As súmulas vinculantes ainda respiram (por aparelhos)
1 de outubro de 2024, 8h00
A súmula vinculante, um instrumento que parecia fadado ao fracasso inevitável, aparentemente voltou a respirar, ainda que por aparelhos. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar recurso extraordinário tratando sobre o inesgotável tema da judicialização da saúde, algo abordado no âmbito do Tema nº 1.234 da Repercussão Geral, encaminhou-se para a edição de uma nova súmula vinculante, algo que não ocorria há bastante tempo. Talvez isso sirva para desfazer alguns equívocos conceituais muito frequentes acerca da diferença de alcance da súmula vinculante e das decisões dotadas de caráter repetitivo ou de repercussão geral.
Explica-se. A súmula vinculante, como se sabe, surgiu com a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, a qual estabeleceu no artigo 103-A da Constituição que o STF pode, após reiteradas decisões em matéria constitucional, pelo voto favorável de dois terços dos seus membros, editar súmula que, após a sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante para a administração pública e os demais órgãos do Poder Judiciário em todas as esferas federativas. Paralelamente, a mesma emenda constitucional criou o instituto da repercussão geral, com a inclusão do § 3º do artigo 102 do texto constitucional.
Naquele momento, entendia-se a repercussão geral mais como um novo requisito de admissibilidade do que, propriamente, como uma nova sistemática de julgamento dos recursos extraordinários. Tanto assim que, se analisarmos o § 3º do artigo 102 da Constituição, fala-se que o recorrente demonstrará a repercussão geral das questões discutidas no caso. Apesar disso, com a regulamentação do instituto em 2007 e, especialmente, com o reforço do sistema de precedentes adotado a partir do Código de Processo Civil de 2015, a repercussão geral passou a ser lida e, especialmente, praticada como uma sistemática de julgamento e mesmo uma delimitação dos efeitos da tomada de decisão pelo STF.
Diferença entre repercussão geral e eficácia vinculante
A partir do momento em que a corte começou a, de maneira salutar, transformar os seus julgados em regime de repercussão geral em teses, não à toa começou a haver um declínio sensível da quantidade de súmulas vinculantes editadas.
Na verdade, se formos analisar, as súmulas vinculantes tiveram grande popularidade no STF até o início da década de 2010, quando então praticamente caíram em desuso. Em 2023 fora editada a Súmula Vinculante nº 59, mas, antes dela, a última edição de enunciado dessa natureza datava de 2015.
Esse fato, inclusive, assim como o cabimento de reclamação contra descumprimento de repercussão geral, levou algumas pessoas a confundirem a eficácia vinculante, e até poderíamos dizer erga omnes, que as súmulas previstas no artigo 103-A da Constituição possuem, com a eficácia transsubjetiva ou ultra partes que os julgados em sede de repercussão geral ostentam.
Na realidade, mesmo à luz do artigo 927 do CPC, as decisões proferidas pelo Supremo em sede de repercussão geral não possuem propriamente falando um efeito vinculante, especialmente pelo fato de não alcançarem casos não judicializados, casos que tramitam, por exemplo, perante a própria administração pública ou casos que não venham jamais a serem submetidos ao crivo do poder público.
Dessa maneira, diferentemente da súmula vinculante, que produz efeitos dessa natureza não só para o Poder Judiciário, mas também para a administração pública, os julgados em sede de repercussão geral produzem uma eficácia ultra partes, atingindo também outros casos, mas apenas no âmbito interno do Poder Judiciário. Como dissemos, essa diferença ficou durante certo tempo esquecida ou negligenciada. Parecia até mesmo que o STF havia desistido do instrumento da súmula vinculante em benefício de privilegiar os julgados em sede de repercussão geral [1].
Utilidade das súmulas
Todavia, agora no mês de setembro de 2024, as peculiaridades da realidade — sempre mais criativa do que qualquer tese jurídica — mostraram à corte a necessidade, especialmente a utilidade, que o instrumento da súmula vinculante ainda pode ter. Como citado, a corte se depara uma vez mais com o tormentoso tema da solidariedade passiva e da competência comum dos entes federativos em matéria de judicialização da saúde. Essa competência comum, lastreada no artigo 23, II, da Constituição, já havia sido reafirmada pela corte no âmbito do Tema 793 da repercussão geral [2].
Porém, o atual objeto de comentário, o Tema nº 1.234, deslinda algumas peculiaridades. Não se trata da judicialização da saúde em geral, mas especificamente da questão de fornecimento de medicamentos. E na parte que interessa mais diretamente, o fornecimento de medicamentos não incluídos na lista de fornecimento obrigatório pelo SUS, apesar de possuírem registro na Anvisa.
Depois de uma bem-sucedida, não obstante árdua, conciliação realizada no âmbito do recurso extraordinário por condução do ministro Gilmar Mendes, o STF, por maioria de votos, e nessa parte por unanimidade, decidiu homologar os termos do acordo feito entre União, estados e municípios acerca da matéria, reconhecendo que a solidariedade passiva tem reflexos na questão competencial de natureza jurisdicional.
Foram fixados critérios para definir as situações em que as ações ajuizadas, tendo por causa de pedir e por pedido o fornecimento de medicamentos sem inclusão na lista do SUS, deveriam ou não incluir a União no polo passivo. Porém, isso também abordou a questão relacionada ao papel da Anvisa como instância regulatória do setor sanitário brasileiro.
Nesse contexto, o fato de o STF julgar o recurso extraordinário em sede de repercussão geral poderia ter eficácia pequena ou até nula em relação às entidades de natureza administrativa, não só do nível federal, mas também dos níveis estadual e municipal.
Isso levou o ministro Gilmar Mendes, de maneira bastante perspicaz, a propor a edição de uma súmula para dar efeitos vinculantes ao julgado proferido em sede de repercussão geral. Aliás, o texto aprovado da Súmula Vinculante nº 60 remete expressamente ao julgamento do Tema 1.234 [3].
Sobre a questão, vale ler a explicação de Viviane Ruffeil e Inês Coimbra:
“O acordo foi homologado no âmbito de um recurso extraordinário julgado sob a sistemática da repercussão geral, o que, por si só, seria suficiente para gerar efeitos vinculantes a todo o sistema de justiça (CPC, artigo 927), mas não, em princípio, à administração pública. Isso porque não seria possível atribuir à decisão a mesma força vinculante e eficácia expressamente previstas pela Constituição às ações de controle concentrado de constitucionalidade (CF, artigo 102, §2º), por falta de previsão legal ou constitucional nesse sentido.
Apesar disso, o Supremo tem externado o entendimento de que as decisões proferidas em recursos extraordinários julgados na sistemática da repercussão geral têm a mesma eficácia e força vinculante das decisões proferidas nas ações de controle concentrado de constitucionalidade[4]. De todo modo, para que não haja dúvidas a respeito da vinculação da decisão que homologou o acordo no Tema 1234/RG, o relator do feito optou por propor a edição de uma Súmula Vinculante (SV nº 60) para reforçar a necessidade de cumprimento dos termos pactuados, inclusive, pela administração pública (CF, artigo 103-A) [5].
Além disso, a edição da súmula vinculante permitirá que eventuais descumprimentos dos termos do acordo possam ser levados à apreciação direta do Supremo por meio de Reclamação, sem necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias (CPC, artigo 988, §5º, II)” [4].
Isso demonstra, portanto, a utilidade ainda existente do instrumento da súmula vinculante. Na prática, o que o STF está a realizar (ainda que não necessariamente admita isso) é ampliar a eficácia subjetiva do julgado proferido em sede de repercussão geral, que é o ultra partes, para que a decisão passe a atingir a todos, ou seja, com efeitos vinculantes, inclusive para a administração pública, e até mesmo para casos não judicializados, por conseguinte, com os famosos efeitos erga omnes.
Dessa forma, resgata-se a utilidade desse instituto que, quer se queira quer não, ainda continua em vigor com previsão no artigo 103-A da Constituição, mas também a corte, de maneira bastante empírica, fornece um exemplo da diferença entre a eficácia que, apesar de ampla, não é irrestrita, dos julgados proferidos em sede de repercussão geral, daqueles outros transformados, então, em súmula de caráter vinculante. Caem por terra as tentativas de atribuir à repercussão geral os mesmos efeitos da súmula vinculante — até porque, nesse caso, não haveria qualquer sentido em se transformar um tema de repercussão geral em súmula vinculante…
Valem aqui as advertências, inclusive do professor Ulisses Schwarz Viana, em sua obra Repercussão Geral sob a Ótica da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann [5], para quem o surgimento do sistema de repercussão geral não pode ser lido em desacordo, em desalinho com o próprio instituto da súmula vinculante.
Com efeito, tomando por base as lições da professora Cristine Petter, a Emenda Constitucional nº 45, quando criou o instituto da súmula vinculante, inclusive, denotou uma vontade do legislador de que o enunciado da súmula vinculante resultasse não apenas, mas principalmente, de julgados em sede de repercussão geral. Também vale a pena registrar aqui a ressalva segundo a qual, como adverte Lenio Luiz Streck, nenhum precedente se desvincula completamente de sua origem [6].
De maneira que as teses, sejam elas proferidas em sede de repercussão geral ou transformadas em súmula vinculante, não se abstrativizam, como acontece com as leis. Ao contrário, elas devem ser lidas sempre e sempre, levando-se em consideração o contexto fático e jurídico do próprio precedente que as originou.
Deve-se, portanto, comemorar a decisão do STF no Tema nº 1.234: Não apenas por tentar resolver o tormentoso tema da judicialização do direito à saúde, que infelizmente está longe de acabar, mas pode ter um novo capítulo favorável à sua resolução, mas também por demonstrar o quão úteis podem ser os instrumentos de conciliação no âmbito da jurisdição constitucional e, ainda assim, não se esqueça por reavivar o instituto da Súmula Vinculante, demonstrar a sobrevivência de sua utilidade para o nosso sistema jurisdicional de precedentes e, finalmente, por oferecer um exemplo didático das diferenças técnicas que precisam ser pontuadas entre o julgamento em sede de repercussão geral e a transformação da tese em súmula vinculante.
[1] Para análise detalhada sobre o efeito vinculante, cf. PINHEIRO, Victor Marcel. Decisões Vinculantes do STF. São Paulo: Almedina, 2021.
[2] “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.”
[3] “O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243).”
[4] PRADO, Inês Maria dos Santos Coimbra de Almeida; PEREIRA, Viviane Ruffeil Teixeira. Abrangência e efeitos da conciliação federativa da judicialização da saúde no STF. In: ConJur, 27 de setembro de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-27/conflito-federativo-saude-e-repercussao-geral-abrangencia-e-os-efeitos-da-conciliacao-federativa-da-judicializacao-de-saude-no-stf/
[5] VIANA, Ulisses Schwarz. Repercussão geral sob a ótica da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013.
[6] Cf. por exemplo: STRECK, Lenio Luiz. Por que os ‘precedentes’ não são obedecidos? In: ConJur, 13 de junho de 2024, disponível em https://www.conjur.com.br/2024-jun-13/por-que-os-precedentes-nao-sao-obedecidos/
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