ser contrária à prova dos autos, pois a função deste quesito é justamente a de fornecer aos jurados essa possibilidade, vale dizer, a de poder absolver, por clemência ou qualquer outro motivo, ainda que “contrariamente à prova dos autos”.

Os jurados, nesse caso de absolvição pelo quesito genérico, julgam moralmente, e não poderiam ter a sua decisão avaliada por um ângulo estritamente material e legal (que é evidentemente a análise que o Tribunal ad quem é chamado a fazer no recurso). Por isso se diz que, a rigor, jamais se pode imputar à decisão dos jurados contrariedade à prova dos autos quando absolvem pelo quesito genérico.

O raciocínio se funda na ideia de que a contrariedade à prova dos autos somente pode ser imputada aos jurados quando decidem com base nos incisos I e II do artigo 483, vale dizer, quando respondem negativamente aos quesitos da materialidade ou da autoria. Quando, por outro lado, absolvem fundado no quesito genérico, não se pode imputar-lhes a contrariedade à prova dos autos.

De fato, este quesito, além de concentrar todas as teses defensivas, tem a função precípua de dar aos jurados aquele que talvez seja o ápice de seu poder de decidir: poder absolver a despeito de reconhecida — por eles próprios nos quesitos anteriores! — a materialidade e a autoria.

Nesse sentido, Eliete Costa Silva Jardim [8] defende, com sólida argumentação, que a recorribilidade pelo artigo 593, III, “d”, CPP só é possível ao órgão acusador quando os jurados contrariarem manifestamente a prova dos autos ao absolverem nos quesitos anteriores, e não no quesito genérico, pois aí sim é possível dizer que os jurados contrariaram o que os autos tem de manifesto quanto à materialidade e autoria.

Assim, se os jurados absolvem desde logo negando o quesito do artigo 483, I, CPP (materialidade), aí sim seria possível argumentar que eles violaram manifestamente a prova dos autos ao decidir, estando a materialidade provada nos autos escancaradamente por exame de corpo de delito e outras provas.

Da mesma forma se absolverem pelo artigo 483, II, CPP, negando a autoria quando o próprio acusado a confessa e testemunhas afirmam esta autoria: neste caso a recorribilidade é possível ao acusador. Jardim pondera com razão que, como o quesito genérico só é possível de ser quesitado depois de afirmado positivamente os anteriores, e isso de forma obrigatória, o que se conclui é que a absolvição aqui, neste quesito genérico, já não terá as provas dos autos como fundamento, mas motivos extraprocessuais e/ou extrajurídicos, pelo que esta hipótese de absolvição “jamais poderá ser taxada de contrária à prova dos autos” [9].

É verdade que o quesito genérico concentra, com a reforma de 2008, todas as teses defensivas, pelo que a absolvição pode se dar pelo acolhimento de uma dessas teses (legítima defesa, p. ex.). Isso, no entanto, não altera a insindicabilidade da decisão, que continuará sendo regida pela íntima convicção dos jurados, vale dizer, os jurados podem absolver por clemência ou qualquer outro motivo mesmo quando sustentada, p. ex., a legítima defesa, pelo que nunca se saberá a motivação da decisão, que, precisamente por se fundar no quesito genérico, deve estar acobertada pela soberania absoluta.

A absolvição pelo quesito genérico, por concentrar estas duas hipóteses de poder soberano do júri, deve estar acobertada pela garantia fundamental do artigo 5º, XXXVIII, “c”, vale dizer, a soberania dos veredictos, pois ela é uma garantia do cidadão contra o Estado, e deve ser interpretada na linha do que a interpretação constitucional ensina: conferindo-lhe máxima efetividade.

Portanto, parece-me que só se pode falar em algum tipo violação ao direito ao recurso se se impedir a recorribilidade da decisão absolutória quando ela for fundada nos quesitos que não o genérico, pois a absolvição neste fundada deve mesmo permanecer imune. O quesito genérico não é o “quesito da impunidade”, como muitos querem fazer crer.

Trata-se do quesito que permite com que o júri manifeste a justiça que só através dele podemos vê-la manifestar: a justiça temperada, a justiça humanizada, a justiça que dialoga com o direito natural, a justiça que sente o drama humano e se solidariza com ele, e por isso a absolvição pelo quesito genérico, a nosso juízo, deve estar acobertada de soberania absoluta, vedando-se ao órgão acusador a possibilidade de se questioná-la.

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[1] CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Trad. Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 98.

[2] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Rio de Janeiro: Editora Topbooks: Liberty Classics, 2007, p. 759.

[3] “Que l’on supprime du juri la conviction intime des jurés, indépendante de toute influence étrangère, il n’y a dès-lors plus de juri.” (BONNET, J.E. Du juri en France, Paris: Chez Maradan Libraire, 1802, p. 14)

[4] Lições sobre o processo penal, Vol. 1…, p. 244.

[5] HÉLIE, Faustin. Traité de l’instruction criminelle, Livre Premier: Histoire et théorie de la procedure criminelle, Charles Hingray Libraire-Éditeur, Paris, 1845, p. 77.

[6] SÊNECA. Tratado sobre a clemência, Trad. Ingeborg Braren, Rio de Janeiro: Vozes, 2013, p. 46.

[7] Princípios de política…, p. 279.

[8] JARDIM, Eliete Costa Silva. Tribunal do Júri – Absolvição Fundada no Quesito Genérico: Ausência de Vinculação à Prova dos Autos e Irrecorribilidade in R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 13-31, jan – fev. 2015, p. 13-31.

[9] Idem.

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