Prisão imediata no Tribunal do Júri e irretroatividade da norma híbrida que prejudica o indivíduo
30 de novembro de 2024, 11h23
O princípio da presunção de inocência ou da presunção de não culpabilidade [1] está previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição da República, e enuncia que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Trata-se de garantia individual que, para além da previsão constitucional, é amplamente prestigiada no âmbito internacional, como se extrai do artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) [2], do artigo 6.2 da Convenção Europeia para a Tutela dos Direitos do Homem e da Liberdade Fundamental (1950) [3], do art. 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948) [4] e do artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) [5].
O seu conteúdo literal é de fácil compreensão e, aparentemente, entra em rota de colisão com a tese de repercussão geral fixada pelo Supremo Tribunal Federal em 13/11/2024: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada” (Tema 1.068) [6]. O entendimento prevalente foi além dos termos literais do § 4º do artigo 492, do Código de Processo Penal, com redação determinada pela Lei 13.964/2019, que apenas autorizava a execução imediata da pena de prisão igual se esta fosse igual ou superior a 15 anos de reclusão [7], tratando-se, por assim dizer, de verdadeira norma judicada, em razão de seu inegável caráter de inovação em relação à mencionada norma legislada.
Evidentemente que, em se tratando de um princípio, e não de uma regra, não se desconhece que a própria presunção de inocência está sujeita à hierarquia axiológica flexível [8] e, consequentemente, a certas cedências recíprocas diante de outros princípios, já que se submete à lógica do tudo ou nada [9]. Por esse motivo, são constitucionalmente toleráveis certas limitações materiais a direitos individuais dos investigados ou acusados, tais como a decretação da prisão temporária, da prisão preventiva e da imposição das medidas cautelares, pessoais ou reais, desde que presentes os seus pressupostos legais, formais e materiais, justificados segundo as vicissitudes de cada caso.
Sem embargo, todas as referidas cautelares, incluídas as prisões, para que sejam legítimas, devem se submeter aos critérios da provisoriedade, da adequação, da necessidade e da excepcionalidade, como se extrai dos artigos 282 e seguintes, do CPP.
Não é disso, contudo, que cuida o Tema 1.068, que textualmente autoriza a execução da condenação imposta pelo tribunal do júri, com a automática prisão do sentenciado. Esta segregação é de natureza jurídica absolutamente diversa da prisão temporária e da prisão preventiva. Apesar de estar prevista na lei processual, não se trata de prisão provisória ou cautelar, mas, efetivamente, de prisão-pena.
Risco de mais relativizações
Ora, é evidente que o novo entendimento firmado pelo STF implica violação à garantia constitucional, porque, ainda que a técnica do sopesamento seja própria dos princípios, não se pode admitir a flexibilização de seu núcleo essencial. Vale dizer, ao se autorizar o cumprimento imediato da pena, automaticamente se dissolve o sentido irredutível da presunção de inocência conferido pelo texto constitucional brasileiro; e, esvaziada a sua essência, é como se a própria norma fosse completamente nula para os casos abarcados pelo precedente qualificado.
A soberania dos veredictos, argumento invocado pelo STF para se autorizar a prisão automática à condenação pelo júri popular, não convence, porque o seu sentido está na imutabilidade relativa de suas decisões, que não poderão ser revistas por mero inconformismo do interessado. Esse é a razão de somente se admitir um único recurso de apelação nos casos em que a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, como estabelece o artigo 593, III, d, do CPP [10].
Provida a apelação, a soberania dos veredictos também é o fundamento que impede sua mera substituição pelo acórdão do tribunal ad quem, impondo-se a realização de um novo julgamento, a teor do § 3º, do mesmo dispositivo [11]. Percebe-se, assim, que os jurados são julgadores dos fatos e que o princípio que reconhece soberania às suas decisões não guarda qualquer pertinência com as questões jurídicas decorrentes da conclusão, nomeadamente a execução provisória da pena de prisão.
Para além da ausência de pertinência objetiva para com o princípio constitucional da soberania dos veredictos, o cumprimento imediato da pena de prisão escancara uma preocupação ainda mais elevada: se a presunção da inocência pode ser flexibilizada para as condenações pelo Tribunal do Júri, o que garante que, ao longo do tempo, a presunção de inocência não sofrerá outras relativizações, sucumbindo diante de condenações por crimes hediondos, crimes violentos, corrupção etc., até ser completamente esvaziada?
O grande problema de se normalizar uma ruptura no tecido constitucional das garantias fundamentais é que nunca se saberá qual o limite de seu potencial de esgarçamento. Basta observar o que aconteceu com a recente história da oscilação jurisprudencial a respeito da possibilidade da execução provisória da pena decorrente de acórdão condenatório, que felizmente culminou por declarar a constitucionalidade do artgo 283 do CPP [12], com a reafirmação de que a execução da pena somente pode ocorrer após o trânsito em julgado da condenação [13].
Lógicas utilitaristas de maximização da eficácia da intervenção jurídico-penal devem importar. Não se pode desejar um sistema ineficiente. Deve haver iniciativas, em sede legislativa e jurisprudencial, para o incremento da qualidade e da celeridade da prestação jurisdicional, posturas que se afinam, inclusive, à principiologia processual penal de lastro constitucional, ancoradas na cláusula do due process [14] e iluminadas pelo princípio da razoável duração do processo [15].
Entretanto, referida dimensão eficacial deve ser necessariamente conformada pela dimensão axiológica representada por certos direitos e garantias irrenunciáveis e impermeáveis às contingências, cujas perdas acarretariam insuportáveis custos constitucionais e ônus civilizatórios, dentre os quais tem lugar de destaque a presunção de inocência, que deve ser levada a sério e preservada em sua essência mais elementar.
Ocorre que, a despeito das críticas que podem ser endereçadas ao conteúdo do Tema 1.068 e à própria regra do § 4º do artigo 492 do CPP, impõe-se observar o seu caráter vinculante, nos termos do artigo 102, I, l, da Constituição, e do artigo 988, §5º, II, do Código de Processo Civil, sendo de aplicação obrigatória por todos os juízos e tribunais.
Se assim o é, calha destacar uma última questão, relacionada à sua inaptidão para abarcar fatos anteriores à publicação do acórdão, em face da irretroatividade da lei penal maléfica, prevista no artigo 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos [16], no artigo 5º, inciso XL, da Constituição [17], e artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal [18].
Ora, como acima afirmado, a prisão decorrente de condenação em plenário não possui natureza jurídica de prisão provisória, porém de prisão-pena, tratando-se de orientação com direta repercussão no status libertatis do indivíduo. Assim, é regra que, a despeito de ter sido forjada na legislação processual, possui relação com o Direito Penal, classificando-se, portanto, como norma de caráter híbrido. E, como tal, os seus efeitos são idênticos às normas penais, propriamente ditas,[19] que somente poderão retroagir para beneficiar o indivíduo, seja pela descriminalização de certo comportamento (abolitio criminis), seja pela previsão de algum benefício penal (novatio legis in mellius). Por outro lado, serão irretroativas sempre que forem mais gravosas ao indivíduo, tanto pela incriminação de um comportamento até então atípico, quanto por um agravamento qualquer (novatio legis in pejus) [20].
Afigurando-se óbvios os efeitos agravadores da nova orientação do STF, que implicou, inclusive, releitura do citado § 4º do artigo 492 do CPP, surgem duas realidades distintas a respeito do termo a quo autorizador da prisão automática de condenações por tribunais do júri: (1) quando a pena fixada representar 15 anos ou mais de reclusão, somente poderá haver execução imediata para aqueles fatos que ocorreram após a entrada em vigor do § 4º do artigo 492 do CPP, a saber, 23 de janeiro de 2020; e (2) para as penas inferiores a 15 anos de reclusão, referida prisão automática somente será possível para fatos que ocorreram posteriormente à publicação do Tema 1.068, isto é, 13 de novembro de 2024.
Enfim, tanto a alteração legislativa, que redundou na regra do § 4º do artigo 492 do CPP, realizada pela Lei 13.964/2019, quanto o Tema 1.068, devem ser sujeitos a críticas, por vilipendiarem a essência constitucional do princípio da presunção de inocência. Entretanto, tratando-se de realidades jurídicas, devem ser aplicados como tais, observando-se, mercê da estrita obediência do princípio da irretroatividade penal, as respectivas datas em que foram inaugurados no cenário jurídico-nacional, como expressão de deferência mínima aos direitos e garantias fundamentais.
[1] Não se vislumbra diferença substancial entre as expressões, tratando-se de opção terminológica (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. O ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 282).
[2] Art. 11: “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”
[3] Art. 6.2: “toda pessoa acusada de um delito é presumivelmente inocente até quando sua culpabilidade não seja legalmente apurada.”
[4] Art. 26: “parte-se do princípio de que todo acusado é inocente, até prova de sua culpabilidade.”
[5] Art. 8.2: “toda pessoa acusada de praticar um delito tem direito a que se presuma a sua inocência enquanto não se comprove legalmente a sua culpa.”
[6] STF, Plenário, RE 1.235.340/SC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 12/09/2024, Repercussão Geral – Tema 1.068, divulgado no Informativo nº 1.150. O posicionamento passou a ser naturalmente seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, como se observa nos recentes arestos: AgRg no RHC n. 202.283/BA, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 4/11/2024, DJe de 7/11/2024; AgRg no HC n. 842.969/RS, Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 15/10/2024, DJe de 29/10/2024; AgRg no HC n. 788.126/SC, Relator Ministro Jesuíno Rissato [Desembargador Convocado do TJDFT], Relator para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 17/9/2024, DJe de 27/9/2024, divulgado no Informativo nº 826.
[7] “Art. 492 (…) § 4º. A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo.”
[8] GUASTINI, Riccardo. Teoria e ideología de la interpretación constitucional. Madri: Trotta, 2008, p. 88.
[9] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, 32.
[10] Art. 593: “Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: (…) III – das decisões do Tribunal do Júri, quando: (…) d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.”
[11] Art. 593. “§ 3º Se a apelação se fundar no no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.”
[12] Art. 283. “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.”
[13] STF, Plenário, ADCs 43, 44 e 54, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 7/11/2019.
[14] “Art. 5º. (…) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”
[15] “Art. 5º. (…) LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
[16] Art. 9º. “Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.”
[17] Art. 5º (…) XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”
[18] Art. 2º (…) “Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”
[19] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 11ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 107.
[20] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte geral. Vol. I. Thomson Reuters Brasil, 2021, pp. 141-142.
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