Opinião

Júri: possibilidade de aplicação de distinguishing para casos não enfrentados no leading case

Autor

  • é defensor público do estado do Pará e membro do Conselho Superior da DPE-PA. É coordenador-geral da comissão de execução penal do Condege membro do Conselho Penitenciário do Estado do Pará e do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária. É coautor do livro Execução Penal - Novos Rumos Novos Paradigmas. 1ª ed. 2ª tiragem rev. Manaus: Aufiero.

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30 de novembro de 2024, 17h17

O presente artigo objetiva analisar os limites e o alcance do entendimento do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário (RE) 1.235.340, relativo ao Tema 1.068. Nessa medida, busca-se, a partir de uma perspectiva de redução de danos [1], trazer hipóteses nas quais se entende que o aludido precedente não será aplicável.

Para além das questões controvertidas que envolvem o julgamento do STF em estudo, que se tem o intento de abordar em outro texto, a decisão da Suprema Corte em comento, do ponto de vista prático, trouxe claramente prejuízo inestimável à plenitude de defesa, pois já são muitos os casos, em âmbito nacional, do réu que respondia o processo em liberdade optar por não prestar depoimento perante os jurados devido à preocupação de, ao final do julgamento, em sendo condenado, sair preso do plenário do Júri.

Aqui jamais se tem como dizer “quem não deve, não teme”, porque não é disso que se cuida. Neste ponto, o que realmente importa é uma questão de decisão de vida, pois sabe-se que não necessariamente a pessoa inocente é absolvida, conforme demonstram  os inúmeros casos do projeto Innocence Project.

Nesse cenário, pensar e propor ao STF que ainda por certo analisará embargos de declaração se faz fundamental, a fim de minimizar os impactos drásticos dessa decisão ao direito de defesa do cidadão.

Análise do julgamento do STF no RE 1.235.340

O caso que deu origem ao recurso dizia da condenação do recorrido por homicídio praticado contra a sua ex-companheira (feminicídio), qualificado ainda pelo motivo torpe e pelo emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima, sendo sentenciado à pena de 26 anos e oito meses de reclusão, além de condenado por posse irregular de arma de fogo, à pena de um ano de detenção.

Como se observa, a questão jurídica posta à análise da Suprema Corte não se tratava de questão que pode vir a ocorrer nos Tribunais do Júri, de condenação exclusiva por um crime conexo e absolvição relativa ao crime doloso contra a vida que ensejou a competência do rito do Júri.

Essa assertiva fica bem cristalina quando se assiste às duas sessões plenárias do STF nas quais houve o julgamento do RE 1.235.340 (sessão do dia 11 de setembro de 2024 e sessão do dia 12 de setembro de 2024).

Nestas sessões, claramente os ministros da Suprema Corte tão somente se preocuparam com a execução provisória da pena decorrente da condenação de crimes dolosos contra a vida, não tendo sido mencionado, em nenhum momento, caso igual ou similar ao que se observa nas situações em que há absolvição pelo Conselho de Sentença quanto ao crime doloso contra a vida e apenas condenação pelo crime conexo.

Joubert Lúcia /TJ-MG

Em igual sentido, não se verificou mesmo porque o caso de origem não permitia, das condenações nas quais o juiz presidente do Júri aplique pena fixando o regime aberto e semiaberto, haja vista que nesses casos deve-se observância a Resolução nº 474, de 9 de setembro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que indica a expedição de mandado de intimação para cumprimento de pena em ambiente semiaberto ou aberto previamente a expedição de mandado de prisão, tais situações podem muito bem acontecer em situação de homicídio e tentativa de homicídio simples, e/ou tentativa de homicídio qualificado, por exemplo.

Esse debate é importante, pois reduz a abrangência do julgamento do STF a ocasiões de condenações que redundarão em penas elevadas, cujos regimes tenham sido estabelecidos no fechado, como de feminicídio consumado delito que inclusive originou o recurso que chegou a Suprema Corte, fatos como o caso da Boate Kiss citado no julgamento, entre outras, situações similares que mais estão em consonância com as preocupações dos ministros cujos votos foram vencedores.

Desse modo, entende-se que as situações destacadas acima vivamente estão diante do que a teoria dos precedentes nomina distinguishing, considerando as claras diferenças materiais entre as hipóteses trazidas e os que deram origem ao precedente estabelecido no RE 1.235.340.

Melhor dizendo, no caso de exclusiva condenação por crime conexo tais fatos mais perfeitamente se adequam ao que foi assentado no julgamento de caráter vinculante das ADCs 43, 44 e 54, que proíbe a execução provisória da pena, apenas se permitindo a prisão nos casos em que são verificados os requisitos da prisão preventiva.

Nesse cenário entende-se pelo cabimento de reclamação constitucional, visando que se reestabeleça o decidido pela Suprema Corte e preservando igualmente a Força Normativa da Constituição.

Proibição de execução provisória da pena

De maneira resumida, sobre o instituto da execução provisória da pena, o STF, no julgamento do Habeas Corpus nº 84.078/MG, realizado em 5 de fevereiro de 2009, relator o ministro Eros Grau, acórdão publicado no Diário da Justiça de 26 de fevereiro de 2010, fixou a compreensão de que ofende o princípio da não culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no artigo 312, do CPP.

Não obstante, no Habeas Corpus nº 126.292/SP, relator o ministro Teori Zavascki, em 17 de fevereiro de 2016, o STF reformulou o entendimento para assimilar ser possível a execução da pena depois de decisão condenatória confirmada em segundo grau.

Spacca

Na mesma esteira, o pleno do STF, no dia 5 de outubro de 2016, indeferiu medida cautelar nas ADCs 43, 44 e 54, sinalizando quanto a manutenção da orientação estabelecida no Habeas Corpus nº 126.292/SP, acima referido.

Contudo, no julgamento definitivo em conjunto das ADCs 43, 44 e 54, ocorrido em 7 de novembro de 2019, acórdão publicado em 12 de novembro de 2020, o STF estabeleceu a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, sendo ementado nos seguintes termos:

“PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE. Surge constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, considerado o alcance da garantia versada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, no que direciona a apurar para, selada a culpa em virtude de título precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da sanção, a qual não admite forma provisória.” 

Outrossim, consoante o voto do relator ministro Marco Aurélio que foi acompanhado pela maioria, Sua Excelência asseverou:

“Julgo procedentes os pedidos formulados nas ações declaratórias de nº 43, 44 e 54 para assentar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Como consequência, determino a suspensão de execução provisória de pena cuja decisão a encerrá-la ainda não haja transitado em julgado, bem assim a libertação daqueles que tenham sido presos, ante exame de apelação, reservando-se o recolhimento aos casos verdadeiramente enquadráveis no artigo 312 do mencionado diploma processual.”

Portanto, com exceção das condenações de crimes dolosos contra a vida para cumprimento em regime fechado pelo Tribunal do Júri não cabe execução provisória da pena.

Nesse ensejo, em tais ocorrências, vê-se que as decisões proferidas pelos juízes de primeiro grau determinando a prisão com base no julgamento do RE 1.235.340 violam a autoridade da decisão do STF fixada com caráter vinculante no âmbito de ação declaratória de constitucionalidade.

Com efeito, nesses casos caberá reclamação constitucional prevista no artigo 102, inciso I, “l”, da Constituição de 1988, que tem como um dos objetivos garantir a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Por sua vez, consoante a previsão do artigo 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99, tem-se que a declaração de constitucionalidade em sede de ação declaratória de constitucionalidade (ADC) possui eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à administração pública federal, estadual e municipal.

Portanto, com o objetivo de garantir a autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal deliberada nas ADCs 43, 44 e 54, é cabível a utilização da reclamação constitucional, com o fim de resguardar a autoridade decisória da Corte Suprema do nosso país.

Conclusão

O STF oportunamente quando da análise dos prováveis embargos de declaração que serão interposto ou a partir de reclamações constitucionais e recursos extraordinários poderá melhor delimitar o alcance da decisão tomada no RE 1.235.340 para considerar não abranger o referido julgamento as hipóteses de aplicação de pena no regime semiaberto e aberto em observância a Resolução nº 474, de 9 de setembro de 2022, do CNJ, que indica a expedição de mandado de intimação para cumprimento de pena em ambiente semiaberto ou aberto previamente a expedição de mandado de prisão, bem como quando houver absolvição do crime doloso contra a vida e exclusiva condenação no crime conexo, pois nessas hipóteses deve incidir o estabelecido nas ADCs 43, 44 e 54.

 


[1] Acerca da teoria de redução de danos Rodrigo Duque Estrada Roig (Roig, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: Teoria Crítica – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 25-26), André Ribeiro Giamberardino (Giamberardino, André Ribeiro. Crítica da Pena e Justiça Restaurativa: A Censura para Além da Punição,1ª ed. – Florianópolis:Empório do Direito Editora, 2015, p. 232) e este autor (http://www.emporiododireito.com.br/leitura/re-construcao-do-instituto-da-detracao-penal-como-instrumento-da-politica-penal-de-reducao-de-danos-por-arthur-correa-da-silva-neto) trazem suas visões, cada um na sua perspectiva de consideração sobre o tema.

Autores

  • é defensor público do Estado do Pará, titular da 4ª Defensoria Pública de Execução Penal da Capital, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), membro do Grupo de Trabalho de Alternativas Penais do CNJ (2022-2024), conselheiro do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE/PA) no biênio 2024-2027, conselheiro-diretor Instituto Brasileiro de Execução Penal (biênio 2023-2025) e autor do livro Tornozeleira Eletrônica: Análise Comparada (Brasil x EUA x Portugal) dos Parâmetros e Limites Constitucionais da Utilização da Monitoração Eletrônica.

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